Os que salvaram também sofrem

Dói-lhes a alma por aqueles que não conseguiram salvar. É um pesadelo que os persegue. O seu trabalho foi questionado e criticado e também por isso ficaram calados até hoje. Domingos Xavier Viegas, que elaborou um dos relatórios sobre a tragédia, a pedido do Governo, revelou os actos de coragem de Sérgio Lourenço e Manuel Antunes, Pedro Nunes e Nuno Dinis na noite mais negra da história recente quando, por sua conta e risco, salvaram dezenas de pessoas. O P2 foi saber quem são e acompanhou-os neste regresso às memórias de um dia que não conseguem esquecer.

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Foi mesmo aqui depois desta curva. Como não víamos nada, íamos andando devagar para baixo até que surge o vulto do menino. Há um deles que grita: ‘Pára! Está aí um garoto’.” E a carrinha onde seguiam Pedro Nunes, Eduardo Matos e Pedro Machado mesmo com os pneus a ferver no “tapete de brasas” obedeceu à ordem de travagem brusca e estacou a poucos metros do pequeno A., caído no meio da estrada, inconsciente e com respiração descontrolada pela inalação de fumo.

Seis meses depois, o comandante distrital da Protecção Civil da zona centro, Pedro Nunes, volta pela primeira vez aos sítios por onde andou naquela noite. O nervoso é disfarçado pela narração dos acontecimentos à velocidade da memória. Aponta para o chão para mostrar o local onde encontraram o menino de quatro anos, sozinho, deitado na municipal 350, a cerca de um quilómetro das povoações mais próximas. “Foi aqui.”

“Se o miúdo está aqui, os pais estão também”, lembra-se de ter dito. Enquanto o estabilizavam e conseguiam ligação ao helicóptero de coordenação a pedir suporte avançado de vida, percorreram a área à procura dos pais. O mistério da presença de uma criança tão pequena no meio de uma estrada em braseiro adensou-se. Procuraram e não encontraram ninguém.

Pouco antes, A. estava com a mãe, tinham caminhado ao longo da estrada depois de terem tido um acidente numa localidade próxima. “Chegou ali e não conseguiu andar mais. Estava exausto, não conseguia respirar por causa dos problemas respiratórios que tem, tinha algumas queimaduras na parte posterior e nas pernitas.”

Ao posto de comando tinha chegado a notícia do desaparecimento de uma criança por aquela zona, ninguém cruzou os dados para saber se se tratava da mesma. Foi já de madrugada que souberam que, nos desencontros dessa noite de fumo denso e de “partículas incandescentes” que continuavam a queimar, a mãe tinha falhado por minutos a passagem dos três homens que acabaram por salvar a criança e levá-la para Pedrógão. Em desespero, tinha deixado o filho para ir a correr “à aldeia pedir ajuda”.

A missão de Pedro Nunes tinha começado pouco antes, pelas 20h. Tinha ordens do comandante nacional Rui Esteves para ir para Pedrógão Grande e fazer o “reconhecimento e avaliação do perímetro do incêndio”. A ideia era ir pela N350 e contornar o incêndio, de modo a ver “possibilidades” de combate. Era, mas não foi. Quando encontraram A., estavam na segunda tentativa de percorrer a estrada. A primeira tinha sido uma meia hora antes, quando se reuniram em Pedrógão.

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Nesse trajecto inicial, saíram pela N350 em direcção à aldeia da Graça. Quando subiram uma encosta, depararam-se com “sete ou oito carros” parados, porque o fogo atravessava a via na parte de cima do monte. Mas o perigo vinha do vale. Um a um, ajudaram cada condutor em pânico a fazer inversão de marcha na estreita via de sete metros. “CADIS Pedro Nunes, em missão de reconhecimento, solicita o corte da EN 350, de Pedrógão para Graça”, lê-se na linha do tempo às 20h11, foi das poucas comunicações que conseguiu fazer. “Poderíamos ter tido aqui outro problema”, diz aliviado.

O “problema” a que se refere Pedro Nunes é o “problema” com que se deparou na N236-1, depois de ter deixado A. com os médicos do INEM em Pedrógão. A missão de reconhecimento do terreno já lá ia. “O que importava então era salvar vidas” e isso foi-lhe ordenado também pelo comandante nacional, que lhe disse para ir ver o que se tinha passado com um carro de bombeiros de Castanheira de Pêra. Até aqui, ninguém sabia o que estava a acontecer naquela estrada onde morreram cerca de 40 pessoas. “Carros queimados aqui? Abrimos logo os olhos”, diz quando se depararam com o primeiro carro, destruído e vazio. Tiveram de virar para a Barraca da Boavista e encontraram “cinco ou seis pessoas” escondidas numa garagem. Conseguiram pedir ambulâncias ao fim de uma meia hora. E voltaram à N236-1 por um atalho paralelo. Atrás da orelha já ia a preocupação do que estavam a pressentir. “Tanto carro queimado, Deus queira que não haja uma tragédia”, lembra-se de ter pensado quando viu uma carrinha a arder, ainda sem ter chegado àquela recta de má memória.

“Quando chegámos aqui”, diz ao reentrar agora na estrada nacional, “estava um pinheiro caído que não nos permitia avançar. Não víamos porque era de noite e estava muito fumo. Só depois de passarmos o pinheiro é que vimos um cadáver encostado”. Não havia volta a dar. Estava a acontecer. Foram dos primeiros a dar com a “desgraça”. “Íamos com as lanternas e víamos os vultos dos carros. Foi um filme de terror. Conforme íamos apontando as lanternas para dentro dos veículos, íamos percebendo o que estava lá dentro.” O que estava lá dentro não era nada de bom.

“Não consigo falar com o posto de comando e falo para o comando nacional a dizer o que estava acontecer. Digo que há uma série de carros queimados e que, só do que nos é possível ver, há 19 ou 20 cadáveres. Mas havia mais. Houve casos em que conseguíamos ver o cadáver porque estava carbonizado, mas não tinha havido destruição total. Havia outros em que só se percebia que havia um cadáver porque o fémur estava em cima do banco, em cima da rede metálica”, descreve, enquanto percorre o caminho que fez nessa noite e que tem agora flores penduradas nos rails de protecção.

Não havia como lidar com o que os olhos mal viam. Apesar de falar de forma quase técnica, não estava preparado para o que estava a viver. “Junto a todos os cadáveres, benzi-me a pedir desculpa. Isso deu-me força.”

Tinha de continuar na tarefa de notário da tragédia, para criar uma lista única. A dada altura, este homem alto encolheu-se pela força do que tinha em mãos: “Tive vontade de me meter no carro e ir embora e chorar. E chorei. Ajudou-me.”

“Houve uma altura da madrugada em que olhávamos uns para os outros e só nos apetecia chorar. Foi uma desgraça e começou a mexer connosco. Mas sentimos também que era preciso continuar com a missão e perceber a dimensão que isto tinha tomado.” Das 64 vítimas, cerca de 40 foram encontradas por estes homens nas 14 horas em que andaram de terra em terra onde lhes indicavam que havia problemas. Mas a missão não acabaria sem que antes salvassem mais alguém.

Depois de percorrida a N236-1 e de terem lá chegado mais autoridades, os três homens seguiram para Vilas de Pedro, onde havia indicação de feridos. Numa descida, encontram duas pessoas mortas, mas, felizmente, ainda foram a tempo de encontrar mais uma senhora com vida. Esta sobrevivente seria a última boa notícia que teriam para dar.

Vilas de Pedro, Nodeirinho, Balsa, Moita, Pobrais. Uma lista demasiado extensa de aldeias a que correspondia uma lista ainda maior de vítimas. Quando a pergunta o leva de volta ao sentimento de que se lembra naquele dia, a velocidade da narração trava. “Uma tristeza... em quem não conseguimos socorrer. Não havia socorro possível.”

Os três homens tiveram apoio psicológico e agora estão “bem”. “Às vezes vamos buscar forças onde não pensamos que as temos. A partir de uma certa altura, pensa-se ‘isto é uma catástrofe, há feridos, há mortos’ e o que interessa é vasculhar o território num curto período de tempo para saber se há alguém que se possa salvar. E já só encontrámos cadáveres.”

No trabalho que fez no terreno, Domingos Xavier Viegas, o investigador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra que elaborou um dos relatórios sobre a tragédia, a pedido do Governo, foi recolhendo testemunhos de vários sobreviventes. No fim de tudo, quis destacar a acção de vários homens naquela noite. “Há três pessoas que, no nosso entender, foram heróis [Xavier Viegas não está incluir Manuel Antunes, pois este seguia na carrinha com Sérgio Lourenço]. São pessoas que salvaram feridos, que levaram queimados, que os retiraram do fogo e os levaram para um sítio seguro”, disse ao PÚBLICO. “É importante que o país saiba, porque no meio desta tragédia toda houve muitas situações de grande altruísmo e de heroísmo.” 

Sérgio Lourenço e Manuel Antunes

A cabeça está baixa, a olhar para o carro e para o pin que tem na lapela. Se o tivesse vendido, Schindler, no filme de Steven Spielberg, poderia ter salvo mais uma vida e isso foi-lhe insuportável. “Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro”, diz-lhe um sobrevivente agradecido. O pin para Sérgio Lourenço é o telemóvel. Com as mãos a tremer, ora mexe na cabeça ora naquele pedaço de tecnologia que sem rede lhe foi inútil naquela noite em que andou a ziguezaguear o fogo. Com ele, poderia ter salvo muitos mais e isso é difícil de suportar. “Ficar sem comunicações foi o pior que podia ter acontecido.” Salvou cinco feridos graves, recolheu mais oito para os retirar do fogo e outros sem conta quando os liderou para fora de uma emboscada de fogo que se preparava para lhes desmanchar os carros onde fugiam. Na sua cabeça, tantos foram poucos. “Infelizmente, só foram esses.”

“Ia na estrada e não via nada, nem o traço. De repente, vejo passar um vulto ao meu lado, até me assustei. Parei logo, ia devagar. Abri a porta e digo-lhe: ‘Ó mulher, entre aqui para dentro.’ Ela diz-me: ‘Eu estou toda queimadinha’, mas eu não a via. Só via um vulto. Via que era uma mulher grande. Era um calor doido.” Conduziu mais uns metros naquela Nacional 236-1 na direcção de Castanheira de Pêra e viu dois carros a arderem no meio da estrada. Não conseguiu passar e cortou à direita para a Barraca da Boavista.

Na curva, outro vulto. Era mais uma mulher perdida, que fugia “da grande desgraça”. “Digo para ela entrar, mas ela não queria. Só falava nas netas e nos filhos. Tive de falar mais áspero para ela entrar. Na carrinha só dizia: ‘Está ali uma desgraça!’ Eu não sabia o que era.” Viria a saber horas mais tarde, quando foi de novo à N236-1 por onde tinha andado, mas nada tinha visto.

As mulheres que salvou já pelas oito da noite e que levou para Pedrógão Grande, com o fogo a urrar de um lado e de outro, foram mais duas a juntar às que já tinha deixado em segurança, numa tarde-noite, na companhia de Manuel Antunes, os dois montados numa pick-up dos bombeiros de Pedrógão Grande. Sem água e sem comunicações, ajudaram mais pessoas do que aquelas que conseguem nomear.

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Tudo começou com o pedido do comandante dos bombeiros de Pedrógão Grande, pelas quatro da tarde, para que Sérgio Lourenço, o seu adjunto, fosse à roda do fogo para o informar por onde este andava e onde seriam precisos meios. Sérgio Lourenço e Manuel Antunes, um ex-bombeiro, ex-trabalhador da câmara, agora madeireiro, que conhecia os caminhos de Pedrógão como a palma da mão, montaram-se na carrinha e foram fazer a avaliação do perímetro do fogo. Mas o apagão nas comunicações virou-lhes a missão do avesso e acabaram a vaguear pelas estradas durante horas.

De tarde, já era noite. O Sol não se via por entre as chamas altas e o fumo era negro quando Sérgio e Manuel enveredaram pelas estradas municipais e deram de caras com um acidente perto da aldeia dos Troviscais. “Quando vi o acidente, não sabia quem era”, e, depois, Manuel percebeu que a carrinha que ali estava estampada era a sua. “É a minha carrinha”, gritou. Sabia que quem lá ia era o genro Zeca, o cunhado deste e Carlos, o empregado, que tinham entrado no carro em direcção à empresa de Manuel para tentar salvar madeiras no valor de 60 mil euros. “Eles não arderam dentro do carro. O fumo baixou e encostaram-se a uma barreira. Largaram o carro e fugiram”, conta. “Estavam muito queimados. As unhas saíram todas, aqui a parte do peito, das pernas. Um dos rapazes encalhou num cabo eléctrico e, como estava muito quente, já tiveram de lhes amputar os dedos das mãos.”

Foram os primeiros três que a dupla socorreu e a primeira indicação de feridos que aparece na fita do tempo disponibilizada pela Autoridade Nacional de Protecção Civil, às 19h25: “Despiste de viatura civil na localidade de Mosteiro com três ocupantes no interior para zona queimada, um dos ocupantes com queimaduras em 90% do corpo”, lê-se. Estiveram mais de 30 dias em coma induzido, o ferido mais grave continua hospitalizado em Espanha. Zeca, o genro de Manuel, está nos cuidados continuados. Quis o destino que fosse o sogro a encontrá-lo e a salvá-lo. “Não quero que ele volte para trabalhar. Quero que ele viva”, diz Manuel.

Os dois homens não tiveram opção. Puseram os três feridos na carrinha e zarparam para a aldeia de Mosteiro, o fogo ia tão rápido quanto eles. Aí, conseguiram pedir socorro. Sentaram os feridos numa manta na rua e com a ajuda de uma médica deram-lhes água. Minutos mais tarde apareceu uma ambulância. Foi uma sorte, porque aquela salvadora de quatro rodas não lhes era destinada, mas não conseguia passar para onde se dirigia. Sérgio e Manuel passam os três feridos da carrinha para a ambulância, e mudam as pessoas que lá iam para a sua carrinha, uma vez que não estavam feridas. Ainda lhes aparece uma senhora inglesa, a filha e o neto pequeno a pedir ajuda e todos dentro da carrinha seguem caminho de fuga do fogo que se aproximava. “Eu acho que fiquei mais calmo a olhar para ele”, diz Sérgio enquanto mostra a fotografia do bebé que aquela mãe lhe enviou e que guarda no telemóvel. Juntou-se mais uma senhora e as duas filhas, conhecidas do bombeiro. Foram sentadas no banco da frente com Manuel. Eram oito numa carrinha. “Ao meu colo iam as duas miúdas e a mãe. Fomos todos encafuados. Se tivéssemos demorado mais um quarto de hora, aqueles que salvámos morriam todos”, conta o homem.

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Mas a tarefa de salvação naquela aldeia não estava concluída. É em Mosteiro que se deparam com cerca de 30 pessoas em carros, desnorteadas sem saber para onde fugir. “Fiz com que viessem atrás de mim para Vila Facaia. Disse-lhes: ‘Só param quando eu parar’”, relata Sérgio.

O comboio de carrinha dos bombeiros, carros, ambulância do INEM seguiu direitinho mas não para Vila Facaia, foram antes para a localidade de Adega, à beira do IC8 e com acessos rápidos em vários sentidos. No caminho faz inverter a marcha a dois carros, retirando-os da boca do fogo. Quando lá chegam, mais problemas: a ambulância começou a arder e os três feridos tiveram de ser transportados em macas numa carrinha de transporte de doentes que por acaso ali passava. “Não sei como os conseguimos meter lá.”

Sérgio volta a pôr as mulheres e as meninas que tinha salvo na pick-up, para que a carrinha de doentes pudesse levar os feridos para serem retirados em Figueiró e leva-as para Avelar. “No caminho, a mais pequena dizia ao meu ouvido que lhe estava a faltar o ar.”

Os dois relatos cruzam-se e há uma nebulosa de trauma que os impede de saber com exactidão as horas e os locais.

Haveriam de voltar à Adega ainda nessa noite, depois de recolherem as duas mulheres feridas na N236-1, para salvarem mais dois miúdos.Nessa altura, um casal pede-lhes ajuda para apagar fogo numa casa. Sérgio não tinha água para o fazer e sugeriu que seguissem com ele para fora dali. Estava nervoso e não era o único. O desespero é muitas vezes confundido com mau feitio e o casal recusa. “Estavam lá dois meninos e eu disse-lhes que eles iam comigo porque não tinham culpa. Pu-los na carrinha e tirei-os de lá.”

Sobreviveram todos.

“A minha maior mágoa é não ter chegado às populações. Eu não sabia se estava a decorrer o socorro ou não estava. Para conseguir enviar uma mensagem, tinha de a repetir umas 20 ou 30 vezes e a mensagem não seguia. Era uma desgraça.” À distância de seis meses, os pormenores vão-se esfumando no fio da memória. Reviver aquelas horas — “as pessoas pensam que isto foi num período de tempo doido, mas é tudo pertinho” — não lhe faz bem, mas aceita a custo contar o trabalho que fez.

Este bombeiro foi cumprindo a missão que lhe deram. E é apenas isso que aceita que fez. “A minha missão... se eu salvasse uma pessoa por dia, estava bem comigo mesmo. Sempre tentei levar essa missão à frente de tudo e mais alguma coisa”, desabafa num nervoso de quem conta uma história que não quer. O adjunto do comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande não quer aparecer como herói — “Se fosse outro, fazia a mesma coisa”. A “mesma coisa” de que fala Sérgio traduziu-se em salvar a vida a dezenas de pessoas. Heróis foram todos os que andaram a apagar pinheiros ou a salvar pessoas. Cada um com a sua tarefa.

Também para Manuel, não há heróis. “Heróis? Nós não fomos heróis. Fizemos o que pudemos, salvámos algumas pessoas, podíamos ter salvo mais, mas não tínhamos condições para o poder fazer, com muita pena nossa”, lamenta. “É uma missão, um dever. O Sérgio foi muito competente, não podia era fazer mais, não tinha comunicação, não tinha meios para poder colocá-los. Se ele tivesse, podia dizer onde os havia de colocar, que ele tem muita experiência nisso. Só que viu tanta gente... Depois passámos ao pé daquelas pessoas mortas. Querer ajudar e não ter com o quê, uma pessoa até fica...” A palavra não lhe sai. Durante semanas acordava e na primeira coisa que pensava era em pinheiros queimados. “Foi horrível. Andei um bocado a bater mal”, diz Manuel. “Houve uma altura em que achámos que íamos morrer. Fiquei um pouco assustado. Não vou todos os dias à igreja, mas tenho a minha fé. Penso que temos um destino. Quando chegou a hora, penso que Deus ou alguém pôs-me ali naquele caminho para ver se conseguia salvar aquelas pessoas. Ainda bem. Agora penso assim”, diz Sérgio.

Nuno Dinis

Nuno não percebe muito de protecção civil. Nunca foi bombeiro, é médico dentista. Mas naquela noite viu-se a braços com a necessidade que lhe aguçou a coragem de andar com o seu jipe para trás e para a frente a socorrer pessoas. Sobreviveu ao fogo e fez sobreviver. Não é caso único, mas simboliza aqueles que deram o melhor de si para salvar vidas, mesmo não sendo essa a sua missão. E Nuno conseguiu salvar três feridos e retirar a família do meio das chamas, depois de ter sobrevivido à N236-1.

À distância de meio ano, Nuno Dinis acha que dentro de si houve um clique que lhe permitiu “funcionar” de forma pragmática, sem entrar em pânico e aventurar-se no meio de uma terra a arder. “Estive no fio da navalha. Acho que agi por impulso de sobrevivência para fugir dali e depois para saber da família. O meu subconsciente apagou as partes mais dramáticas”, conta.

Passava um sábado normal, só anormal pelo intenso calor, num almoço na casa dos pais, em Vila Facaia, enquanto o filho de oito anos estava num aniversário numa aldeia próxima. Tudo o que era habitual até aí deixou de o ser. O pequeno teve de fugir por duas vezes do fogo e hoje “lembra-se de ver as chamas de um lado e de outro”, mas não ficou traumatizado, acredita o pai.

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Quando viu uma coluna de fumo, meteu-se no carro e foi buscar o filho. Quem estava na festa fugiu a tempo. De regresso a Vila Facaia, combinou com o cunhado e tentaram salvar os carros da família. “Na altura, uma pessoa não pensa muito bem, tentei levar os carros para a zona da Várzea, que não estava a arder.” Ele num Mercedes, o cunhado num Smart, chegaram ao cruzamento com a N236-1 e foram meter-se na boca do fogo. “Acompanhou-nos e nós não íamos devagarinho. Estava muito trânsito para aquilo que estamos habituados. Era muita gente, tudo de um lado para o outro.”

Fala em duas árvores caídas, que impediam a passagem quer para o lado de Figueiró quer para o lado de Castanheira, mas o Mercedes, já abandonado o Smart, que ardeu, safa-se por cima da ponta de um pinheiro tombado. “Andámos na confusão, a fazer chicana. Tivemos a felicidade de não bater em ninguém nem ninguém em nós. Nem de o carro parar. Houve carros que pararam por falta de oxigénio.” Salvaram-se.

Mas Nuno ficou sempre a pensar que teria sido dos poucos. “Sabia que havia gente que tinha morrido lá em cima [na N236-1] porque ninguém me tinha seguido quando saí de lá.” Ter sobrevivido não o fez recuar. Foi deixar o cunhado a Figueiró e, apanhando um GNR distraído no cruzamento — “eu sei que não fiz muito bem, era arriscar, mas tinha de saber deles” —, meteu-se de novo na zona de guerra para ir a Vila Facaia, onde a mulher e o filho tinham ficado. Estavam a tratar um senhor queimado. Ligou para o 112 e conseguiu, mas a ambulância não chegava. Por sugestão de um bombeiro que passou num carro de comando, trocou de carro, meteu-se no jipe 4x4 e levou a família e o ferido para Figueiró. “O senhor estava em pânico. Não conseguia dizer o nome, só me dizia que o pai tinha morrido.” Felizmente, não morreu.

Com toda a gente em segurança na vila vizinha, não deu a tarefa por terminada e regressou de novo à aldeia. Esteve a ajudar a apagar o fogo atrás de um café “com garrafas de água, vinho, cerveja, areia, era o que havia”. Vila Facaia estava sem água, sem luz e sem rede e com muito fumo e fogo. Foi aí que socorreu o vizinho Artur, que estava com dificuldades respiratórias. “Esteve um bocado mal.”

Seguiu em direcção a Pedrógão Grande, onde ficou revoltado. Viu “sete ou oito carros dos bombeiros ali parados e pessoas a precisar de ajuda”. Entre elas, estava o pai de um rapaz que lhe pediu que o levasse para a aldeia porque tinha a casa a arder. Ele, o rapaz e mais uma rapariga meteram-se no jipe de regresso a Facaia e desta vez um GNR deixou-o passar por ter percebido o destino que levava. O pai do rapaz é o terceiro ferido salvo por Nuno naquela noite. Mas para o salvar decidiu não voltar a sair do cenário de fogo. Sabia que não voltariam a deixá-lo entrar por uma estrada cortada. Deixou-o numa ambulância que não tinha para onde ir na aldeia de Adega.

Dia 17 vai ficar-lhe na memória por ter andado muitas vezes sozinho no carro a “salvar pessoas e a retirar” outras e a cruzar-se com outros civis que tentavam fazer o mesmo. “Vi pessoas a gritar, a correr, mas se me perguntar assim: ‘Quem eram?’ Eu não consigo dar rosto às pessoas que vi. Acho que isso foi bom, por um lado. Penso nisto muitas vezes.”

Estes homens puseram a necessidade de salvar outros à frente da sua própria vida, diz o investigador Xavier Viegas. Sofrem hoje por não terem conseguido mais. Ao Sérgio, ao Nuno, ao Manuel e ao Pedro, que a frase lhes sirva: “Quem salva uma vida salva o mundo inteiro.”

Este artigo encontra-se publicado numa edição especial do P2, caderno de domingo do PÚBLICO, dedicada aos seis meses de incêndios florestais