Regressar à solidão
É uma exposição sobre a solidão. O lugar onde, apesar de todas as distracções, habitamos e ao qual todos regressamos.
Os prolongamentos e contaminações entre o espaço do cinema e a galeria de exposições têm conhecido enorme intensificação. O que constituirá a marca daquilo que podemos considerar a arte do nosso tempo. Este duplo movimento — do cinema para o museu (que Godard diz ser a casa das imagens) e da arte para o cinema — revela uma dupla ambição: por um lado, o cinema ambiciona a fisicalidade e a espacialidade que a imagem na galeria de exposições apresenta e, por outro, as artes do museu ambicionam o tempo exigido pela imagem cinematográfica, a sua duração e a capacidade de síntese que o som/palavra, a imagem e o tempo (de que é feito o cinema) proporcionam (em oposição aos 30 segundos que, segundo se diz, um espectador mediano perde à frente de uma escultura ou pintura).
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Os prolongamentos e contaminações entre o espaço do cinema e a galeria de exposições têm conhecido enorme intensificação. O que constituirá a marca daquilo que podemos considerar a arte do nosso tempo. Este duplo movimento — do cinema para o museu (que Godard diz ser a casa das imagens) e da arte para o cinema — revela uma dupla ambição: por um lado, o cinema ambiciona a fisicalidade e a espacialidade que a imagem na galeria de exposições apresenta e, por outro, as artes do museu ambicionam o tempo exigido pela imagem cinematográfica, a sua duração e a capacidade de síntese que o som/palavra, a imagem e o tempo (de que é feito o cinema) proporcionam (em oposição aos 30 segundos que, segundo se diz, um espectador mediano perde à frente de uma escultura ou pintura).
Só estranhamente estas movimentações são novas, porque o que está em causa, em qualquer domínio de especialidade das artes da imagem, é a forma como se pensa com a matéria das imagens (num certo e importante sentido o cinema é uma arte da imagem): não se trata de pensar através das imagens, como se fossem simples mediadores, mas transformar a imagem (que como sabemos é uma inesperada e feliz junção de muitas coisas: as imagens vêem-se, sentem-se, atravessam-se, até se podem ouvir ou mesmo cheirar) em objecto de pensamento.
Diogo Costa Amarante tornou-se um nome familiar sobretudo a partir do seu filme Cidade Pequena (2016), mas o seu último trabalho é a exposição A unidade de todas as coisas no Espaço Mira no Porto. Esta exposição não deve ser entendida como uma espécie de aproveitamento de material não usado no seu filme, mas sim como uma outra forma de fazer face a um mundo por entender.
É certo que é possível reconhecer a filiação desta instalação no mesmo contexto conceptual e plástico do filme. Mas aqui o jogo (enquanto acção realizada de acordo com regras) é feito através da construção de uma muito especial gramática das imagens a partir do qual o realizador desenvolve outras formas das imagens se relacionarem entre si. Aqui as imagens co-existem, sobrepõem-se, prolongam-se umas nas outras, entre muitos outros movimentos que a tradicional montagem cinematográfica não permite.
Formalmente, a exposição é constituída por quatro projecções que funcionam como dois dípticos cuja singularidade está no facto de serem pontos de divergência. Isto é, as projecções não só funcionam nas costas umas das outras (a projecção 1 é feita no verso da projecção 2, a 3 no verso da 4), como os seus temas e elementos materiais são totalmente diversos. Uma espécie de estratégia disjuntiva que permite ao cineasta trabalhar com oposições: esperar/agir; cheio/vazio; juntar/separar. E são estas acções que obrigam o espectador a movimentos pouco habituais nos modos instaurados de ver e prestar atenção.
O trabalho com aquelas oposições e divergências, como Amarante lhes chama no texto de apresentação, permite construir uma experiência de solidão e abandono tão característica da nossa vida comum. A abertura é uma enorme alegoria à experiência de solidão e de espera: uma rapariga ouve em loop a música Rythm of the night (Corona, 1993); a sua solidão parece alimentada pela expectativa de chegada de alguém — ela mantém-se atenta e, apesar do persistente vazio, as luzes decorativas estão acesas e a música sempre a tocar. Uma espera que reconhece não qualquer redenção e condena a personagem a um abandono. Uma mulher que é uma figura do tempo, ou seja, funciona como elemento desta investigação temporal. Como conta Amarante: “Quis saber como ocupava o tempo até às 8 da manhã, ali no meio do nada. Ela respondeu, com algum humor, que usava o turno da noite para pensar numa alternativa para um dia fugir dali.”
Uma ideia de tempo que tem um contraponto na imagem que quase lhe serve de fundo e em que, numa atmosfera campestre e quase bucólica, um homem dorme numa relva e à beira rio enquanto um peixe vai saltando dentro de água. A solidão e abandono deste homem é semelhante à da mulher da roulotte de petiscos nocturnos, mas a relação com a proximidade com a natureza permite, aparentemente, conhecer um certo tipo de redenção. Uma aproximação à natureza intensificada a partir da expressão das semelhanças declaradas pelos trabalhos de Amarante entre os humanos e, por exemplo, as cabras. Não se trata de crítica ou ironia, mas de tornar visível o facto, que teimamos em esquecer, de todos os habitantes do planeta partilharem uma mesma animalidade.
Poderíamos pensar tratar-se de uma exposição essencialmente acerca da solidão. E é-o, no sentido em que constrói um dispositivo crítico para a enfrentar, entendendo-a como condição metafísica natural onde, apesar de todas as distracções, habitamos e à qual todos regressamos.