Quer salvar vidas? Pergunte-nos como — 2018 e o fazer tudo para prevenir
Que 2018 seja realmente um “ano saboroso” e que o primeiro-ministro perceba que a solução para que ninguém morra na estrada está nas suas mãos.
O primeiro-ministro de Portugal comprometeu-se, para 2018, a “fazer tudo o que tem de ser feito para prevenir, evitar, naquilo que é humanamente possível, tragédias como a que vivemos”.
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O primeiro-ministro de Portugal comprometeu-se, para 2018, a “fazer tudo o que tem de ser feito para prevenir, evitar, naquilo que é humanamente possível, tragédias como a que vivemos”.
Querer fazer tudo é bom, mas pueril. Nós também fomos adolescentes. Convém modestamente lembrar que a promessa “de fazer tudo” equivale o mais das vezes a não conseguir fazer nada. A resposta habitual ao “Ó Tó, arruma o teu quarto!”, não é um imediato e envergonhado assentimento, é um “Hoje não posso, mãe, tenho uma cena, mas prometo que amanhã arrumo tudo, não só o quarto como a casa, o planeta e ainda começo a estudar para os exames”.
E depois, diria Centeno, há o diabo do dinheiro: o dinheiro nunca chega para tudo. É curioso que o Orçamento Geral do Estado, o tal que define as prioridades do fazer, nunca elege como prioridade o estancar da mortandade nas estradas. O bom do ministro das Finanças, o que aperta os cordões da bolsa dos colegas, gere a conta-gotas a mesada, e ela nunca chega para salvar ninguém na estrada. Prometer “fazer tudo” é bom — infelizmente, demasiadas vezes é o prenúncio de um esperto “não fazer nada”.
Há coisas impossíveis (ou, vá lá, difíceis) de prevenir. É oportunista acusar um governo de quase ter ido atiçar fogos, com a sugestão espúria de que “se nós mandássemos isto não teria acontecido”. Seja o PS ou o PSD a tomar o volante da governação, é admirável o modo como o discurso vai mudando consoante um e outro são governo ou oposição. E no entanto, diria quem tem dois dedos de inteligência, não há razão nenhuma para mudar o discurso — porque cremos que os partidos estarão de acordo sobre o que deve ser feito: estancar a sangria, parar a tragédia. Desde logo, há que começar por deixar de lhe chamar tragédia. As mortes na estrada não são um epifenómeno casuístico, são quotidianas e previsíveis. É confrangedor que “os partidos do sistema” sejam tão pouco capazes de sistematização quando ela é precisa.
Quando nos excitamos com o sabor e o cheiro das “tragédias” ficamos cegos. Como quando há meses as televisões mostraram, cegas pelo espanto, imagens de automóveis calcinados ao longo da estrada. Não repararam que eram mortes na estrada? Não repararam porque as mortes na estrada são banais, e aqueles carros calcinados ofereciam, graças aos drones que os filmavam, “imagens excepcionais”. Mas, na verdade, excepcionais só as imagens.
Aos media o que é dos media, aos governos o que é dos governos. Governar ao sabor das paixões é sempre perigoso. Uma política de Estado que queira merecer o nome pode ser tudo, menos cega e casuística. Leva a equívocos, como os de se considerar Pedrógão Grande “a maior tragédia portuguesa de 2018”. Cada vítima é absoluta, foi uma vida que se perdeu estupidamente, e a sua falta é sentida por familiares, amigos, pela comunidade em que se inseria. Sessenta mortos num só dia é uma enorme perda. Mas, se é pelos números que queremos ir, será maior que os 650 mortos e 2000 feridos graves nas estradas, este ano?
As condições atmosféricas dos dias 17 de Junho e 15 de Outubro foram, dizem os peritos, “excepcionais”. Para mal dos pecados de quem prefere olhar para as árvores e não ver a floresta, as mortes na estrada não são excepcionais — são uma banal ocorrência, uma sangria diária. São, diria o Poeta, um fogo que arde sem se ver, uma dor que desatina sem doer e que leva muitos portugueses a um andar solitário por entre a gente.
O primeiro-ministro de Portugal anuncia que vai “fazer tudo o que tem de ser feito”. Ora, nós na ACA-M temos a solução. Como nos anúncios a dietas, andamos há bastante tempo a dizer aos sucessivos governos: “Quer acabar com a tragédia rodoviária? Pergunte-nos como.” A OMS diz com razão que as mortes são evitáveis e, para as evitar, não é preciso reinventar a roda. Há, tão só, que nos investirmos todos: o povo, os media, e os governantes.
O espaço num jornal é sempre um bem escasso. Não queremos contudo terminar sem indicar algumas medidas concretas para esse tal “fazer tudo o que tem de ser feito”. Até porque 2018 merece uma nota positiva mas não pueril. Eis então algumas respostas que ficam aqui penduradas à espera das perguntas que o Governo tem de fazer para começar a salvar vidas na estrada:
a) Os planos de segurança rodoviária têm de emanar da Assembleia da República, resultar de um acordo interpartidário, envolver os municípios, e ser devidamente orçamentados.
b) A palavra “acidente viário” deve ser abolida porque os desastres têm causas evitáveis e não são uma fatalidade fora do controlo humano.
c) A “carta por pontos” tem de ter efeitos práticos; os radares devem estar a funcionar, a fiscalização ser efectiva, os processos devem ser concluídos em tempo útil, e as polícias devidamente financiadas e responsabilizadas.
d) As verbas resultantes da cobrança das infracções rodoviárias devem ser canalizadas para a melhoria de gestão rodoviária, em vez de cair no saco geral do Orçamento do Estado.
e) A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária deve depender directamente da Presidência do Conselho de Ministros e não da Secretaria de Estado da Administração Interna.
f) As auditorias e as inspecções de segurança rodoviária devem cobrir toda a rede rodoviária nacional e ser implementadas com carácter de urgência, com garantias de imparcialidade e independência face aos concessionários das vias.
g) A punição do crime rodoviário deve ser eficaz e dissuasora, com penas de prisão efectivas e penas de serviço à comunidade, segundo o princípio da responsabilização dos infractores em vez da busca de culpados; a investigação do crime rodoviário deve incluir a busca de responsabilidades indirectas (do Estado, dos gestores das vias, dos fabricantes de veículos automóveis).
h) Deve ser introduzido no sistema jurídico português o princípio jurídico da inversão do ónus da culpa (ou da responsabilidade), segundo o qual o utilizador do veículo mais potente é sempre responsabilizado em caso de colisão com veículo mais frágil (motociclo ou bicicleta) ou atropelamento de peão, salvo prova em contrário.
Temos mais respostas em carteira. Mas terminamos com um simples voto: que 2018 seja realmente um “ano saboroso”, em que nunca mais um membro de um governo português seja apanhado a acelerar na estrada e que o primeiro-ministro perceba que a solução para que ninguém morra na estrada está nas suas mãos.
Bom ano e bom trabalho, senhor primeiro-ministro. Fundadores e directores da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados