Um circo que é um horror
O célebre P.T. Barnum e a Nova Iorque de meados do século XIX a traço grosso, sem qualquer atenção às personagens e com a constante poluição de números musicais, todos assustadoramente maus.
Imagine o leitor que o Freaks de Tod Browning era tomado de assalto por uma daquelas bandas enervantes que dominam os tops globais (os Coldplay, por exemplo), e restituído numa sucessão de números musicais insípidos e formatados, ao estilo daqueles programas de “novos talentos” que pululam pelos canais de televisão. Se conseguir imaginar isso, fica perto de estar a “ver” O Grande Showman, a última réplica, no sentido sismológico do termo, de um dos maiores desastres da Hollywood contemporânea, a “redescoberta do musical”.
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Imagine o leitor que o Freaks de Tod Browning era tomado de assalto por uma daquelas bandas enervantes que dominam os tops globais (os Coldplay, por exemplo), e restituído numa sucessão de números musicais insípidos e formatados, ao estilo daqueles programas de “novos talentos” que pululam pelos canais de televisão. Se conseguir imaginar isso, fica perto de estar a “ver” O Grande Showman, a última réplica, no sentido sismológico do termo, de um dos maiores desastres da Hollywood contemporânea, a “redescoberta do musical”.
Aliás, percebe-se mal a necessidade de conjugar o musical com a história contada pelo filme: a do célebre P.T. Barnum, que na Nova Iorque de meados do século XIX, começando com um contingente de indivíduos singulares (mulheres barbudas, anões, gigantes, etc) no que não era mais do que um freak show, acabou por inventar o espectáculo circense tal como o entendemos hoje.
Claro que o filme, bem imbuído da vontade de ter alguma coisa a dizer sobre o presente de 2017, aproveita isso para virar o bico ao prego, usando as “atracções” de Barnum como afirmação e elogio da diferença, contra o preconceito daqueles que apenas vêm ali monstros e aberrações; mas é tanta a inépcia de Michael Gracey (que se estreia no cinema vindo da publicidade e dos telediscos, coisa que se adivinha só de ver o filme) que esse grupo de figuras nunca se individualiza, é sempre uma nuvem que nunca produz personagens singulares, são “falsos freaks” a clamarem desesperadamente por que os tomem por algo de genuíno — esqueçam o Browning de que falámos a abrir, esqueçam até as fotografias de Diane Arbus, tudo aqui é plástico e maquilhagem.
Depois, através da personagem de Barnum (Hugh Jackman), é a história americana clássica do self made man, feito de um misto de tenacidade empreendedora e oportunismo charlatão, que se deslumbra com o sucesso e o dinheiro até ao momento em que apanha um banho de humildade e encontra a justa medida entre a ganância e a compaixão (o que é também uma “moral capitalista” típica, nos contos de fadas de Hollywood se não na vida real). Mas tudo dado a traço grosso, sem qualquer espécie de atenção às personagens ou esmero na construção narrativa (é ver como o filme, que pretende passar uma mensagem tão “moderna”, não consegue encontrar um lugar para a personagem da senhora Barnum, Michelle Williams, a não ser “estar em casa”, em casa do marido ou dos pais) e com a constante poluição dos números musicais, todos eles assustadoramente maus, na coreografia como na música. É um desastre, daqueles bem difíceis de suportar. Sintomaticamente, já está nomeado para os Globos de Ouro.