Taxa de protecção civil de Lisboa tinha “carácter arbitrário”. Câmara vai devolver 58 milhões

Fernando Medina admite que vai ter de adaptar o orçamento da autarquia. Devolução será feita a partir de Janeiro.

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Rui Gaudêncio

Os juízes do Tribunal Constitucional (TC) declararam ilegal a taxa municipal de protecção civil de Lisboa, por considerarem que a protecção civil não é um serviço pelo qual os munícipes tenham de pagar. O tribunal dá assim razão ao provedor de Justiça, que em Março tinha remetido a questão para o Palácio Ratton, depois de dois anos de muita contestação política à existência da taxa.

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Os juízes do Tribunal Constitucional (TC) declararam ilegal a taxa municipal de protecção civil de Lisboa, por considerarem que a protecção civil não é um serviço pelo qual os munícipes tenham de pagar. O tribunal dá assim razão ao provedor de Justiça, que em Março tinha remetido a questão para o Palácio Ratton, depois de dois anos de muita contestação política à existência da taxa.

Após conhecido o acórdão do tribunal, Fernando Medina apresentou-se aos jornalistas para garantir que os valores cobrados indevidamente serão reembolsados a partir de Janeiro. Entretanto, o orçamento para 2018, já aprovado, volta para trás, uma vez que a autarquia já não pode contar com os 22 milhões que esperava arrecadar e tem de repor os 58 milhões cobrados entre 2015 e 2017.

O acórdão declara inconstitucional tanto a alínea do regulamento municipal que aplica a taxa aos senhorios em geral, como a norma que penaliza os prédios devolutos, degradados ou em ruínas, e portanto com risco acrescido de derrocada. Para 12 dos 13 juízes do TC, o leque dos supostos beneficiários do serviço de protecção civil municipal é demasiado alargado, razão pela qual “não pode afastar-se com segurança o seu carácter arbitrário, dado que a relação entre prestações é vaga e indirecta”.

Os juízes observam ainda que “impor o tributo aos proprietários é tão desprovido de sentido e justificação como escolher os arrendatários, alguns ou todos os empresários ou qualquer outra categoria de sujeitos, uma vez que nenhum deles tem maior ou menos proximidade objectiva com a actividade a que se refere a taxa”. Assim, concluem, “ficcionou-se artificiosamente uma prestação concreta [de serviços] com base num conjunto indiferenciado de actos que se reconduzem a uma actividade abstracta”.

Apesar de Fernando Medina e outros vereadores terem repetidamente dito que a taxa de protecção civil de Lisboa era diferente da de Gaia, e que portanto não teria o chumbo que esta teve em Julho, os juízes sublinham no acórdão as semelhanças entre ambas.

Acrescentam ainda que a “semelhança estrutural” entre esta taxa e o imposto municipal sobre imóveis (IMI) “não é inócua”, o que revela, na sua opinião, que não existe verdadeiramente uma prestação de serviços, como seria obrigatório numa taxa. “Não há, pois, como negar o carácter extremamente difuso (na verdade, impossível de traçar) da relação entre a titularidade dos prédios e as prestações no âmbito da protecção civil”.

Decisão sem unanimidade

Um dos juízes, Cláudio Monteiro, votou contra o chumbo. Na declaração de voto, o especialista em direito do urbanismo diz que a câmara não pode, de facto, tributar indiscriminadamente todos os prédios da cidade tendo como base de incidência da taxa o IMI. Mas não concorda com os colegas nas restantes conclusões. “A jurisprudência deste tribunal tem admitido que possa não existir um acto concreto a justificar a cobrança da taxa, desde que os índices ou presunções em que a mesma assenta sejam razoáveis e permitam identificar a ocorrência da prestação de um serviço (…)”, assinala o jurista.

“Foi neste pressuposto que o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais incluiu aquela actividade no âmbito de incidência das utilidades prestadas aos particulares pelo município, norma que em minha opinião constitui base legal bastante para a criação de uma taxa de protecção civil”, escreve também Cláudio Monteiro. Isso explica, na sua opinião, por que é que o município de Lisboa, tal como outras autarquias, “confiou naquele regime legal e na jurisprudência do Tribunal Constitucional” para criar a polémica taxa. Implícita na sua argumentação está a ideia de que a taxa seria constitucional, caso atingisse apenas o património degradado.

Na reacção, Fernando Medina tentou enterrar a disputa política que marcou os últimos dois anos — em que o PS esteve sozinho a defender a legalidade da taxa. “O Tribunal Constitucional não é adversário da câmara, nem é uma força de bloqueio”, disse. “O tribunal decidiu, está decidido.”

O presidente da câmara continua a ser favorável à existência de uma taxa deste tipo, mas considera que o acórdão agora conhecido “deita por terra a existência genérica destas taxas” não só em Lisboa, mas em todo o país. Por isso, acrescentou, “deve ser devolvida a palavra à Assembleia da República” para uma “clarificação jurídica sobre o financiamento dos sistemas de protecção civil”.

Segundo o autarca, estas taxas “decorrem da Lei de Bases de Protecção Civil de 2006” — mas se são inconstitucionais, é preciso outra solução. “Se este não é o caminho para o financiamento, que se diga qual é o caminho”, disse Medina, que aludiu aos incêndios com vítimas mortais deste Verão para justificar a sua posição. “Fica à vista de todos a importância de o país ter corpos de bombeiros profissionais”, argumentou.

À tarde, na reunião da assembleia municipal, Medina repetiu exactamente as mesmas palavras que dissera aos jornalistas. Toda a oposição aproveitou para lembrar que já tinha avisado o executivo socialista da ilegalidade da taxa. O PSD chegou a pedir à câmara que devolva o dinheiro aos lisboetas “com juros” pelos danos causados.

Estava previsto que a assembleia votasse ontem a política fiscal do município para 2018, mas a decisão do TC veio baralhar as contas. Fernando Medina admitiu que é preciso “adaptar o orçamento”, em que se previa um crescimento da receita desta taxa e no qual estava já incluída uma “reserva de contingência” de 100 milhões de euros, que, entre outras coisas, vai servir para pagar os reembolsos.