E tudo o Natal levou
Na noite de Natal, o chinelinho ficava em cima do fogão, esperando a descida do velhote por uma chaminé que preocupava tanto pela estreiteza como pela fuligem
Todos os anos era a mesma coisa. A árvore tinha cheiro e áreas em que a escuridão brindava a imaginação, era de seiva bruta, ficava num canto onde te sentavas mirando as bolas que chegavam a espelhar-te. Em baixo, colocavas a carta, ditada ou escrita com a antecipação natural. Os pedidos tinham conta certa, que o Pai Natal não era absoluto, havendo, claro, que reflectir o currículo moral. Não havia culpa sequer, o Pai Natal era absolutamente bondoso e o perdão não tinha conta certa.
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Todos os anos era a mesma coisa. A árvore tinha cheiro e áreas em que a escuridão brindava a imaginação, era de seiva bruta, ficava num canto onde te sentavas mirando as bolas que chegavam a espelhar-te. Em baixo, colocavas a carta, ditada ou escrita com a antecipação natural. Os pedidos tinham conta certa, que o Pai Natal não era absoluto, havendo, claro, que reflectir o currículo moral. Não havia culpa sequer, o Pai Natal era absolutamente bondoso e o perdão não tinha conta certa.
Na noite de Natal, o chinelinho ficava em cima do fogão, esperando a descida do velhote por uma chaminé que preocupava tanto pela estreiteza como pela fuligem. Tu eras mandado para a cama e juravas que ias manter-te acordado para ver o Pai Natal em pessoa chegar com os presentes. Mas, como sempre, adormecias, e o velho escarlate revelava-se apenas no sonho. Ao acordares, ias com medo espreitar a desilusão de não o teres visto trazer a tua felicidade matutina. Dizíamos-te que o Pai Natal só aparece durante o sono, ficando a restar a tua promessa desconfiada de o encontrares no ano seguinte.
Mas o que se seguiu em anos foi o esquecimento. Deixaste de acreditar. A árvore de Natal passou a ser de plástico e tu substituíste a noção cristalina de "bem" por uma visão escrupulosa de um caminho de pedra onde já não plana o trenó em ascensão nostálgica.
Dizem-me que cresceste, que perdeste as ilusões, que os teus interesses são, agora, outros. Mas eu não me conformo. E, por isso, guardo, ainda, a tua infância numa gavetinha. Tenho a chave ao peito, dar-ta-ei quando fizeres o caminho de retorno, voltando a nascer junto de mim, no reino do Norte, na cadeira do Pai Natal, presenteando a inocência.
Quando chegares, não te contarei que houve um dia, quando eu própria era pequenina, em que, acudindo à prateleira na manhã natalícia, nada tinha para mim, nem os rebuçados dos outros anos. Chorei, pensando que era castigo do menino Jesus por me ter portado mal. Para que parasse de me lamentar, disseram-me que não havia nada, que os presentes eram deles e não do menino divino, que, nesse ano, as coisas tinham corrido mal. Não, não te contarei, que nunca regressei completamente daquele momento, porque quero que regresses para mim, numa noite sem sonho.