Sobreviver a um ano de traumas na Catalunha

Depois da crise económica, os catalães passaram por um atentado. Seguiram-se meses de uma fractura social inédita. O psicólogo Jordi García acredita que as pessoas estão a reagir. Ajuda que depois das eleições venha o Natal.

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O movimento independentista foi gerado pela sociedade, o que significa que “não somos vítimas, somos nós que temos o poder” diz o psicólogo Yves Hermann/REUTERS

A.R. não teve medo de sair à rua depois dos atentados de Agosto nas Ramblas. Mas não saiu de casa a 8 de Outubro, dia da primeira grande manifestação unionista realizada em Barcelona, uma semana depois do referendo sobre a independência marcado por cargas policiais e centenas de feridos entre quem tentava votar ou proteger as mesas de voto de uma consulta ilegal. Teve medo, nunca tinha visto um protesto pró-Espanha, não sabia que pessoas ali se encontrariam, achava que podia ser insultada ou pior.

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A.R. não teve medo de sair à rua depois dos atentados de Agosto nas Ramblas. Mas não saiu de casa a 8 de Outubro, dia da primeira grande manifestação unionista realizada em Barcelona, uma semana depois do referendo sobre a independência marcado por cargas policiais e centenas de feridos entre quem tentava votar ou proteger as mesas de voto de uma consulta ilegal. Teve medo, nunca tinha visto um protesto pró-Espanha, não sabia que pessoas ali se encontrariam, achava que podia ser insultada ou pior.

Independentista desde que se lembra, A.R. tem 70 anos e emocionou-se como poucas vezes na vida quando votou, no 1-O. Mas também foi nessa tarde que uma senhora que nunca tinha visto passou por ela e lhe chamou “traidora”.

C.M. não votou no referendo nem ligou muito às imagens que enchiam os espaços noticiosos das televisões (a excepção foi a TVE, que deu alguns minutos de cobertura à votação e à violência, o que motivou protestos dos próprios jornalistas). Na empresa onde trabalha, é o único que fala castelhano (sabe falar catalão, mas não é a sua primeira língua) e isso nunca lhe tinha custado os esgares dos últimos meses.

Entre olhares e conversas que pressentia acontecerem nas suas costas, C.M., que diz adorar o que faz, acabou por pedir ao médico uma baixa. Explica que já lhe custava muito acordar, tinha “um mal-estar permanente”, agravado por quase ter deixado de sair com amigos – a conversa permanente sobre política e as posições inflamadas sobre um tema que lhe diz pouco desmotivavam-no. Entretanto, foi diagnosticado com uma depressão.

“Se pensamos bem, vivemos a crise económica europeia, com um impacto duro de crispação social e consequências no seio das famílias; depois, em Agosto, o atentado no centro de Barcelona; e nos meses seguintes esta crise política em que a sociedade surge dividida ao meio, com o dia do referendo como auge da fragmentação, do ‘uns contra os outros… Só um destes acontecimentos causaria danos, agora os três, uns depois dos outros, é muito”, descreve Jordi García, psicólogo da Ordem Oficial dos Psicólogos da Catalunha.

García, membro da Mesa de Saúde Mental de Barcelona, um grupo de trabalho criado por iniciativa da autarquia, diz-se “optimista”, mas também admite que está a aprender, como os colegas, como todos os catalães, no fundo. “Nunca vivemos nada assim. Temos ido à procura do que já foi publicado noutros países, mas as realidades são sempre diferentes.”

Normalizar estar mal

Naquilo que García acredita é que, apesar das “angústias”, “frustrações”, “tensões prolongadas e sem fim à vista”, “processos de vitimização” generalizados, “as pessoas não estão necessariamente doentes, têm é as emoções à flor da pele e têm de saber lidar com esta situação como com outro trauma”. Entre elas, haverá doentes, claro, mas essas serão identificadas e encaminhadas para poderem receber o tratamento adequado.

“Agora, neste momento, normalizámos o estar mal, estarmos todos os dias à espera de notícias de que não gostamos, de ouvir palavras que nos fazem sentir mal, normalizámos a angústia e a raiva”, explica o psicólogo. “O que é normal, é a nossa forma de resistir e de seguir em frente, ou fazíamos isto ou ficávamos prostrados, à espera, isso seria perigoso”.

Desde meados de Setembro que a Catalunha vive uma situação que não é de todo normal. Um governo a dizer a uma população que algo – um referendo – vai acontecer, outro, o de Espanha, a garantir que isso não será assim. Gente a ser detida por polícias que vêm de fora, manifestações marcados em cima da hora para protestar contra essas detenções e operações policiais destinadas a impedir a votação. Em três meses, nada compara ao domingo do referendo em termos de impacto na saúde mental.

“O 1 de Outubro fez muito dano, como a reacção foi pacífica houve uma dupla agressão, a real e a consentida, uma dupla vitimização”, descreve o psicólogo. E claro, não ajudou que os dirigentes espanhóis, como o primeiro-ministro, Mariano Rajoy, não se referisse às “cargas policiais”, como também não o fez o rei, dias depois, enquanto alguns ministros insistiam que era tudo um exagero fabricado, que só houve dois feridos.

Vítimas e culpadas

Em Barcelona, na Catalunha, parecia ter havido “uma unanimidade na resposta, na crítica ao que tinha acontecido, tal como depois dos atentados houve um consenso nacional”. Mas “o 1-O muda tudo, quando se desmente a existência de feridos, de vítimas, está a dizer-se às vítimas que são culpadas de o serem”. Isso foi um mal em cima de outro mal. “Para muita gente, esse dia obrigou-as a sentir coisas que não queriam sentir, medo”.

E ao contrário do que aconteceu com o atentado, em que era fácil identificar os “maus”, os “terroristas”, e isso era perceptível por todos, incluindo as crianças, aqui os autores das “maldades” eram polícias. “Isso gera um sentimento de indefesa e de impotência terrível. Continua a ser preciso trabalhar o tema da normalidade, insistir que a polícia é geralmente boa, que aquele dia foi absolutamente excepcional.”

O dia excepcional passou, mas o conflito ficou. Agudizou-se. E seguiram-se outros acontecimentos pouco habituais, manifestações de um lado de Espanha nunca visto na Catalunha, declarações de independência adiadas, uma declaração stejada como tal, a detenção de líderes de associações civis, a detenção de políticos, outros que saíram do país, num auto-exílio que muitos consideram fuga à justiça, a aplicação do famoso artigo 155 da Constituição, que permitiu a Rajoy dissolver os poderes eleitos na Catalunha e marcar eleições.

“Estas eleições são estranhíssimas, e isso cria ansiedade. Quem as convocou, Mariano Rajoy? Servem para quê? O parlamento continua a funciona? O que vai acontecer a seguir? Fica tudo na mesma? Continuamos sem governo?”, enumera García.

Ter o poder

E no entanto, as pessoas continuam envolvidas em discussões, “não pararam de se expressar e isso é bom”, e planeiam votar em número recorde. Porque “apesar do cansaço extremo actual é preciso não esquecer que este movimento foi em grande parte gerado pela sociedade”. E isso significa que “não somos vítimas, somos nós que temos o poder”.

Claro que os políticos nem sempre ajudam. No fim-de-semana, Soraya Sáenz de Santamaría, vice de Rajoy com a gestão temporária da Catalunha, disse que o PP “decapitou o independentismo”. Josep Borrell, ex-ministro socialista e antigo presidente do Parlamento Europeu, defendeu que é preciso “desinfectar a Catalunha”.

“Enquanto houver pacifismo, apesar da fractura, o trauma será uma forma de fazer a sociedade crescer”, acredita o psicólogo. O fundamental, como sempre, “quando temos um problema é aceitá-lo, isso é uma forma de reconstruir o sentido da realidade, de seguir em frente, reagir”.

Por isso é que a Mesa de Saúde Mental de Barcelona tem uma campanha preparada para logo depois das eleições de quinta-feira, dia 21. A ideia é sublinhar o que García nos diz aqui, à mesa de uma esplanada: “Os conselhos são os de sempre quando há um problema com potencial efeito psicológico: fazer exercício, sair com os amigos, estar com a família, com quem nos aceita como somos, e recuperar o sentido de humor, rirmo-nos de nós próprios ajuda sempre a relativizar”.

As pessoas “são capazes, o que é preciso é que usem a caixa de ferramentas que têm ao seu dispor”. Neste caso, sublinha o psicólogo, como “o stress e a angústia são comunitários, isso pode ser mais fácil, há quem nos entenda”. Claro que o oposto também acontece, “pode puxar-nos para baixo”.

Entretanto, vai chegar o Natal e isso vai distrair um pouco as pessoas, “pelo menos até aos Reis”, diz García, enquanto os mercados habituais de Natal da avenida Gran Via, com brinquedos típicos, bijuterias ou churros continuam a ser montados atrás de nós.