Sicília, da comida de rua à invenção do gelado
A gastronomia siciliana oferece uma história, aqui contada pelo escritor Roberto Alajmo, que passa por gregos e romanos, árabes e judeus, navegadores portugueses e pasteleiros criativos.
Se há comida que simbolize a gastronomia siciliana, é a bola de arroz recheada de carne, panada e frita, chamada de arancine porque a sua forma faz lembrar a de uma laranja. É comida de rua, popular, para se comer em equilíbrio precário e, no final, lamber os dedos. Até porque, diz o escritor e jornalista siciliano Roberto Alajmo, no meio da variada e culturalmente complexa gastronomia da ilha italiana, o que realmente interessa é a comida de rua, tradição que vem já do tempo dos gregos.
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Se há comida que simbolize a gastronomia siciliana, é a bola de arroz recheada de carne, panada e frita, chamada de arancine porque a sua forma faz lembrar a de uma laranja. É comida de rua, popular, para se comer em equilíbrio precário e, no final, lamber os dedos. Até porque, diz o escritor e jornalista siciliano Roberto Alajmo, no meio da variada e culturalmente complexa gastronomia da ilha italiana, o que realmente interessa é a comida de rua, tradição que vem já do tempo dos gregos.
“Há três tipos de cozinha na Sicília”, contou Alajmo durante uma conferência em Lisboa, no Instituto Italiano de Cultura, integrada na Segunda Semana da Gastronomia Italiana no Mundo. “Temos a cozinha aristocrática, que se fazia nos palácios, a comida de rua e a de imitação”, ou seja, os pratos que os criados faziam para si próprios, imitando os que tinham cozinhado, com ingredientes mais nobres, para os senhores.
Se o prato servido à mesa dos nobres levava cordoniz, no dos criados a carne era substituída por beringela, por exemplo. “Existe até um prato chamado ‘coelho’, que é uma espécie de ratatouille com muitos elementos, mas sem coelho”, explicou Alajmo, autor de várias peças de teatro e romances, entre os quais È stato il figlio, adaptado ao cinema por Daniele Cipri.
Entre o povo, “a única riqueza era a pobreza e a fome era o ingrediente principal”, afirma. Foi daí que nasceu uma cozinha de rua particularmente inventiva, que aproveita as vísceras e partes menos nobres dos animais, do baço aos pulmões, passando pelas cartilagens ou os beiços do porco, e que teve, nos últimos anos, um renascimento. Porque é que as arancine se destacam? “Para além de serem boas, são um belo objecto, têm um belo design”, responde Alajmo. “Representam bem o melting pot da cozinha siciliana e encontram-se em todas as esquinas de Palermo.”
O melting pot vem das inúmeras influências que a ilha sofreu, e que, em comparação com o resto de Itália, resultam numa cozinha mais marcada pela presença de árabes e judeus, numa cozinha popular que sobreviveu por transmissão oral. “Não há receitas escritas porque as pessoas que as faziam eram analfabetas”, sublinha Alajmo. “Tal como não existem vestígios do sabir, uma língua franca que se praticava nos portos do Mediterrâneo” e que era uma mistura de português, espanhol, francês, berbere, turco, greco e árabe, falada pelos navegadores.
Foram estes que levaram até à Sicília as laranjas, vindas do Oriente, e que ainda hoje em dialecto siciliano são chamadas de partualli (na Calábria, Campania e Puglia são conhecidas como purtualli) em memória dos navegadores portugueses.
A cozinha siciliana cruza-se com a portuguesa não só nas laranjas ou na importância dada ao arroz (“Fazemos um arroz doce com leite e canela muito parecido com o que se come em Portugal”), mas também, por exemplo, no uso do bacalhau. “Existe uma geografia do bacalhau, a capital é Lisboa, sem dúvida, mas em todo o Mediterrâneo há uma espécie de colónias, que se concentram sobretudo nos portos, Barcelona, Génova, Veneza. Na Sicília, particularmente em Messina, há muitas preparações específicas de bacalhau.”
Muito marcantes também na gastronomia siciliana são a pastelaria e a doçaria, que, segundo Alajmo, beneficiam igualmente de forte influência árabe. Um dos doces mais famosos é a cassata, que tem como base um bolo tipo pão-de-ló embebido em licor, com ricotta, frutas cristalizadas e massapão. “É muito antigo, atribui-se aos árabes, mas poderá ser ainda mais antigo [terão sido os gregos a fazer pela primeira vez uma torta com queijo, à qual os árabes juntaram mais tarde o açúcar como substituto do mel]”.
Segundo o escritor, a cassata terá começado por ser um bolo mais modesto. O seu aspecto colorido e festivo é dado pelas frutas cristalizadas, que seriam uma inovação muito mais recente. Conta-se que, no final do século XIX, um pasteleiro de Palermo achava que ia enriquecer vendendo fruta cristalizada e, quando percebeu que esta não tinha o sucesso que esperava, teve que encontrar uma solução para a quantidade enorme que já tinha em armazém — foi então que decidiu decorar a tradicional cassata com as frutas cristalizadas de várias cores. “Fez dela um doce muito mais barroco”, conclui Alajmo.
Outro ícone da doçaria da Sicília são os cannoli — quem não se lembra da célebre frase no filme O Padrinho, dita em plena cena de matança, “Leave the gun, take the cannoli”? Também estes rolinhos são recheados com ricotta, queijo muito popular na ilha, e frutas cristalizadas.
O gelado poderá igualmente ter a sua origem na Sicília. Diz-se que já os árabes que ali habitavam misturavam a neve do monte Etna com calda de açúcar e sumo de fruta. Só mais tarde, em 1600, entra em cena outra personagem que será determinante: Francesco Procopio dei Coltelli, herdeiro de uma máquina de fazer gelados que levou com ele para França, onde abriu o café Procope — aí, aperfeiçoou a máquina e chegou aos gelados tal como os conhecemos hoje.
A quem visitar a Sicília e quiser conhecer melhor a sua gastronomia, Roberto Alajmo deixa um conselho: melhor do que ir a restaurantes, é explorar o fascinante mundo da comida de rua. Mas, acrescenta, para quem puder, “o verdadeiro privilégio é conseguir um convite para comer em casa de uma família siciliana”.