A porta dos fundos
As alterações à lei do financiamento partidário mantêm o mesmo sórdido esquema de engenharia contabilística dos partidos.
O Parlamento acaba de aprovar a sétima alteração à Lei 19/2003, de 20 de Junho, sobre o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Como é hábito, todos os partidos (excepto CDS e PAN) se puseram de acordo, esforçando-se (mas pouco...) a argumentar a necessidade de introduzir na lei um conjunto de clarificações “de modo a superar dúvidas de inconstitucionalidade dos procedimentos”. Na verdade, em termos substantivos, o pouco que muda é para pior.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O Parlamento acaba de aprovar a sétima alteração à Lei 19/2003, de 20 de Junho, sobre o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Como é hábito, todos os partidos (excepto CDS e PAN) se puseram de acordo, esforçando-se (mas pouco...) a argumentar a necessidade de introduzir na lei um conjunto de clarificações “de modo a superar dúvidas de inconstitucionalidade dos procedimentos”. Na verdade, em termos substantivos, o pouco que muda é para pior.
É eliminada a limitação existente à angariação de fundos. Se é certo que a subvenção pública para as campanhas eleitorais nunca ultrapassa o valor efectivo de despesa, até porque estas nunca ficam prudentemente balizadas pela previsão de encaixe orçamentada, também não há memória de excedentes provenientes de acções de angariação de fundos revertidos a favor do Estado, como previsto na lei. A angariação de fundos é uma roda livre de operações financeiras com elevado grau de informalidade que carece de maior reflexão e de um normativo mais consentâneo com as boas práticas internacionais, em prol das exigências de transparência e rigor.
A isenção do IVA é alargada para todas as aquisições e transmissões de bens e serviços e não apenas das que dizem respeito à difusão de mensagens políticas ou identidade própria dos partidos. Serviços de comunicação e pareceres pagos a preço de ouro, veículos topo de gama, sondagens de popularidade, tudo merece o beneplácito do contribuinte, sem que se tenha aumentado o nível de exigência no desenvolvimento de órgãos capacitados e procedimentos rigorosos de fiscalização e controlo interno.
O facto de a organização contabilística dos partidos se fazer reger pelos princípios aplicáveis ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC), com as devidas adaptações, é um mero formalismo, que não altera a tendência verificada nos últimos anos, a de burocratização do sistema de controlo. O SNC é apenas um novo modelo de normalização contabilística, que sucede ao Plano Oficial de Contabilidade (POC), sem que isso leve, por si só, a uma melhor detecção e redução dos riscos e informalidades existentes.
Mantém-se o mesmo sórdido esquema de engenharia contabilística dos partidos. A separação entre contas dos partidos e contas de campanha, recomendada pelas boas práticas internacionais, é inexistente. Podem ser feitos adiantamentos dos partidos às contas de campanha a qualquer hora e a qualquer momento, considerados, para efeitos contabilísticos, como uma dotação provisória à campanha, a reembolsar após o recebimento da subvenção estatal. Seria mais transparente e rigoroso que a dotação dos partidos às campanhas eleitorais fosse feita de uma só vez e com base num orçamento de campanha realista e vinculativo.
Os partidos não querem ultrapassar a informalidade reinante nas campanhas eleitorais, sobretudo durante eleições autárquicas. A Proposta de Lei aprovada refere que as despesas eleitorais inferiores a 421 euros (= 1 IAS) são passíveis de serem pagas em numerário e “podem ser liquidadas por pessoas singulares, a título de adiantamento, sendo reembolsadas por instrumento bancário que permita a identificação da pessoa, pela conta da campanha eleitoral”. Estes pequenos adiantamentos feitos por pessoas singulares sem qualquer responsabilidade formal na prestação de contas pode até dar jeito aos partidos, mas não acresce às exigências de rigor e transparência do financiamento de campanhas eleitorais.
A clarificação de competências entre a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) e o Tribunal Constitucional (TC) — artigos 24.º e 33.º — é meramente formal, sem qualquer repercussão na eficácia e eficiência do sistema de controlo instituído. Bem pelo contrário. Em vez de reflectir e procurar mitigar os constrangimentos humanos, financeiros e organizacionais à actuação da ECFP, o legislador optou por dilatar os prazos de apreciação das contas eleitorais por este organismo. Tendo em conta que as contas são posteriormente submetidas ao colectivo de juízes do TC, sendo susceptíveis de interposição de recurso com efeitos suspensivos, tudo continuará a decorrer com a mesma falta de celeridade e de sentido de oportunidade que tem pautado a actuação da ECFP ao longo dos anos.
Percebe-se agora porque é que a formulação do novo diploma pelo Grupo de Trabalho – Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais (GT-FPCE) decorreu à porta fechada e foi divulgado em cima da hora. Não é surpreendente que os autores defendam a sua dama e refiram que “os trabalhos preparatórios decorreram sob o signo de um largo consenso entre grupos parlamentares e contaram com a colaboração institucional das entidades relevantes no processo”. O que é preocupante é que os mesmos tenham avançado novamente com uma reforma faz-de-conta, em circuito fechado. Na página web do GT-FPCE não existe qualquer registo de audições ou pareceres de entidades públicas ou da sociedade civil (http://www.parlamento.pt/sites/com/XIIILeg/1CACDLG/GTFPCE/Paginas/default.aspx). Consolida-se, deste modo, uma forma de trabalhar contrária aos pressupostos da Declaração para a Abertura e Transparência Parlamentar (Res. AR 64/2014) e que alimenta ainda mais a suspeita de que os partidos, nesta matéria, legislam em causa própria e portanto fazem leis à medida. Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro fundador da TIAC – Transparência e Integridade Associação Cívica