Um arquivo digital do Livro do Desassossego para ler e mexer

O Arquivo LdoD, esta quinta-feira apresentado em Coimbra, é uma poderosa máquina literária, onde pode ver todos os documentos originais ou comparar as várias versões impressas da fragmentária obra-prima pessoana, mas também organizar a sua própria edição do livro.

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ENRIC VIVES-RUBIO / PUBLICO

Chama-se Arquivo LdoD, mas é muito mais do que um mero acervo digital da documentação original do Livro do Desassossego (LD). Quem acede a https://ldod.uc.pt/ entra numa espécie de máquina literária, onde pode limitar-se a ler, mas também é desafiado a assumir outros papéis, seja o de antologiador ou editor da incatalogável obra pessoana, seja, num futuro próximo, o de criador, escrevendo novos textos a partir dos fragmentos do LD.

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Chama-se Arquivo LdoD, mas é muito mais do que um mero acervo digital da documentação original do Livro do Desassossego (LD). Quem acede a https://ldod.uc.pt/ entra numa espécie de máquina literária, onde pode limitar-se a ler, mas também é desafiado a assumir outros papéis, seja o de antologiador ou editor da incatalogável obra pessoana, seja, num futuro próximo, o de criador, escrevendo novos textos a partir dos fragmentos do LD.

O projecto, que será apresentado esta quinta-feira de manhã (às 11h30) no Anfiteatro III da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC) por Manuel Portela, do Centro de Literatura Portuguesa da UC, que o concebeu e coordenou, e por António Rito Silva, do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores (INES-ID) do Instituto Superior Técnico, responsável pela arquitectura do sofisticado software envolvido, já está em linha e foi pensado para poder ser manuseado com facilidade e proveito por utilizadores muito diversos: estudantes, investigadores, leitores em geral, mas também, por exemplo, futuros editores ou tradutores do LD, que a partir de agora dificilmente poderão deixar de passar por este arquivo.  

Interessado há muito pelas questões – e oportunidades – que a migração do património literário para o meio digital levanta, o poeta, ensaísta e tradutor Manuel Portela encontrou nesse objecto genialmente fragmentário, inacabado e aberto que é o Livro do Desassossego o candidato ideal para esta ambiciosa experiência concreta, sem precedentes conhecidos entre os arquivos digitais dedicados aos grandes escritores mundiais. “Do ponto de vista conceptual, introduzimos uma dimensão nova, que é o facto de o utilizador não se colocar apenas no papel de intérprete, mas ser posto numa relação de manipulação com o texto”, diz.

Portela começou a pensar no projecto em 2009, mas este só arrancou em 2012, com o patrocínio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, o apoio de fundos europeus e o envolvimento do Centro de Literatura Portuguesa da UC, do INESC-ID e da Biblioteca Nacional. E cinco anos até o arquivo estar agora em linha não parece assim tanto tempo, se tivermos em conta o gigantismo da operação, que envolveu digitalizar e transcrever – com o tipo de detalhe de uma edição crítica – todo o material autógrafo atribuível ao LD, incluindo os manuscritos e dactiloscritos disponíveis para cada fragmento, mas também as versões impressas em revistas ainda em vida de Pessoa, e ainda as principais edições póstumas do livro, da que Jacinto Prado Coelho organizou em 1982 até às mais recentes, propostas por Teresa Sobral Cunha, Richard Zenith e Jeronimo Pizarro.

Uma das virtudes deste arquivo, observa Portela, é permitir uma comparação imediata não apenas entre as várias versões de um mesmo fragmento – “assinalámos em todos os textos as variações que existem, quer nos documentos autógrafos, quer nas transcrições” –, mas também “à escala do livro, comparando, por exemplo, a selecção de fragmentos”. As diferenças entre as edições do LD estão longe de se resumir ao número de fragmentos que cada editor considerou, mas para se perceber que também não se trata de uma questão de somenos, vale a pena lembrar – informação que o Arquivo LdoD oferece à velocidade de um clique – que a edição de Prado Coelho reunia 520 textos, ao passo que a de Sobral Cunha aceita 748.  Zenith ficou-se por 568 e Pizarro considerou 586.

Logo que abre a homepage deste arquivo, muito bem conseguida também em termos gráficos, o utilizador é confrontado com um menu que lhe aponta cinco caminhos possíveis, correspondentes a outras tantas funções: “Leitura”, que oferece diferentes modos de ler o LD; “Documentos”, que lista todos os fragmentos, fornecendo informação técnica sobre cada um deles, bem como links para as respectivas fontes documentais e transcrições; “Edições”, onde se podem visualizar os documentos originais e as transcrições feitas pela própria equipa do arquivo, mas também optar por uma das quatro edições disponíveis do LD, escolher um fragmento e perceber, através das opções oferecidas num menu lateral, como aquele mesmo fragmento foi tratado pelos restantes editores do livro; “Pesquisa”, uma poderosa ferramenta de busca que permite procurar fragmentos segundo o suporte, a assinatura, a data e inúmeros outros critérios, incluindo o tema ou a presença de determinada palavra; e ainda “Virtual”, um espaço onde o utilizador pode criar a sua própria edição do LD ou organizar uma antologia do livro.

A estas cinco funcionalidades, adianta Manuel Portela, irá somar-se uma sexta, a “Escrita”, que estará disponível “talvez daqui a dois anos”. A ideia, explica, é “permitir que os utilizadores escrevam com base no Livro do Desassossego, expandindo-o, completando textos inacabados ou usando-o como ponto de partida para novas criações literárias. E todos estes contributos, bem como as antologias e edições propostas pelos utilizadores, ficarão no sistema. Ou seja, se no futuro próximo alguém abrir neste arquivo, por exemplo, o fragmento que começa “Amo, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade baixa (…)”, encontrará o respectivo dactiloscrito conservado na BN, a digitalização da sua versão impressa no  n.º 2 de A Revista, e a sua transcrição nas quatro edições do LD, mas poderá ainda ver como este texto em particular foi tratado nas antologias e edições entretanto organizadas pelos utilizadores ou verificar se alguém se terá inspirado nele para propor variações ou novas criações literárias.

“Arquivo foi a palavra que usámos no início, mas é mais um simulador, um ambiente dinâmico em que se pode não apenas ler o texto de Pessoa, mas brincar, mexer, recombinar”, resume Manuel Portela.