E em Inglaterra, lá também está mal, não está?

A parte boa é termos trabalho, independentemente de sermos tratados como escravos, e como o único direito do escravo é trabalhar, temos sempre mais do que em Portugal, onde nem trabalho temos

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Heidi Sandstrom/Unsplash

Perguntou a vizinha num misto de esperança e candura, à espera de uma resposta que justifique a sua própria inutilidade e os 60 anos que a trouxeram até mim, e eu sim, lá também está mal, logo desde a saída do avião onde duas filas intermináveis de capatazes brandem os chicotes à chuva enquanto os emigrantes correm para o terminal, mesmo a tempo de sermos pontapeados na boca e nas partes baixas antes do interrogatório que antecede cada chegada.

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Perguntou a vizinha num misto de esperança e candura, à espera de uma resposta que justifique a sua própria inutilidade e os 60 anos que a trouxeram até mim, e eu sim, lá também está mal, logo desde a saída do avião onde duas filas intermináveis de capatazes brandem os chicotes à chuva enquanto os emigrantes correm para o terminal, mesmo a tempo de sermos pontapeados na boca e nas partes baixas antes do interrogatório que antecede cada chegada.

Na rua cospem-nos na cara e chamam-nos nomes, e por cada inglês com que nos cruzamos temos de nos ajoelhar e beijar-lhes os sapatos e as botas.

Se falamos noutra língua que não o inglês, seja na rua ou em casa, de imediato nos pontapeiam na boca e nas partes baixas antes do interrogatório na esquadra de polícia mais próxima, de onde nos levam para campos de concentração espalhados um pouco por todo o país até à deportação final.

A parte boa é termos trabalho, independentemente de sermos tratados como escravos, e como o único direito do escravo é trabalhar, temos sempre mais do que em Portugal, onde nem trabalho temos.

E não, já não nos pagam em dinheiro mas em géneros, dormimos em camaratas, fazemos as necessidades na fossa comum, vestimos todos de igual com uma estrela ao peito e ao longe há sempre uma grande chaminé a fumegar, o Führer já deu instruções para invadir o resto da Europa e os portugueses que se acautelem, a minha vizinha incluída.

“Ah, coitadinhos”, respondeu sem disfarçar este sorriso na cara enquanto as costas se endireitam, satisfeitas e sem sombra das dores matinais. Em dois segundos vai-se embora com votos de “Felicidades” que hoje é dia de mercado, e eu não sei se as pessoas são estúpidas, más ou um pouco dos dois, estúpidas e más, más porque estúpidas, más porque cientes da sua estupidez, das suas limitações, desesperadas pelo mal dos outros, numa demanda, numa cruzada contínua à procura do mal dos outros, mesmo quando o mesmo não existe e é apenas uma mentira mal contada, como se estivéssemos numa telenovela e o mundo se dividisse entre bons e maus e onde nós somos, obviamente, os maus, ou não merecêssemos o destino que nos aguarda lá fora em contraposição com os os bons, donos e senhores da felicidade eterna em mais um entediante dia de mercado algures em Portugal.

Corro atrás da minha vizinha, toco-lhe no ombro e peço desculpa, estava só a brincar, só volto a Portugal daqui a um ano e mesmo assim não sei, ganhamos mais do que os ingleses, entre os dois fazemos mais do que o Presidente da República ao fim do mês e vamos viajar um pouco por todo o mundo, o trabalho é muito mas há retorno, ao fim-de-semana bebemos espumante e vamos ao teatro, e se vida há só uma a verdade é que já estamos um bocado fartos de Portugal. “Também não fazem cá falta!”, grita-me a vizinha enquanto lhe volto as costas e digo “Bom dia”, e eu continuo sem saber se as pessoas são más ou apenas estúpidas, apesar de estar claramente inclinado para a primeira. Parem o mundo que eu quero sair.