“Como era o bêbado, puseram-me a enterrar os mortos”
Abstémio há 38 anos, Carlos Brito dedica-se, em regime de full time, a encaminhar alcoólicos para um centro de alcoologia por onde passam mais de duas mil pessoas por ano. Muitas são mandadas pelos tribunais, depois de episódios de violência ou por terem conduzido embriagadas.
“Bati na mulher, a mobília de casa saiu pela janela. Tentei suicidar-me. Respondi 14 vezes em tribunal por ‘andar à porrada’ com a polícia. Vendi o meu próprio sangue para ter dinheiro para beber." Alcoólico recuperado há 38 anos, Carlos Brito descreve um passado de dependência em rajadas certeiras. “Fui um farrapo humano. Na Guarda, só tinha três portas abertas para mim: a esquadra da polícia, o hospital e o tribunal”, dispara, cara magra, vincada por um passado que se habituou a usar como exemplo a não seguir.
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“Bati na mulher, a mobília de casa saiu pela janela. Tentei suicidar-me. Respondi 14 vezes em tribunal por ‘andar à porrada’ com a polícia. Vendi o meu próprio sangue para ter dinheiro para beber." Alcoólico recuperado há 38 anos, Carlos Brito descreve um passado de dependência em rajadas certeiras. “Fui um farrapo humano. Na Guarda, só tinha três portas abertas para mim: a esquadra da polícia, o hospital e o tribunal”, dispara, cara magra, vincada por um passado que se habituou a usar como exemplo a não seguir.
Este à-vontade percebe-se melhor quando desembainha a agenda vermelha e gorda que transporta para mostrar as dezenas de nomes e respectivos números de telefone que enchem as páginas correspondentes às segundas-feiras. São os alcoólicos que, a partir da Guarda, onde mora, reencaminha para a Unidade de Alcoologia do Centro (UAC), para tratamento. Nomes e mais nomes desenhados a azul, as recaídas a vermelho. “Ando nisto desde que formei o Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda."
É deste centro, e dos restantes três que funcionam nos concelhos vizinhos, que provêm quase 20% dos doentes da UAC. Outra fonte de referenciação importante, descreve a coordenadora do serviço, Ana Feijão, são os tribunais. “Pessoas ‘apanhada' a conduzir em estado de embriaguez e por violência doméstica”, precisa a médica. Com uma idade média a rondar os 45 anos, a “maior parte ainda casados”, têm maioritariamente baixa escolaridade os utentes que, ao longo dos anos passaram pela UAC a um ritmo médio de 2000 a 2500 por ano, dos quais “à volta de 500 ficam internados” anualmente.
Mas também por aqui passam “juízes, políticos, padres”, ou não se tratasse, como sublinha Feijão, “de uma doença completamente transversal”. O acesso ao tratamento pode ser conseguido directamente no serviço, a partir de um simples telefonema. “Fizemos questão de manter a acessibilidade directa, porque as pessoas nem sempre estão dispostas a passar por outras instâncias. É frequente, aliás, sermos procurados por pessoas de Lisboa ou de outras zonas do país.”
Quando corre bem, à saída, a vergonha associada à procura de tratamento desvaneceu-se. “Uma pessoa tomar consciência de que está doente e procurar tratamento é um acto de inteligência. Procuramos que percebam isso. E que, quando saem, não só não tenham vergonha como falem da sua história e ajudem outros a cá chegar."
Carlos Brito entrou no dia 22 de Abril de 1980 e saiu três semanas depois. “Na altura, muita gente não vinha, com vergonha, porque ligava o seu tratamento à psiquiatria." Foram precisos muitos anos para combater o estigma. Garantir que por ali passavam “pessoas normais com um problema de dependência”. Muitas conversas a explicar que nem os vómitos matinais eram por causa do tabaco nem os tremores eram do sistema nervoso. A contextualizar os delírios de ciúme, outra característica comum a muitos alcoólicos. “Hoje, olho para uma pessoa e detecto a olho nu se tem problemas de alcoolismo”, garante Carlos Brito.
Pelas suas mãos, já passaram “juízes, padres, advogados, psicólogos, assistentes sociais”, diz. “Só me faltam uma freira e uma mulher polícia”, gargalha, para voltar a recuar aos tempos em que, a troco de um garrafão de vinho, se dispunha, e muitos como ele, a passar uma noite a colar cartazes, se lho pediam. “Tinha sido mobilizado para Angola a 29 de Maio de 1974. Como era o bêbado, puseram-me a enterrar os mortos." A troco de álcool. “Na altura, já tinha dois filhos. Quando, finalmente, deixei de beber, o mais velho tinha dez anos." Muitos anos depois, quando o filho dobrou os quarenta, Carlos Brito trouxe-o pela mão para o internar. “No melhor pano cai a nódoa." Depois de saírem, nenhum deles voltou a beber.