Admirável Língua Nova (Parte V)
Ficámos singularmente isolados (passe a redundância) nesta razia etimológica – em muitos casos, desirmanados até do próprio Brasil, que pronuncia, ao contrário de nós, muitas consoantes etimológicas. Quisemos ser tão modernos, que acabámos parolos.
T. S. Eliot, em 1944, no texto Que É Um Clássico?, explicou que a sua época tendia a confundir sabedoria com conhecimento e conhecimento com informação, procurando resolver os problemas da vida à luz da engenharia. Eliot sentia desabrochar com particular intensidade um conceito de provincianismo que não encontrava nos dicionários. Provinciano não era apenas aquele que estava preso no seu espaço, não conhecendo outros; provinciano era também aquele que estava ancorado no seu tempo, desconhecendo todos os tempos anteriores a si, ignorando o longuíssimo caudal de sabedoria e cultura. O autor propôs assim o conceito de “provincianismo do tempo”, ou, se preferir, “provincianismo temporal”.
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T. S. Eliot, em 1944, no texto Que É Um Clássico?, explicou que a sua época tendia a confundir sabedoria com conhecimento e conhecimento com informação, procurando resolver os problemas da vida à luz da engenharia. Eliot sentia desabrochar com particular intensidade um conceito de provincianismo que não encontrava nos dicionários. Provinciano não era apenas aquele que estava preso no seu espaço, não conhecendo outros; provinciano era também aquele que estava ancorado no seu tempo, desconhecendo todos os tempos anteriores a si, ignorando o longuíssimo caudal de sabedoria e cultura. O autor propôs assim o conceito de “provincianismo do tempo”, ou, se preferir, “provincianismo temporal”.
O “provincianismo temporal” é hoje mais acentuado numa época de pletora de “notificações” e informações digitais “actualizadas” a cada instante¹; em que o que aconteceu há uns meses já “foi há muito tempo”; em que o que não está no mundo digital não existe nem nunca existiu para muitos; em que tantos formam rapidamente opinião sobre quase tudo (dedicando, em média, três minutos a cada assunto na Rede); em que todos, mesmo sem nunca ter lido um livro na vida, podem ser escritores com o carimbo de uma editora a troco de dinheiro – o poeta, afiançava Eliot, só poderia curar do seu ofício, isto é, escrever poesia, conhecendo bem os seus predecessores.
Serve o intróito para situar o leitor quanto à seguinte proposição: o Novo Acordo é provinciano.
A escolha do critério da “pronúncia culta” (que o Acordo não consegue definir nem rastrear), em detrimento do critério etimológico, significa a mutilação da História que as palavras transportam. Mas o Acordo não fica por aqui. Não se trata apenas da preservação das raízes latinas – da identidade da nossa língua, no fundo. Trata-se ainda da preservação da lógica do hífen na nossa língua, da congruência nas famílias de palavras (elemento importante na aprendizagem das crianças), da maiúscula inicial nos meses por estar lá guardado, não poucas vezes, o nome de um deus – Janeiro, por exemplo, vem do deus Jano, não por acaso o deus que presidia aos inícios, o guardião das portas e dos portões. Mas podemos deixar a mitologia de lado e ir para coisas mais corriqueiras. “X-acto” tem origem na marca, ou seja, X-ACTO é marca comercial. Pois até aí mexeram: com o Acordo, temos o “x-ato” da marca X-ACTO. É a pseudológica dos talhantes das consoantes etimológicas.
A torção etimológica é tal, que a própria etimologia surge adulterada em dicionários acordizados. Nuno Pacheco demonstrou, no artigo “O leite e a lata”, que o (excelente) Dicionário Houaiss acolhe “laticínio e laticinoso, sem o c; explicando-se que laticinoso (sem c) ‘é o mesmo que lactescente’ (com c) e acrescentando-se esta inacreditável nota: ‘ETIM laticínio+oso’. Ou seja, o étimo deixa de ser o latino (lacticiniu-) para ser a própria palavra acordizada…”.
O mais tristemente cómico, ou comicamente trágico, no meio disto tudo é que o Acordo foi aprovado, reza o documento oficial, por se tratar de “um passo importante” para o “prestígio internacional da língua portuguesa” (o “prestígio internacional” soa mais a anúncio de marca de cosmética do que a defesa da língua, mas o problema deverá ser meu). Sucede que a semelhança da nossa língua com outras línguas (que preservaram a etimologia) foi amputada em centenas de vocábulos.
Veja-se o quadro abaixo, que copio (com algumas modificações) de um artigo do professor e escritor Pedro Medina Ribeiro, publicado no Correio de Lagos, no mês passado, e cuja autoria não conseguimos (eu e Pedro Medina Ribeiro) descobrir.
Escolha uma palavra acordizada que não esteja no quadro e coteje-a com outras línguas. Ação, detetive, acupuntura (dupla grafia, dependendo das fontes…), eletrão, coletivo, receção, arquitetura, aspeto, correto, ótico (que, com o Acordo, tanto pode ser algo relativo à visão como à audição!), perceção, ótimo, afeto. Tal lista não caberia nas páginas deste jornal. Eis mais um aspecto – outra palavra em que o Brasil pronuncia a consoante etimológica e nós não – em que a Nota Explicativa do Acordo, o seu documento de defesa oficial, mente. Ficámos singularmente isolados (passe a redundância) nesta razia etimológica – em muitos casos, desirmanados até do próprio Brasil, que pronuncia, ao contrário de nós, muitas consoantes etimológicas. Quisemos ser tão modernos, que acabámos parolos.
É hoje evidente que esta cegueira acordista produz, na prática, singulares disparates noutras línguas² e que as crianças, a quem o Acordo na sua Nota Explicativa devota um amor sem fim, têm confusões novas na grafia de vocábulos de outras línguas, mormente do inglês, eivadas que estão da fúria do espírito acordista. Desde a aplicação do Acordo, apareceram, entre muitos outros dislates, “fator issues” no Diário da República, “Amor Eletro” (conjunto musical chamado Amor Electro) no Diário de Notícias, “eletronic” em inúmeros textos.
A ortografia decretada a reboque da pronúncia é uma invencionice e uma aberração linguísticas – o desmoronamento de um pilar sacratíssimo da arquitectura da língua. Não sabemos escrever muitos vocábulos com o Acordo – temos de pronunciar antes para saber depois como se escreve (havendo uma miríade de pronúncias dúbias…). Mas o problema não fica por aqui. Em Coimbra, há uma forma de pronunciar; em Viseu, outra; no Alentejo, outra; na Madeira, outra ainda. Só em Portugal (que representa uma pequena parte dos falantes da língua portuguesa), dependendo da região, há quem diga “dezóito” e quem diga “dezôito”. Quando oiço um portuense, oiço a pronúncia “cumo” na palavra “como” (enquanto conjunção, advérbio ou nome). Acaso alguém do Porto pediu que se escrevessem os bês no lugar dos vês? Passaria pela cabeça de alguém que o verbo «estar» se transmutasse num verbo de dupla grafia – «tar» e «estar» –, porque a maioria conjuga o verbo «tar» na oralidade? Fixar-se (ou tentar fixar-se…) a ortografia tendo por base aquilo que a língua tem de mais instável e diverso (a pronúncia) só poderia ter como corolário o que hoje está à vista de quem tem olhos para ver: o caos ortográfico.
Que tortura ter de empinar as diferentes leituras do xis! Para quê escrever «tóxico», «exame», «máximo», «vexame» «ex-jogador», em vez de «tóksico», «ezame», «mássimo», «vechame», «eis-jogador»? E por que raio a preservação do agá meramente etimológico no início das palavras? E porque continuamos a obrigar as crianças a um enorme esforço de memorização com os “s”, “ss”, “c” ou “ç”? Não se aplica aqui a sentença da Nota Explicativa do Acordo?: “Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua.”
Já mencionei num artigo prévio que um escrevente reclamou (justamente) ao Ciberdúvidas que na sua região se pronunciava o pê de uma palavra que os dicionários acordizados acolhiam sem pê. O Ciberdúvidas (que muito prezo) decidiu que passaria, então!, a ser de ora em diante uma palavra com dupla grafia. Isto é um exemplo da salgalhada total em que estamos no período pós-Acordo. O meu amigo pronuncia? Então, escreva! Não pronuncia? Pois então, não escreva. Ou então veja nos dicionários a grafia para saber o que se decretou quanto à pronúncia que alegadamente esteve na origem da grafia, mas que acaba por ser a fixação da pronúncia futura! (Confuso? Não poderá ser, o Acordo veio para “simplificar”.) Os dicionários divergem? Paciência… Repare: assim, tem quase sempre uma forma de legitimação de que não errou! Até tem dicionarizados «corrução» e «interrutor»! É a prova de que a pronúncia é um critério fragílimo para estabelecer a ortografia? A ortografia morreu? Bem, nem tudo é mau – sem ortografia, não damos erros. Até temos acentos FACULTATIVOS! («Dêmos», «jogámos», «falámos», «sonhámos», «imaginámos» e muitos, muitos outros.) Maiúsculas facultativas – uma caterva delas! Como explicou o Pai do Acordo, por escrito, acerca dos críticos do mesmo: “Têm saudades do tempo em que a qualidade da língua era aferida pelo número dos erros de ortografia.”
¹ O Instituto Real de Tecnologia, de Estocolmo, demonstrou que a sobredosagem de informação no mundo digital, particularmente nas redes sociais, deteriora a memória de curto prazo.
² Quantos aos erros nascidos na nossa língua exclusivamente com o Acordo, bastará consultar a colossal lista coligida diariamente na página Tradutores contra o Acordo Ortográfico.
(Continua)
Textos anteriores: Admirável Língua Nova, parte I, parte II, parte III e parte IV.