O piano de Filipe Raposo percorre as ruas de Lisboa
Depois de ter habituado o seu piano a conviver com as imagens do cinema mudo em sessões da Cinemateca Portuguesa, Filipe Raposo junta agora música original a um título fundamental do cinema mudo português: Lisboa, Crónica Anedótica, sinfonia urbana de Leitão de Barros.
Há um plano de Lisboa, Crónica Anedótica, sinfonia urbana que Leitão de Barros filmou em 1930, de que Filipe Raposo gosta especialmente. As mulheres saem da lota, equilibrando na cabeça as canastras amontoadas de peixe, e descalças assentam as solas dos pés no chão num gesto que para o pianista é sinónimo de uma certeza e de uma consciência do dia que as espera. Há sorrisos nos seus rostos, mas que mal disfarçam as horas que têm pela frente, pouco enganam em relação ao que se imagina “que seria vender, o que seria sobreviver num período dificílimo, em que se uma destas mulheres não saísse de casa para trabalhar isso apenas significava ausência de rendimento”.
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Há um plano de Lisboa, Crónica Anedótica, sinfonia urbana que Leitão de Barros filmou em 1930, de que Filipe Raposo gosta especialmente. As mulheres saem da lota, equilibrando na cabeça as canastras amontoadas de peixe, e descalças assentam as solas dos pés no chão num gesto que para o pianista é sinónimo de uma certeza e de uma consciência do dia que as espera. Há sorrisos nos seus rostos, mas que mal disfarçam as horas que têm pela frente, pouco enganam em relação ao que se imagina “que seria vender, o que seria sobreviver num período dificílimo, em que se uma destas mulheres não saísse de casa para trabalhar isso apenas significava ausência de rendimento”.
Essa dureza que impregna as imagens é, por outro lado, contrapesada por uma poética carregada, sobretudo, nas sequências em slow motion, quando esses gestos repetidos e gastos do dia-a-dia se revelam autênticas coreografias. É assim que acontece na belíssima marcha das peixeiras à saída da lota, numa qualidade de movimentos quotidianos que o pianista compara a uma estética ressoadora da linguagem da coreógrafa alemã Pina Bausch. O pianista encanta-se com uma poesia que é também metafórica das mulheres que carregam o alimento, movidas por “uma urgência de avançar e de fazer com que a própria espécie não pare, continue e se renove”. Uma pequena extirpação da realidade que abre para o ciclo maior da vida traçado por Lisboa, Crónica Anedótica, da chegada de comboio à cidade, quase a direito para as amas-de-leite dos bebés na Misericórdia, até ao final em que a velhice e a infância se fundem, enquanto os velhos fabricam os seus próprios caixões e revolvem a terra que os há-de engolir. “Como se vive, como se nasce em Lisboa”, dizem as legendas iniciais do filme de Leitão de Barros.
Há muito que Filipe Raposo vem criando cumplicidade e intimidade com estas imagens. Com estas e outras pertencentes a outras sinfonias urbanas essenciais – Berlim, Sinfonia de Uma Capital (Walther Ruttmann), O Homem da Câmara de Filmar (Dziga Vertov) ou Manhatta (Paul Strand e Charles Sheeler) –, que tem acompanhando com as notas do piano, ao vivo, em sessões da Cinemateca Portuguesa dedicadas à histórica cinematografia do cinema mudo. Guiando-se, nalguns casos, por instruções oferecidas pelos realizadores – que chegavam a elaborar uma playlist rigorosa a ser executada como acompanhamento –, noutras situações segue apenas aquilo que a intuição e a sua relação com os fotogramas vai sugerindo e ditando no momento. Mas se o filme de Leitão de Barros fora já alvo da sua leitura musical na Cinemateca, o convite de Tiago Baptista, director do ANIME, para registar os seus apontamentos sonoros numa edição em DVD de Lisboa, Crónica Anedótica – que inclui ainda as curtas Malmequer e Mal de Espanha, do mesmo realizador e também musicadas – obrigou a um trabalho bastante mais meticuloso e detalhado sobre os nove capítulos que compõem o filme.
Essa fixação da música num registo gravado levou a que Filipe Raposo trabalhasse a partir de vários motivos, um por capítulo, que repete, desenvolve, estende, adultera e usa como trampolim para outras ideias, mas que teve sempre presente a reflexão sobre como “simbolizar a realidade daquele período histórico, final dos anos 20 e princípios dos anos 30” e, ao mesmo tempo, “trazer não só a contemporaneidade para o filme mas estabelecer uma ponte entre passado e presente”. “Quer queiramos quer não”, diz, “ao revisitarmos esse passado estamos a revisitar-nos a nós próprios.” Daí que tenha acontecido olhar para aquelas caras, que o olhavam também através do tempo e do cinema, e lhe parecesse reconhecê-las, como se a distância temporal se esbatesse e se encontrassem de súbito nas ruas de uma cidade que “é uma espécie de palco que nos recebe, geração após geração”.
Um mapa sonoro
A experiência que Filipe Raposo vem acumulando nas teclas do piano enquanto fazedor de música que acompanha cinema mudo foi-lhe ensinando que tão importante quanto as notas que toca são aquelas que silencia. Não podendo ter Leitão de Barros ao seu lado para o questionar sobre a justeza das suas opções, tentando “adivinhar aquilo que o realizador gostaria que fosse feito”, frisa que “tem de se partir para um trabalho como este com um grande respeito pela imagem”. Afinal, está a acrescentar música a uma obra que não lhe pertence, e não a gravar um disco a solo em que apenas ele responde pelo objecto final. Por isso, em certos momentos, Filipe opta por deixar o piano soar até o som se extinguir, subtraindo-se do filme, num apelo para que o olhar de cada um seja aprisionado pelas imagens e pelos dramas diários de sobrevivência que, em diversas ocasiões, se atravessam na frente da câmara. Como se, retirando a música de cena, desaparecesse qualquer barreira entre o espectador e o interveniente, e um pudesse, por breves instantes, habitar o corpo e o espaço do outro.
Ao interpretar a música de um filme sobre a sua cidade, Filipe Raposo entende que este é um convite – que espera extensível ao espectador – para uma reflexão sobre o espaço que habitamos, sobre as ruas e as figuras locais por que passamos todos os dias, varrendo-as automaticamente para a irrelevância por serem personagens demasiado presentes, próximas e previsíveis. Aqui quer-se virar esse tabuleiro ao contrário, abrir um espaço para a contemplação dessa aparente banalidade. Por isso, o pianista não resiste a deixar que as suas próprias memórias emocionais dos bairros se manifestem. Talvez por defeito profissional, admite, seria capaz de “traçar um mapa da cidade com o mero recurso ao som”, pensando como as pedras da calçada, o chão de alcatrão, o eco nos becos, a música que se escuta nalguns pontos, a distância entre as paredes, os espaços abertos ou fechados, o tráfego ajudam a dar forma a uma ideia sonora de cada lugar.
Nas imagens de Alfama, por exemplo, o piano vagueia pelo tradicional Fado Cravo, enquanto o slow motion regressa e acompanha os putos a brigar – em mais uma sequência coreográfica – “ao retardador, as bofetadas são carícias”, diz a legenda. Uma pequena manipulação de uma cena encenada, parte de um filme que finta o documentário ao acolher desvios ficcionais, mas que não deixa, ainda assim, de retratar a pobreza, as enormes assimetrias sociais, o peso das instituições na educação e formatação das crianças e a dureza do trabalho braçal. Um filme para, depois de ver, continuar a olhar em volta. E não somente para trás.