Um veto que salva e envergonha o Parlamento
A decisão de Marcelo Rebelo de Sousa e o argumento que a sustenta é uma das mais desnecessárias punições à Assembleia em muitos anos.
Há vetos políticos e vetos políticos. Há na memória momentos em que o Presidente da República exerceu as suas funções com reserva e contenção nas palavras. Mas também há episódios nos quais o fundamento de um veto é por si só todo um programa. Esta terça-feira aconteceu um desses momentos. O Presidente vetou as alterações à lei do financiamento dos partidos usando um argumento capaz de fazer corar de vergonha qualquer deputado digno da missão que o voto popular lhe outorgou. Disse Marcelo Rebelo de Sousa que o diploma que lhe havia sido enviado para promulgação pecava por "ausência de fundamentação publicamente escrutinável quanto à mudança introduzida no modo de financiamento dos partidos políticos". Descendo ao nível da linguagem corrente, o que o Presidente mandou dizer aos deputados que redigiram, assinaram e aprovaram aquela vergonha sob a forma de lei é que agiram como um qualquer bando de meliantes tem por hábito agir: pela calada, sem dar nas vistas, poupando-se às justificações das suas escolhas, evitando assumir as suas posições, como se em causa estivesse uma operação clandestina e não a deliberação de um Parlamento democrático.
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Há vetos políticos e vetos políticos. Há na memória momentos em que o Presidente da República exerceu as suas funções com reserva e contenção nas palavras. Mas também há episódios nos quais o fundamento de um veto é por si só todo um programa. Esta terça-feira aconteceu um desses momentos. O Presidente vetou as alterações à lei do financiamento dos partidos usando um argumento capaz de fazer corar de vergonha qualquer deputado digno da missão que o voto popular lhe outorgou. Disse Marcelo Rebelo de Sousa que o diploma que lhe havia sido enviado para promulgação pecava por "ausência de fundamentação publicamente escrutinável quanto à mudança introduzida no modo de financiamento dos partidos políticos". Descendo ao nível da linguagem corrente, o que o Presidente mandou dizer aos deputados que redigiram, assinaram e aprovaram aquela vergonha sob a forma de lei é que agiram como um qualquer bando de meliantes tem por hábito agir: pela calada, sem dar nas vistas, poupando-se às justificações das suas escolhas, evitando assumir as suas posições, como se em causa estivesse uma operação clandestina e não a deliberação de um Parlamento democrático.
Ainda não conhecemos toda a fundamentação que Marcelo Rebelo de Sousa vai usar para justificar o seu veto ao diploma, mas o que sabemos é já suficiente para darmos conta que a sua decisão tem o valor prático de suspender uma lei ignóbil (mais pelo método como foi confeccionada, mas também pela sua substância) e de o fazer com uma enorme carga de pedagogia. O que o Presidente diz nas entrelinhas da sua opção é que é inadmissível e inqualificável que um Parlamento de uma democracia se arrogue no direito de decidir sobre matérias que dizem respeito às contas dos partidos sem que a opinião pública tenha condições para acompanhar os trabalhos. É inaceitável, está implícito no veto, que a cidadania não saiba que medida foi proposta por quem, que desconheça como todo o estrugido foi temperado até ser servido. Quem age assim devia usar óculos pretos, chapéu de feltro e gabardina comprida.
A decisão de Marcelo Rebelo de Sousa e o argumento que a sustenta é uma das mais desnecessárias punições à Assembleia em muitos anos. Que o líder do grupo de trabalho da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, José Silvano, do PSD, ousasse acreditar que tudo poderia ser cozinhado na maior das discrições sem que ninguém desse conta, ainda se consegue imaginar – afinal, não foi ele que, enquanto presidente da Câmara de Mirandela, se bateu com determinação contra a construção da barragem do Tua até que acabou por trabalhar num parque com que a EDP calou discretamente as veleidades de autarcas potencialmente incómodos? Mas pergunta-se que lastro de insensatez terá atravessado a cabeça de deputados experientes e inteligentes como António Filipe ou de José de Matos Rosa para acreditarem que poderiam gerir e decidir todo o processo à socapa e chegar ao fim do dia com ele aprovado e promulgado sem que ninguém desse conta. Em que país julgarão que vivemos?
Há-de dizer-se que o Presidente agiu como agiu e justificou o veto como justificou porque, uma vez mais, cedeu ao coro do protesto dos cidadãos. Os mais venenosos verão nessa sintonia mais um manifesto de uma putativa propensão de Marcelo para o populismo. Mas será mais sensato acreditar que o que aconteceu foi uma muito genuína manifestação democrática. Os cidadãos insurgiram-se contra a manobra dos deputados porque ninguém gosta de ser tomado por parvo. Porque se há um nível mínimo de decência numa democracia liberal esse nível deve ser colocado exactamente no processo legislativo, no modo como cada deputado e como cada partido vota. É daí que podemos discernir a nossa proximidade ou distância com programas ou com valores. E é essencialmente a partir daí que podemos exercer a vigilância e o escrutínio que a democracia exige. O veto do Presidente é por isso, e em primeiro lugar, um acto de defesa da própria Assembleia da República. Um Parlamento opaco pode ser um bom instrumento ao serviço de um ditador; nunca será nada útil a uma sociedade livre e aberta.
Morta à nascença, a nova versão da lei tenderá a transformar-se num marco que lembrará aos deputados desta legislatura e aos que lhes sucederem que os cozinhados nos bastidores não passarão. Mas haverá ainda outras lições a aprender. Se a elaboração das mudanças tivesse sido acompanhada e participada, se as opções em causa tivessem sido comunicadas e debatidas ter-se-ia evitado o lamentável gesto de hipocrisia do Bloco de Esquerda a querer fugir das suas responsabilidades depois de se ter colocado ao lado dos que aprovaram a nova lei. Ter-se-ia poupado o PCP de vir demagogicamente dizer que votou sim porque esta lei é melhor que a anterior, embora conserve as suas marcas antidemocráticas e anticonstitucionais. O PS, e a sua líder, Ana Catarina Mendes, teriam evitado submeter-se ao papel ridículo de nos tentar convencer que não haverá mais gasto de dinheiro público, ou que não haverá alargamento da isenção do IVA. E também teríamos sido salvos do gesto de falsa beatitude do CDS que surge no filme como o agente casto e imune à tentação do dinheiro.
Caso para dizer que vale mais tarde do que nunca. O sistema de equilíbrio de poderes do sistema funcionou e o Presidente fez o que devia ter feito e, ainda mais, fê-lo usando a justificação que mais utilidade e lógica revelavam neste momento. É bom que os senhores deputados não sigam aquela máxima do chanceler Otto von Bismark, que nos dizia que a política é como as salsichas: que o melhor mesmo é não sabermos como são feitas. Ora nós não só queremos saber como exigimos acompanhar cada passo do que é feito. Porque é através da “fundamentação publicamente escrutinável” da produção legislativa que nós conseguimos evitar as tentações e os abusos do poder político. Porque é através da evolução do processo legislativo que conseguimos posicionar as nossas ideias e valores no sistema partidário. E ainda porque é através do debate público e aberto que se conseguem os melhores resultados. Para o Parlamento e para o país.
É por estas razões fundamentais que o veto de ontem é muito mais do que mais um simples veto político. O que ele diz e o que pode representar para o futuro contém avisos e lições que reforçam os valores fundamentais da democracia e afastam as pulsões iliberais que vão pululando aqui e ali. Se no acto da sua revelação o veto é uma vergonha para os deputados que tiveram a ousadia e a veleidade de aprovar as mudanças à lei, no futuro não deixará de se constituir como um aviso. Um aviso que travará toda e qualquer pretensão dos que se julgam capazes de decidir sobre matérias importantes como o dinheiro dos partidos com a arrogância e o desprezo como que os deputados em questão manifestaram.
Artigo corrigido às 17h14: uma primeira versão identificava José de Matos Rosa como Pedro Matos Rosa.