Como quer “continuar espanhol”, desta vez Rubio vai mesmo votar
São “as eleições mais estranhas e tristes” da democracia mas terão uma participação recorde. ERC e Cidadãos disputam o primeiro lugar e cada voto conta. “Desta vez parece que estás obrigado a tomar posição”.
Pilar não tinha tempo nenhum, ia “visitar uma amiga”; Maria não se importava de falar mas agora a amiga é que não se cala. Pelo meio aparece Rubio, que Pilar conheceu “na barriga da mãe”. Aos 36 anos, leva o mais novo dos três filhos pela mão. Despede-se e começa a subir a rua (por aqui é quase impossível não subir ou descer, poucas são as rectas), ainda Pilar faz piadas.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Pilar não tinha tempo nenhum, ia “visitar uma amiga”; Maria não se importava de falar mas agora a amiga é que não se cala. Pelo meio aparece Rubio, que Pilar conheceu “na barriga da mãe”. Aos 36 anos, leva o mais novo dos três filhos pela mão. Despede-se e começa a subir a rua (por aqui é quase impossível não subir ou descer, poucas são as rectas), ainda Pilar faz piadas.
A conversa acaba com Maria a dizer a Pilar para, nas eleições autonómicas desta quinta-feira, votar Partido dos Socialistas Catalães, explicando que o “importante é votar num dos três constitucionalistas”. Já o tinha dito a Rubio. “Votes o que votes, não te enganes”. Rubio não se vai enganar, tem é pressa, vai buscar outro filho ao ginásio. “Ginásio? Que luxos são esses?”, pergunta Pilar. “Agora temos um, na rua Julia”.
Estamos no pequeno bairro de Torre Baró, parte da freguesia de Nou Barris. Para aqui chegar de carro ou autocarro é preciso sair de Barcelona por via-rápida e voltar a entrar.
O bairro que nasceu na montanha pelas mãos dos operários que chegaram nos anos 1960 de outras zonas de Espanha foi dos que menos votou nas últimas eleições autonómicas, em 2015: na Catalunha votaram 77% dos eleitores, em Barcelona 75%, em Nou Barris 72%, aqui apenas 58,4%. Com as sondagens a anteciparem uma participação de 80 a 82% terão de sair daqui alguns dos novos eleitores. Como Rubio.
“Nunca votei na vida. Mas parece que desta vez te sentes obrigado a tomar posição”, diz. “É mais importante sim, conheço outros que se vão estrear como eu. Porque aqui ninguém quer a independência, queremos continuar espanhóis. Espanhóis e catalães, como sempre”.
No pequeno bairro de Torre Baró não há bandeiras independentistas nem de Espanha à janela, como em tantas varandas e prédios dos bairros centrais de Barcelona. Aqui há cartazes, principalmente da ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), mas estão pichados de azul, e há uma grande faixa vermelha pendurada nas grades de protecção de uma das vias-rápidas que rodeiam Torre Baró: “Vota Socialistas”, lê-se.
Maria, 65 anos, nem sempre votou, mas sempre que o fez votou PSC. “Não tem a ver com o candidato, foi o partido que sempre me agradou”, afirma. Tradicionalmente, o PSC era o partido das zonas operárias, como esta. Hoje, o Cidadãos prepara-se para lhe roubar muitos eleitores nas cinturas urbanas das principais cidades.
“Vou votar, sim, ali acima, ao Picasso”, o liceu de um bairro com poucos cafés, um restaurante de pizzas e kebabs, um supermercado e pouco mais comércio. “Em quem não digo. A idade também não. Menos de 100. Mas sou bonita, não sou?”, dispara Pilar, casaco comprido e brincos de mola roxos nas orelhas. “Enfim, dizem que já fui”. “A minha mãe sempre me disse, ‘Mariquitas, não há outra como tu’”, diz a amiga, de fato de treino vermelho. “Ai, a minha não teve tempo, morreu tinha eu oito anos”, conta Pilar.
Torre Baró e Pedralbes
Pilar conheceu mesmo Rubio na barriga da mãe. “Vim para aqui há 46 anos, mas já tenho 53 de Barcelona”, diz. Maria sabe que veio aos três anos e logo para esta área. “Vivi aqui toda a vida, antes num bairro ao lado, Ciudad Meridiana, depois aqui”, recorda Maria. Ciudad Meridiana, que com Torre Baró forma uma espécie de enclave em Nou Barris, é o bairro mais pobre de Barcelona. “Ah, sim? Eu antes vivia em Pedralbes”, responde Pilar, olhos muito abertos. Pedralbes é um dos bairros mais ricos de Espanha.
Maria nasceu em Saragoça, Pilar em Jáen e ainda viveu em Granada antes de vir para a Catalunha. Andaluzia ou Aragão são duas das muitas regiões de Espanha de onde vieram tantos catalães ou os seus pais. Dos 5,553,983 eleitores, sete em cada dez nasceu na Catalunha, um em quatro no resto de Espanha.
Este não é um bairro com muita cor. Mas algum investimento recente permitiu transformar parte do que era autoconstrução em prédios novos, todos brancos, como os da recente urbanização da praça dos Eucaliptos, uma praça que tinha deixado de o ser e que agora tem direito a parque infantil, aparelhos de ginástica para os mais crescidos, quatro eucaliptos em homenagem à praça original e mais umas tantas árvores.
“Estas são as eleições mais estranhas e tristes desde a democracia”, escreveu na sua coluna habitual o antigo director do jornal catalão La Vanguardia, Enric Juliana.
O governo de coligação PDeCAT (Partido Democrata Europeu Catação) e ERC, com o apoio da CUP, cumpriu o seu programa e realizou um referendo sobre a independência que a Justiça suspendera e entretanto considerou ilegal. Com muitos obstáculos, votaram 2,2 milhões de catalães, e a esmagadora maioria escolheu a soberania. A votação, que Madrid garantiu que não aconteceria, ficou marcada por cargas policiais. Semanas depois, o presidente Carles Puigdemont declarou a independência.
A resposta de Madrid já estava anunciada: Mariano Rajoy aplicou pela primeira vez em Espanha o artigo 155 da Constituição, que nesta interpretação lhe permitiu dissolver o parlamento, demitir o governo, assumir a gestão da Catalunha (que entregou à sua vice, Soraya Saénz de Santamaría) e convocar eleições.
16 deputados investigados
É provável que o vencedor se encontre na prisão (Oriol Junqueras, líder da ERC), enquanto outro cabeça de lista, Carles Puigdemont, está na sua fuga/ auto-exílio de Bruxelas. Entre exilados, detidos ou não, 16 deputados com eleição garantida são investigados ou estão já acusados de “sedição” ou “sedição, rebelião e desvio de fundos” por causa do referendo e do processo independentista.
A estranheza aumenta com um voto tão próximo do Natal e a um dia de semana (as urnas encerram às 19h desta quinta-feira, hora de Lisboa). Depois de três meses de alta intensidade, os catalães parecem decididos a ir às urnas em massa, num último esforço para fazer ouvir a sua vontade. É provável que o resultado seja a ingovernabilidade. E é possível que ganhe um partido unionista, o Cidadãos, enquanto o bloco independentista fica muito próximo de repetir a maioria.
Contados os votos, uns ficarão furiosos, outros frustrados, que é como muitos catalães estão há demasiado tempo. Uma derrota dos independentistas será festejada em Torre Baró e chorada noutros lugares. ERC e Cidadãos preparam palcos para a (longa) noite eleitoral. Depois, vão seguir-se semanas de ressaca e algum descanso. A sessão inaugural do novo parlamento não deve acontecer antes da segunda quinzena de Janeiro.