A casa de um grande imperador romano está debaixo de um parque de estacionamento
Trajano não foi “só” mais um imperador romano – foi, segundo os seus contemporâneos, o melhor dos imperadores romanos. Uma exposição que marca os 1900 anos da sua morte mostra em vídeo e pela primeira vez a sua casa luxuosa, mas discreta. É a Roma secreta, outra vez.
Fazer obras em Roma é um pesadelo porque a quantidade de património que o seu subsolo esconde é quase infinita. A cidade histórica não deixa, por isso, de surpreender constantemente, por mais que arqueólogos, historiadores e outros especialistas a estudem até à exaustão.
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Fazer obras em Roma é um pesadelo porque a quantidade de património que o seu subsolo esconde é quase infinita. A cidade histórica não deixa, por isso, de surpreender constantemente, por mais que arqueólogos, historiadores e outros especialistas a estudem até à exaustão.
A exposição Trajano. Construir o império, criar a Europa, que abriu no final de Novembro e se prolonga até Setembro do próximo ano, no mercado que tem o nome deste imperador romano que começou por ser um chefe militar respeitado, vem mostrar pela primeira vez e em vídeo um desses segredos da cidade eterna, inacessíveis e, talvez por isso, ainda mais fascinantes. Trata-se da casa de Marco Ulpio Trajano (53-117), imperador entre 98 e 117, e da sua mulher, a culta e influente Pompeia Plotina, hoje sepultados num dos mais singulares monumentos de Roma.
O vídeo mostra aos visitantes o mundo subterrâneo de onde provêm os fragmentos de frescos que agora se podem ver na exposição, ao lado de relevos e esculturas, moedas de ouro e de prata, peças de cerâmica e jóias, escreve o diário espanhol ABC. Estes pedaços de parede pertenceram à villa onde Trajano vivia antes de se tornar imperador, na sequência da morte do seu pai adoptivo, Nerva. A casa fica numa das famosas sete colinas de Roma, o Aventino, e está hoje escondida sob uma praça onde se ergue um templo à deusa Diana, atravessada todos os dias por centenas de pessoas que, muito provavelmente, não fazem ideia do que está por baixo dos seus pés, a dez metros de profundidade.
Para aceder a esta villa que não se vê, num bairro residencial do centro histórico da cidade, os espeleólogos e arqueólogos têm de entrar por uma tampa de esgoto no parque de estacionamento da referida praça e de percorrer, depois, um túnel muito estreito que leva a uma série de cinco salas (com um pé direito de seis metros, segundo a rádio americana WTOP) muito bem conservadas, com paredes de decorações sóbrias, com motivos vegetalistas, pássaros e borboletas.
Esta casa subterrânea, assim como o aqueduto que também leva o nome do general que haveria de comandar os destinos de Roma sem deixar de comandar os seus exércitos, estão entre as surpresas de Trajano. Construir o império, criar a Europa, a exposição instalada no célebre mercado que é muitas vezes descrito como o primeiro centro comercial da história.
A casa e o aqueduto são duas faces da mesma moeda – a primeira diz respeito à esfera privada deste governante que expandiu o império e que fez da guerra a sua arte; o segundo, uma impressionante obra de engenharia hidráulica com 32 quilómetros e destinada a transportar a água do lago de Bracciano para a cidade eterna, é um exemplo do seu compromisso com a causa pública, um projecto que, tal como algumas das leis e dos procedimentos administrativos que fez aprovar, lhe garantiu grande popularidade e o “título” de optimus princeps, expressão latina para “o melhor dos imperadores romanos”, usado por um importante historiador seu contemporâneo, Plínio, o Jovem, quando se lhe referia.
Façam o favor de ser felizes
A exposição marca os 1900 anos da morte daquele que foi o primeiro imperador romano originário de uma das províncias – nasceu na Bética, hoje Andaluzia, perto da actual Sevilha – e celebra um grande estratega militar e político, que contava com a lealdade cega dos seus homens e subiu rapidamente na hierarquia, acabando por se tornar imperador.
“Trajano leva o império à sua máxima extensão (6,5 milhões de quilómetros quadrados, dos quais cinco milhões correspondem à Europa actual), mas as suas conquistas não se orientam pelo princípio da submissão [dos povos conquistados], antes pelo da inclusão”, disse ao jornal ABC o historiador Claudio Parisi Presicce, responsável por esta exposição dividida em sete núcleos que começa cronologicamente com a morte do imperador, e que quer mostrar que o governante soube exercer a sua autoridade procurando consensos e mantendo-se atento às necessidades das populações mesmo nos territórios mais distantes de Roma.
“Trajano soube trazer alegria aos romanos”, escrevia já no seu tempo Plínio, o Jovem, recordam os comissários no catálogo da exposição. “Ele mandou-nos ser felizes e sê-lo-emos.”
Trajano. Construir o império, criar a Europa tem centenas de peças que evocam o governante e o seu império e, mercê da localização, beneficia da proximidade de outros ícones arquitectónicos de Roma a ele ligados, como a célebre coluna de mármore com 38 metros de altura e coberta com 135 baixos-relevos (alguns dos quais reproduzidos na exposição) que figuram cenas da sua campanha vitoriosa contra os dácios (a Dácia corresponde, grosso modo, às actuais Roménia e Moldávia), entre os anos de 101 e 106. É na base deste monumento que estão as cinzas de Plotina e de Trajano, que morreu na Ásia Menor, quando regressava a casa depois de combater na Pártia (actual Irão).
Trajano casou com Plotina, nascida numa família com grande importância política, quando não era ainda imperador. Embora haja quem defenda que esta mulher com um interesse profundo pela filosofia esteve envolvida na morte do marido, a maioria vê-a como uma figura forte capaz de influenciar as suas decisões, quer tivessem a ver com a cobrança de impostos, quer dissessem respeito à educação.
O imperador e as mulheres
Plotina, assim como a irmã de Trajano, Marciana, e a sobrinha Matidia, tinha no império um papel cívico semelhante àquele que hoje desempenham algumas cabeças coroadas europeias e mulheres de chefes de Estado espalhadas pelo mundo. Procuravam melhorar as condições de vida dos mais pobres, envolvendo-se, por exemplo, no alimenta, um programa de assistência social que está bem documentado e era suportado, primeiro pelo espólio da guerra na Dácia e, depois, por impostos estatais e por doações. Através dele, o tesouro imperial concedia empréstimos aos proprietários de terras para que os seus campos fossem cultivados e parte dos alimentos e dividendos daí resultantes colocados numa espécie de reserva destinada a órfãos e outras crianças sem recursos.
“Trajano era um guerreiro, dizem-no as fontes históricas, mas o que ganhava com a guerra investia no território”, disse na apresentação da exposição Lucrezia Ungaro, uma das comissárias, citada pela agência de notícias EFE. No seu império, lembrou ainda, o território era tratado como um só – ainda que as províncias mantivessem algumas especificidades, sobretudo de índole religiosa, as leis que as regiam e as infra-estruturas que nelas se construíam (pontes, estradas, aquedutos) eram os mesmos. De certa maneira, argumentam os seus comissários, há em Trajano um “projecto de inclusão” semelhante ao que deu origem à União Europeia, com políticas económicas e sociais comuns.
Outra semelhança com a Europa de hoje, dirão os mais críticos, é o peso da sua administração: “Com Trajano começamos a assistir àquilo que hoje chamamos burocracia”, diz Mary T. Boatwright, do departamento de Estudos Clássicos da Duke University, Estados Unidos, uma das instituições internacionais que colaboraram com a equipa científica da exposição italiana. Para esta professora de história citada pela rádio de Washington, a WTOP, o imperador era um governante firme e a sua administração, apesar de pesada, exemplar.
Associando boas campanhas de comunicação – convencer o povo de que o que estava a propor fazia sentido era uma das suas principais ferramentas de governação – a um programa de obras públicas abrangente, Trajano garantiu um império apaziguado, ainda que a sua intensa estratégia de conquistas tenha acarretado alguns problemas económicos que o imperador seguinte, o revolucionário Adriano, se encarregaria de resolver. Mais interessado na arte do que na guerra, o sucessor que elegeu – defendem alguns historiadores com base em relatos da época, que foi Plotina quem na realidade o escolheu, já depois de morto o imperador, fingindo ter sido Trajano a fazê-lo – está também entre os prínceps de Roma que a História não esquece.