Um país a céu aberto

Quando o escritor Bruno Vieira Amaral apresentou Volta a Portugal, do geógrafo Álvaro Domingues, falou num retrato do país real — quer na versão de António Ferro e do Estado Novo, a que o autor nos expõe nas primeiras páginas da obra, quer na versão moderna do país que está na moda. Um país onde a paisagem é sempre mais ordenada nos discursos sobre a própria paisagem do que na realidade.

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Convidado a apresentar um livro em que o autor cita abundante e justificadamente, permitam-me que comece esta apresentação com uma citação. Diz assim: “O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos mais feios e mais destruídos do país: os do litoral centro e norte. […] É o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruadas a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas. É o território que os citadinos, leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas auto-estradas, o território onde, à beira de cada estradeca, no sopé de cada encosta, convenientemente escondidas dos olhares pelas silvas e pelos tufos espessos de arbustos, há milhares — literalmente milhares — de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade — embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades).” Paulo Varela Gomes, Ouro e Cinza.

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Convidado a apresentar um livro em que o autor cita abundante e justificadamente, permitam-me que comece esta apresentação com uma citação. Diz assim: “O segundo tipo de território que está a arder, em particular neste ano de 2005, é o território das matas periurbanas, características dos distritos mais feios e mais destruídos do país: os do litoral centro e norte. […] É o território dos armazéns mais ou menos ilegais, cheios de materiais de obra, roupas, mobiliário, coisas de pirotecnia, encostados a casas ou escondidos nos eucaliptais, o território dos parques de sucata entre pinheiros, rodeados de charcos de óleo, poças de gasolina, garrafas de gás, o território dos lugares que nem aldeias são, debruadas a lixeiras, paletes de madeira a apodrecer, bermas atafulhadas de papel velho, embalagens, ervas secas. É o território que os citadinos, leitores de jornais, jornalistas, ministros, nunca vêem porque só andam nas auto-estradas, o território onde, à beira de cada estradeca, no sopé de cada encosta, convenientemente escondidas dos olhares pelas silvas e pelos tufos espessos de arbustos, há milhares — literalmente milhares — de lixeiras clandestinas, mobília velha, garrafas de plástico, madeiras de obras (é verdade — embora poucos o saibam: o campo, em Portugal, é muito mais sujo que as cidades).” Paulo Varela Gomes, Ouro e Cinza.

Nas páginas iniciais desta Volta a Portugal, Álvaro Domingues expõe-nos ao pensamento de António Ferro, homem que não queria que vissem a bela fealdade do nosso país, a que se alude no excerto que li. Na Cartilha da Terra Portuguesa, o propagandista do Estado Novo queria dar a conhecer aos turistas os “mais belos panoramas, monumentos principais, festas típicas, hotéis ou pousadas, as próprias especialidades culinárias”. Mas, mais do que informações úteis, a cartilha devia ser um breviário destinado a “todos os devotos da nossa Pátria”, desejosos de se iniciarem no catecismo da “sua Beleza”. Portugal como religião e santuário. Em Vida e Arte do Povo Português, Ferro, embriagado de lirismo, cantava os “jardins onde a nossa alma colhe flores” e as “planícies onde o sonho galopa, onde o silêncio mora”.

Inspirados pelo nacionalismo francês de Charles Maurras, os conservadores portugueses também quiseram criar — e criaram — o seu próprio país real em oposição ao país legal, ao país das instituições e do poder central concentrado em Lisboa. Em Volta a Portugal, lê-se a certa altura: “De tanto martelado o assunto, o mito e a ficção tornaram-se mais presentes do que a realidade.” O mito enraizou-se no imaginário colectivo da nação. Ainda há trinta anos, o Portugal ensinado na escola primária era esse país imobilizado, pitoresco, de casinhas típicas, trajes tradicionais e gastronomia regional, de alfarrobas a secar nos telhados dos Algarves, dos socalcos vindimados do Douro, dos pastores da serra nevada e dos campinos da lezíria, dos moliceiros e dos rabelos. Hoje, mantém-se vivo nos programas de domingo à tarde, com forró das beiras e barrigas de freiras, cavacas e cavaquinhos, adufes e marafonas, vira que já não vira e torna a virar, nas eleições das aldeias mais portuguesas de Portugal e do mundo e nos panfletos turísticos assinados já não com mão de ferro, mas com a mão de veludo dos estrategas e dos marqueteiros, criadores de Allgarves e South Bays, dispostos a vender Portugal como paraíso intocado, reserva espiritual e natural onde ainda se criam portugueses — seja para consumo interno ou para exportação — e destino prime entre os destinos low-cost.

É mais do que óbvio que o país real — quer na versão de António Ferro e do Estado Novo, quer na versão moderna do país que está na moda — é menos real do que parece. A realidade na expressão “país real” não é intrínseca ao país que alegadamente descreve. Ou é tão intrínseca como o conceito de exotismo é intrínseco aos países e regiões ao qual é aplicado. A paisagem é sempre mais ordenada nos discursos sobre a paisagem do que na própria realidade. O conjunto de coisas — práticas, objectos, tradições — que constituem essa realidade é escolhido a dedo, quando não criado de raiz: romarias, doçarias, monumentos, castelos, pelourinhos, ranchos folclóricos, centros históricos e ar puro.

A narrativa aguenta-se até o verdadeiro país real irromper, sem pedir licença, no quotidiano televisivo das desgraças. Nesse momento, a ilusão do país de sucesso desfaz-se em pó e cinzas e o país real passa a ser o dos cem mortos em incêndios, do desordenamento do território, da desertificação do interior, do abandono e do desleixo, dos Palitos e dos eucaliptos, o país envelhecido, tombado para o litoral, sem futuro e sem esperança, à espera da morte natural e anunciada.

Mas entre as duas imagens do país real, a do segredo mais bem escondido da Europa e das vergonhas mais mal escondidas do mundo, há um, por assim dizer, terceiro país real que permanece no ângulo morto e não cabe quer nos discursos triunfais quer nos discursos apocalípticos. Um país que não encaixa em nenhum discurso de ordenamento do pensamento sobre o território e prospera no espaço de transição entre o campo e a cidade, entre o passado e a modernidade, entre o autêntico e o sofisticado (ambos falsos), entre o natural e o artificial.

Resistente a todos os esforços de domesticação, impróprio para venda, consumo e promoção, este é o país que gostaríamos de esconder no quarto das arrumações quando recebemos visitas, mas que tem o inconveniente de ser um país a céu aberto. Esse país não pode ser escalado, nem surfado, tem muitos buracos que não servem para golfe e as águas que por ele correm são tudo menos terapêuticas. É um gigantesco baldio onde as autoridades se esqueceram de pôr o aviso: “É proibido vazar entulho.”

Álvaro Domingues conhece-o bem porque escreve: “Entre as aldeias típicas e os centros históricos, cujo denominador comum é o passado extraordinário e a afirmação de supostas genuinidades, sobram territórios extensos e paisagens sem identidade física, sem memória. Paisagens ordinárias, amnésicas ou genéricas como os medicamentos sem marca.” Mas são essas paisagens que pedem reflexão, que imploram, no seu abandono, por um discurso. O olhar de Álvaro Domingues, visível nas fotografias que não apenas ilustram o livro, como são a sua essência, é já um discurso sobre esses não-lugares naturais que constituem grande parte do território português.

Por vezes, as suas legendas lacónicas e motejos subtis soam-nos a sarcasmo, ao divertimento impudico do citadino que se delicia com os pitorescos cartazes autárquicos, com a toponímia ambígua ou os erros ortográficos nos menus. Mas tanta e tão reiterada atenção ao feio, ao invulgar, ao inesperado, pressupõe uma reflexão, uma educação, para não dizer uma filosofia, do olhar, e um sentimento que poderá não ser amor, mas que denuncia encanto por um país que, no seu estado de desenvolvimento selvagem, resultado de megalomanias, incúria, falta de verbas e crises, resiste a ser integrado no grande parque de diversões e de actividades de lazer que parece ser o único futuro viável para Portugal. Este terceiro país não pode ser levado à UNESCO para aprovação e saudação, não é fado, nem cante, nem chocalho, nem bonequinhos de Estremoz, não é praia, nem resorts de luxo na costa alentejana, nem hotéis de charme no interior ressequido.

Álvaro Domingues, geógrafo (e veja-se como o seu olhar quase sempre evita a presença humana e quase nunca os vestígios que esta semeia ou com que polui a paisagem), assume-se como cronista vagabundo deste país de tanques de pedra e caravelas de gesso, de blocos erráticos e interrompidos, de santinhas e moinhos de vento, de azulejos e castelos de reis Ghob, de cemitérios de sanitas e de serras pontuadas de palmeiras. Tem o olhar treinado para o híbrido, para os painéis fotovoltaicos ao lado de hortas visigóticas, as antenas parabólicas que vigiam rebanhos de cabras semiurbanas, o xisto moderno e o alumínio tradicional da infatigável marquise, o tijolo nu encimado por telha verde, quase-gótica. Imagino-o a varrer a paisagem à procura não da harmonia e do enquadramento perfeito, mas do erro que ela inevitavelmente terá. E esse erro é que é sublime.

Com a banalização da paisagem, antigamente matéria de estudo para o espírito cultivado e hoje cenário para ser fotografado e partilhado aos pontapés, e o embaratecimento do sublime, só os erros que o olhar de Álvaro Domingues tão bem capta parecem ser capazes de emocionar: o espírito experimenta o terror sugerido por certas sombras ominosas dos quadros de Chirico, pelos seus objectos incongruentes, as suas formas ameaçadoras. Talvez porque não haja nada que inspire mais terror do que o vazio, e estas fotografias estão cheias desse vazio, de sentido, de gente, de memória, de palavras. Ao mesmo tempo, estão repletas de qualquer coisa profundamente nossa, como se representassem a parte da nossa identidade para a qual ainda não encontrámos as palavras. António Ferro falava dos jardins onde a alma colhe flores, mas não sabia que quase toda a nossa alma é baldio e que aqui só se colhe ferro-velho e azulejos partidos.

Há meses, em viagem por Terras de Basto, vi à porta de uma vivenda moderna um horrível anjinho em pedra com um Audi em fundo. Emocionou-me a fealdade evidente, a piedade vulgar e a terrível solidão do quadro, numa mistura atroz e sublime de recursos financeiros, mau gosto e sentir genuíno. O nosso sentimento religioso, aliás, raramente subiu a esferas mais elevadas, como se vê nesse lugar de devoção tétrica e comércio piedoso que é Fátima. Se Portugal tem de ser alguma religião, há-de ser esta, de anjinhos terríveis e silos que parecem catedrais, cujo breviário o irmão Álvaro teve a caridade de nos oferecer.

Texto lido na apresentação do livro Volta a Portugal, de Álvaro Domingues, e que agora se encontra publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO.