Ratinhos Beethoven recuperaram a audição após edição genética
Uma equipa de cientistas conseguiu corrigir, em ratinhos, uma mutação num gene que está associado à perda de audição progressiva nas pessoas. A estratégia usada para esta edição genética pode contribuir para desenvolver tratamentos mais simples e seguros para problemas hereditários de surdez.
Muitos não o conhecem, mas o ratinho Beethoven é conhecido no seu meio, mais científico. Trata-se de um modelo animal que é usado especificamente para estudo da perda auditiva e surdez e que carrega uma versão humana da mutação que causa estes problemas. Um ratinho mutante, portanto. A equipa de cientistas que publica esta quinta-feira um artigo na revista Nature usou ratinhos Beethoven para mostrar que é possível corrigir uma mutação genética associada a uma perda auditiva progressiva que resulta em surdez. A edição foi feita através de injecções no ouvido de ratinhos recém-nascidos que continham uma cápsula para transportar a enzima (a “tesoura”) que corrige o erro no gene.
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Muitos não o conhecem, mas o ratinho Beethoven é conhecido no seu meio, mais científico. Trata-se de um modelo animal que é usado especificamente para estudo da perda auditiva e surdez e que carrega uma versão humana da mutação que causa estes problemas. Um ratinho mutante, portanto. A equipa de cientistas que publica esta quinta-feira um artigo na revista Nature usou ratinhos Beethoven para mostrar que é possível corrigir uma mutação genética associada a uma perda auditiva progressiva que resulta em surdez. A edição foi feita através de injecções no ouvido de ratinhos recém-nascidos que continham uma cápsula para transportar a enzima (a “tesoura”) que corrige o erro no gene.
É preciso uma afinada orquestra de vários mecanismos a funcionar, para chegarmos ao espantoso momento de ouvir um som. Foquemo-nos no interior do nosso ouvido. Temos, por exemplo, minúsculas estruturas parecidas com pêlos (ou, se preferirem, cordas de um instrumento) chamadas células ciliadas, que são receptores sensoriais do sistema auditivo, que cobrem a cavidade em forma de espiral (cóclea) no labirinto ósseo e que reagem às ondas de som. O movimento destas cordas leva à acumulação de proteínas na sua base e isso faz com que seja emitido um sinal eléctrico para o cérebro.
Estudos anteriores já tinham demonstrado que mutações numa destas proteínas, a TMC1, conduziam a uma progressiva perda auditiva. Trata-se de uma mutação dominante, o que significa que basta que uma das cópias do gene carregue a mutação para que os problemas de surdez surjam. Os sintomas começam ainda durante a infância e vão evoluindo associados também a uma degradação e morte de células ciliadas. O processo, dizem os especialistas, demora entre dez e 15 anos até chegar à surdez. Cerca de metade dos casos de surdez são causados por factores genéticos.
Não se sabe se a surdez de Ludwig van Beethoven estava associada a esta mutação específica. Mas os ratinhos mutantes usados na experiência relatada na Nature (e que já foram usados em estudos anteriores), com a versão humana da mutação no gene TCM1, mereceram o nome do compositor alemão. O trabalho foi realizado por cientistas nos EUA e na China e liderado por David Liu, investigador do Instituto Broad do MIT-Harvard e professor na Universidade de Harvard que, em 2016, assinou um artigo na Nature que mostrava como era possível, através de uma “cirurgia química”, substituir o par de “letras” C-G pelo par A-T sem qualquer corte na cadeia de ADN. Em Outubro deste ano, David Liu apresentava (também na Nature) mais um avanço desta técnica que desenvolveu mostrando que esta “cirurgia química” pode ser usada nas quatro bases do genoma, as quatro “letras” do nosso ADN.
No artigo publicado agora, os cientistas injectaram nos ouvidos de ratinhos um composto que levava a enzima Cas 9 (que funciona como tesoura molecular e “apaga” o erro no gene) dentro de uma cápsula de lípidos. É assim uma estratégia que não recorre a um vírus que é normalmente o método mais usado para transportar a tesoura molecular, a Cas9 guiada por uma molécula de ARN que se liga à enzima e também ao lugar certo para corrigir o erro no gene. O nome da técnica de edição deste jogo de corta e cola genes é já conhecido, é a CRISPR-Cas9. Neste caso, o erro no gene é apagado e a versão com mutação fica inactiva.
Os ratinhos (e as pessoas) com esta mutação têm duas cópias do gene, mas, tal como já se disse, a versão com mutação prevalece em relação à normal. Os cientistas têm, portanto, a tarefa de levar a tesoura especificamente até às células ciliadas, encontrar em cada uma destas células a cópia com mutação do TMC1 e depois, aí, eliminar uma letra do ADN que está no lugar errado, sem a substituir.
Num comentário que acompanha o artigo na Nature, Fyodor Urnov, especialista no Instituto Altius de Ciências Biomédicas, em Seattle (EUA), oferece uma imagem para ilustrar a dificuldade desta tarefa: “Uma maneira de entender isso é imaginar um dueto entre duas pessoas que tentam cantar em uníssono. Se uma pessoa estiver desafinada, esta deve ser selectivamente silenciada para permitir que a melodia correcta seja ouvida, porque se ambos os cantores estiverem parados, a música pára.”
A equipa não corrigiu o gene em todas as células mas constatou que a edição de algumas delas teve um efeito positivo de “contágio” nas vizinhas. Fyodor Urnov também nota que apenas “uma modesta fracção de células foi editada”. Mas, acrescenta, os autores do artigo referem que a baixa proporção de células corrigidas teve um efeito benéfico nas outras que mantinham a versão do gene com a mutação, evitando a sua morte e danificação.
Na verdade, uma única injecção deste composto na cóclea dos ratinhos recém-nascidos resultou numa “redução substancial da perda auditiva progressiva”, segundo revelam os autores no artigo. Notam ainda que observaram “taxas maiores de sobrevivência de células ciliadas” do que nos animais que não receberam este tratamento ou no outro grupo que recebeu injecções com um composto que serviu de controlo. Por outro lado, os ratinhos injectados também reagiram de forma acentuada a estímulos acústicos, ao contrário dos que não foram geneticamente editados.
Os resultados, concluem os investigadores, sugerem que esta é uma “potencial estratégia para o tratamento de alguns tipos de perda auditiva autossómica dominante”. “A estratégia de edição do genoma desenvolvida neste trabalho pode contribuir para, no futuro, um tratamento livre de ADN, livre de vírus e que envolva uma única administração para determinadas doenças genéticas de perda auditiva.”
Fyodor Urnov concorda que este estudo é um passo em frente no caminho que deverá levar a edição genética à prática clínica. O trabalho, afirma, “fornece um primeiro passo essencial para levar este tipo de abordagem mais próximo da clínica, fornecendo provas de que é seguro e eficaz num animal que tem uma mutação genética e perda de audição comparável aos humanos”.
O facto de algumas estratégias de edição genética estarem já em fase de ensaios clínicos serve de base ao optimismo de Fyodor Urnov, que lembra, no entanto, que é preciso garantir a segurança e eficácia destes procedimentos, passando por todas as fases, incluindo a experimentação noutros modelos animais até chegar a nós. Porque, às vezes, a tal tesoura não acerta no alvo e pode provocar danos graves e irreversíveis ou acerta no alvo mas inicia uma imprevisível cascata de acontecimentos que pode ser prejudicial.