Ó Jerusalém!
Independentemente do que vier a acontecer, Jerusalém não deixará de ser a capital do Estado de Israel.
Palco de sucessivas disputas ao longo da história, nenhuma cidade no mundo desencadeia tantas paixões como Jerusalém. A reacção à recente proclamação de Donald Trump reconhecendo Jerusalém como capital de Israel e anunciando a transferência da embaixada dos EUA vem mais uma vez comprovar esta realidade.
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Palco de sucessivas disputas ao longo da história, nenhuma cidade no mundo desencadeia tantas paixões como Jerusalém. A reacção à recente proclamação de Donald Trump reconhecendo Jerusalém como capital de Israel e anunciando a transferência da embaixada dos EUA vem mais uma vez comprovar esta realidade.
Na verdade, Trump vem apenas reconhecer uma realidade já existente: Israel é um país soberano e, independentemente de ser ou não reconhecida como tal, Jerusalém é a sua capital e não Telavive, como alguma ignorância mediática já o afirmou.
Não vou aqui invocar o carácter sagrado de Jerusalém para o judaísmo, nem os três mil anos de presença ininterrupta judaica na cidade. Vou apenas lembrar que depois da Guerra da Independência de 1948/49, movida por cinco Estados árabes contra o recém-proclamado Estado de Israel, uma das primeiras medidas do seu Governo foi a declaração de Jerusalém como capital do novo Estado: a 13 de Dezembro de 1949, o Parlamento israelita, o Knesset, é transferido para Jerusalém, seguido em Janeiro de 1950 por todo o Governo.
Um século antes, em 1855, Sir Moses Montefiori fundara as primeiras casas fora da Cidade Velha de Jerusalém, no bairro que ainda hoje ostenta o seu nome. A população da cidade, maioritariamente judaica, vivia essencialmente dentro das suas muralhas e o novo bairro, assim como outros que lhe seguiram, alargaram para ocidente as fronteiras de Jerusalém, permitindo o crescimento e desenvolvimento da cidade que em vésperas da Primeira Grande Guerra contava com 70.000 habitantes, dos quais 50.000 judeus.
Mas no final da Guerra da Independência e pela primeira vez na sua história, Jerusalém foi dividida. Israel ficou com o lado ocidental e a Jordânia com o oriental, incluindo a Cidade Velha, anexando esse território em 1950. Resistindo às pressões das forças militares judaicas que insistiam em libertar Jerusalém e obrigar a Legião Árabe a recuar para lá do Jordão, o Governo israelita resolve manter o statu quo e não prosseguir a guerra. Com efeito, para David Ben-Gurion, era mais importante consolidar o Estado judaico do que aumentá-lo: “Confrontados com a questão da totalidade do país sem Estado judaico, ou um Estado judaico sem a totalidade do país, escolhemos o Estado judaico sem a totalidade do país.” Ao assinar o acordo de armistício com o rei jordano Abdallah, o Governo de Israel também esperava salvaguardar a hipótese de um acordo futuro de paz mútua.
Mas a paz não existiu: sob controlo jordano e em contradição com o acordado, os judeus ficaram impedidos de orar nos seus lugares sagrados, incluindo no Muro Ocidental, dito “Muro das Lamentações”. Foram destruídas 58 sinagogas ou transformadas em estábulos e aviários, assim como numerosas pedras tumulares. Por seu turno, os cristãos, embora pudessem frequentar os seus lugares santos, também eram sujeitos a restrições várias e a um controlo severo.
No seguimento da Guerra de 1967 — na qual Israel conquista Jerusalém oriental e reunifica a cidade —, o Governo israelita restabelece a liberdade de acesso a todos os espaços sagrados das três religiões. Apesar de uma lei do Parlamento de 1980 oficializar a anexação de Jerusalém oriental, mais tarde, no quadro de negociações israelo-palestinianas de Camp David no ano 2000, o então primeiro-ministro Ehud Barak propõe ao então líder da Autoridade Palestiniana, Yasser Arafat, a entrega de parte de Jerusalém oriental para futura capital de um Estado palestiniano. Mantendo a política suicida de tudo ou nada, a proposta é rejeitada.
Hoje, 17 depois, apesar de a maioria das embaixadas estarem sediadas em Telavive, os consulados de oito países estão em Jerusalém, mantendo relações diplomáticas com a Autoridade Palestiniana: Grã-Bretanha, Turquia, Bélgica, Espanha e Suécia estão em Jerusalém oriental, enquanto os consulados dos EUA, França, Itália e Grécia se encontram em Jerusalém ocidental. Mesmo sem reconhecer a anexação de Jerusalém oriental por Israel, nada impede a instalação das embaixadas em Jerusalém ocidental que, independentemente do que possa vir a acontecer, não deixará de ser a capital do Estado de Israel. Tal como acaba de anunciar a República Checa, que decidiu instalar a sua embaixada em Jerusalém ocidental dentro das fronteiras de 1967. Talvez seja esta uma forma de desbloquear a situação...
Não tenho simpatia nenhuma por Donald Trump, nem pelas suas políticas externas e internas. Acredito que esta decisão foi essencialmente motivada por motivos internos, sem qualquer consideração pelas suas consequências que, do ponto de vista político, recaem sobretudo sobre Israel, unindo contra si o mundo árabe e islâmico mesmo que esporadicamente. Mas neste caso concreto pior é a hipocrisia da União Europeia que, invocando um “processo de paz” inexistente, mais não faz do que perpetuar um statu quo que torna a “paz” cada vez mais distante.
A desgraça palestiniana não é uma coisa boa para Israel. Quer se goste ou não, ambos os destinos estão ligados: ambos os povos têm o direito a viver entre o Jordão e o Mediterrâneo e a sua coexistência pacífica apenas será possível no quadro de dois Estados independentes e soberanos. Não adianta negar a ligação histórica de um ou outro à terra tão disputada, porque não é de história, sonhos ou mitos que se fará a paz. Foi a lucidez de David Ben-Gurion e de Haim Weizmann, ao reconhecerem a existência de um outro povo na Palestina, que permitiu a criação do Estado de Israel. Da mesma forma que foi essa negação que levou os palestinianos à sua própria tragédia.