Toda a vida de Neil Young, aqui e agora
Dia 1 de Dezembro chegou novo álbum, The Visitor. Nesse mesmo dia, uma notícia surpreendente: toda a música de Neil Young foi disponibilizada online. É uma vida (muito preenchida).
“Cada um dos meus discos é, para mim, como uma autobiografia em construção”, dizia Neil Young a Cameron Crowe nas páginas da Rolling Stone em 1975, o ano do negro e tumultuoso Tonight’s the Night, obra-prima regada a tequilla e cocaína e assombrada pela morte por overdose de Danny Whitten, guitarrista dos Crazy Horse, e do roadie Bruce Berry. Nessa altura, Neil Young tinha atrás de si seis álbuns a solo, três com os Buffalo Springfield, um integrado nos Crosby, Stills, Nash & Young. Tinha ainda muita autobiografia para escrever.
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“Cada um dos meus discos é, para mim, como uma autobiografia em construção”, dizia Neil Young a Cameron Crowe nas páginas da Rolling Stone em 1975, o ano do negro e tumultuoso Tonight’s the Night, obra-prima regada a tequilla e cocaína e assombrada pela morte por overdose de Danny Whitten, guitarrista dos Crazy Horse, e do roadie Bruce Berry. Nessa altura, Neil Young tinha atrás de si seis álbuns a solo, três com os Buffalo Springfield, um integrado nos Crosby, Stills, Nash & Young. Tinha ainda muita autobiografia para escrever.
Depois de Tonight’s the Night foram editados mais de três dezenas de álbuns com o seu nome creditado na capa – descontando reedições e edições especiais -, o último dos quais, The Visitor, gravado com os Promise of the Real, a banda dos filhos do grande amigo e lenda da country Willie Nelson, e criado como oposição visceral, como tudo em Young, à América de Trump, chegou dia 1 de Dezembro. Nesse mesmo dia, chegou a notícia surpresa: toda a sua obra passou a estar disponível online nos Neil Young Archives.
“A minha cena é expressar o que me vai passando pela cabeça. Não espero que as pessoas ouçam a minha música a toda a hora. Por vezes é demasiado intensa”, dizia Young ao então jornalista Cameron Crowe, futuro realizador de Singles ou Quase Famosos. “Se queres ouvir um disco às 11 da manhã, não escolhas o Tonight’s the Night. Ouve antes os Doobie Brothers”, rematou. Lamentamos desiludir Neil Young, força maior da música popular urbana das últimas cinco décadas, inquebrantável, sempre vital, mesmo quando a sua ânsia de fazer o conduz a becos sem saída ou o leva a dar tiros rigorosa e dolorosamente ao lado. Lamentamos, mas não nos deixa alternativa: é que, se não está tudo, mesmo tudo, no site agora inaugurado, está muito, está uma imensidão.
“Soas muito bêbado naquele álbum [Tonight’s the night]”, comenta Crowe. “Vejo-me obrigado a dizer que é o álbum mais líquido que alguma vez fiz”, começa por responder Young, entre gargalhadas. Acrescentará, com a razão do seu lado, dado falarmos de uma das suas obras mais memoráveis: “Penso que é algo que as pessoas devem ouvir. Devem ouvir aquilo a que soa o artista em todas as circunstâncias”.
Avesso à exposição pública do que é privado, desconfortável no jogo da cultura de celebridade desde os primeiros sinais de sucesso, Neil Young nunca se escondeu na sua música, nunca procurou maquilhá-la para se adequar a uma imagem cristalizada dele próprio. “Estarás apenas a fingir se não deixares a tua música tornar-se tão líquida como tu mesmo quando estás pedrado a sério”. Falava de Tonight’s the Night, mas poderia falar de Hitchhiker, gravado em 1976 num único dia e noite de lua cheia com o seu lendário produtor, David Briggs, onde encontramos as primeiras versões de Pocahontas ou Powderfinger, e por fim editado em Setembro deste ano. Poderia falar da aventura new-wave de Trans (vocoder incluído), em 1982, ou de, em 2006, ter gravado num ímpeto Living with War, impressionado com os anos de chumbo da intervenção americana no Iraque e Afeganistão. Podia falar do trabalho meticuloso que dedicou a Greendale (2003), o álbum conceptual de activismo ecologista, tão ambicioso quanto falhado, tornado filme e peça teatral. Podia falar, continuemos, de como revelou uma intimidade desarmante, lunar, em After the Gold Rush (1970), e de como se deixou contagiar pela energia primitiva dos Crazy Horse, a banda que todos os seus amigos músicos consideravam um bando de inaptos sem o talento que Young merecia – mas ouve-se Zuma, de 1975, ouve-se Sleeps with Angels, gravado quase duas décadas depois, e é óbvio que Neil Young sabia muito bem a preciosidade que descobrira em Billy Talbot, Ralph Molina, Danny Whitten e, após a morte deste, Frank “Poncho” Sampedro.
O arquivista caótico-metódico
Os arquivos agora disponibilizados online por Neil Young permitem-nos saltar de uma gravação para outra, ao sabor da descoberta, de um impulso momentâneo, da curiosidade em descobrir o ontem e o hoje, de lhe ver o retrato complexo e contraditório formar-se enquanto viajamos aleatoriamente por cinco décadas de música. Alojados em www.neilyoungarchives.com, são a concretização de um projecto de longuíssima data: a disponibilização de toda a música de Young, de todos os pontos da carreira e em qualquer formato em que se encontrem, que este foi diligentemente guardando desde que, em 23 de Julho de 1963, gravou com os Squires, em Winnipeg, no seu Canadá natal, o primeiro single da sua carreira – lado A, The Sultan, lado B, Aurora; dois pedaços de surf-rock com Hank Marvin, guitarrista dos Shadows e herói da adolescência de Young, como figura tutelar.
O trabalho começou no final dos anos 1980, quando Young reuniu uma equipa para começar a organizar todo o material que fora acumulando ao longo do tempo. Ano após ano, deparávamos com notícias que davam o trabalho como quase concluído e com notas sobre a edição iminente dos primeiros volumes do material arquivado. Sempre noticiado, sempre adiado. Assim foi até 2009, quando se tornou oficial: chegava às lojas o primeiro volume, cobrindo o período 1963-1972, e era anunciada para breve a edição do segundo (o que não aconteceu até agora). Em seu lugar chegaram vários álbuns de actuações ao vivo, registados entre a década de 1960 e os anos 1990, chegaram reedições remasterizadas de álbuns já editados ou raridades como o supracitado Hitchhiker.
Dia 1 de Dezembro, a surpresa: ao anunciado novo álbum juntou-se o site onde podemos ouvir (quase) toda a música editada por Young, disponível através do seu novo serviço de streaming de alta-fidelidade, o Xstream. Até 30 de Junho de 2018, é todo nosso – a partir daí, o acesso só será possível através de uma subscrição paga.
Quando em 2003, numa entrevista ao The Times, lhe perguntaram, tinha ele 57 anos, quais as desvantagens de ver os anos passarem, respondeu sem pestanejar: “Cristo! Sou um velhote. Essa é a desvantagem. Olho-me ao espelho e pergunto: ‘Mas quem raio és tu?’. Costumava ser tão cool. Mas não é nada de importante. Estou num jogo para jovens, só que já não é assim. O rock’n’roll seguiu em frente”. O site é exactamente o que se esperaria de Neil Young, deste Neil Young, o velho sabedor das coisas da vida desde muito novo (tinha 19 anos e já chorava a infância perdida em Sugar mountain), o homem em quem arde uma chama, denunciada pelo brilho intenso e misterioso do olhar, que o impele sempre em frente, que o impele a fazer-se um com a guitarra, ser feérico movido a electricidade incontrolável.
Organizado como se de um verdadeiro arquivo físico se tratasse – uma das modalidades de pesquisa consiste em avançar pasta a pasta (ou seja, ficheiro a ficheiro), ano após ano, como se folheássemos um arquivo real -, é um trabalho moderno com design de coisa antiga (quase sentimos o pó saltar do ecrã, quase sentimos o cheiro a papel e cartão). Navegando pela linha temporal (outra das formas de pesquisa), podemos aceder aos discos, à música contida neles, aos créditos de produção e à arte gráfica. Botões alinhados na metade inferior do ecrã dizem-nos o que andava Neil Young a fazer, por exemplo, a 14 de Abril de 1976 (foi o dia em que gravou Ocean girl com Stephen Stills).
Trabalho em construção, tem assinalados álbuns perdidos que conhecerão edição no futuro, como Chrome Dreams, da década 1970 e casa original de Like a hurricane, ou Toast, gravado com os Crazy Horse no início deste século e que os conhecedores dizem ser uma pérola por descobrir. Frustra não conseguirmos ouvir os Mynah Birds, banda que partilhou com Rick James (esse, o de Superfreak) no período pré-Buffalo Springfield, frustra não conseguirmos ver nenhum dos seus filmes para além de Journey Through the Past, realizado por Young sob o seu pseudónimo cinematográfico Bernard Shakey e estreado em 1974 - suspeitamos que muito do que se encontra inacessível estará disponível quando o acesso aos Arquivos passar a ser pago.
Ainda assim, impressiona ver assim e poder viajar assim pela carreira do homem que, naquele mesmo Journey Through the Past, ouvia um radialista passar canções dos Buffalo Springfield e, banda desmembrada há um mero par de anos, exclamava: “É estranho ouvir todas estas velhas canções. Estamos num sítio completamente diferente”. Estávamos, e a viagem continuou, de sítio diferente em sítio diferente, sem que Young parasse de olhar para trás enquanto os olhos se fixavam no horizonte à sua frente.
Na entrevista ao The Times de 2003, Neil Young comentava a situação política no seu país de adopção. “O que existe neste momento é o melhor terreno fértil para a revolução que temos nos Estados Unidos desde a era Nixon. É muito fértil neste preciso momento. Dentro de três ou quatro anos, acabará num levantamento semelhante ao dos anos 1960”. Quando o jornalista pesava ainda as sábias palavras do veterano muito experiente e muito vivido, Neil Young exclama: “Mas repare que já estive errado. Muitas, muitas vezes”. Isso nunca o fez parar, como podemos agora comprovar, andando para trás e para a frente nestes velhos arquivos tornados matéria muito moderna. À imagem do homem que os criou, portanto.