A atracção do lado negro: crescer com Star Wars
Sem spoilers: O negrume de O Império Contra-Ataca, um dos melhores segundos capítulos do cinema popular, exerce até hoje o seu poder na indústria. Na estreia de Os Últimos Jedi, procuramos uma história tão sombria quanto essa. A nossa própria história?
Um terrível incêndio e uma lei draconiana fizeram com que Anne Lancashire crescesse “sem cultura cinematográfica”. Por isso, no Verão de 1980, O Império Contra-Ataca foi não só o seu primeiro filme Star Wars mas também uma das suas primeiras experiências de cinema popular e de ficção científica. A carreira da académica canadiana mudaria com o filme que muitos elegem como o melhor da saga, um segundo capítulo de uma história de coming of age pleno de negrume e sombras literárias que até hoje influenciam o cinema comercial. A estreia de Os Últimos Jedi, mais um capítulo dois de mais uma trilogia Star Wars, está marcada por essa matriz. Mas será este o tempo de branco e preto se tornarem cinzentos?
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Um terrível incêndio e uma lei draconiana fizeram com que Anne Lancashire crescesse “sem cultura cinematográfica”. Por isso, no Verão de 1980, O Império Contra-Ataca foi não só o seu primeiro filme Star Wars mas também uma das suas primeiras experiências de cinema popular e de ficção científica. A carreira da académica canadiana mudaria com o filme que muitos elegem como o melhor da saga, um segundo capítulo de uma história de coming of age pleno de negrume e sombras literárias que até hoje influenciam o cinema comercial. A estreia de Os Últimos Jedi, mais um capítulo dois de mais uma trilogia Star Wars, está marcada por essa matriz. Mas será este o tempo de branco e preto se tornarem cinzentos?
“Cresci na província do Quebeque e na minha infância havia uma lei que proibia crianças com menos de 16 anos de ir ao cinema. Tinha havido um grande incêndio no cinema de Montréal [1927] que tinha resultado em mortes e ferimentos catastróficos”, conta ao Ípsilon a professora jubilada de Literatura Inglesa Medieval e Modernista. “A televisão só chegou nos anos 1950” e a lei só foi levantada em 1961, por isso nunca valorizou verdadeiramente o cinema. A palavra que a autora de vários artigos científicos sobre a construção dramática dos filmes Star Wars usa para descrever essa sua relação com o cinema na juventude e início da idade adulta é “oblivious” - "esquecida".
Queria entreter os filhos com um filme, nem tinha visto A Guerra das Estrelas (1977), e acabou por encontrar a cultura popular dos tempos medievais, e até Shakespeare, no segundo filme da trilogia original de Star Wars, esse mastodonte pop de que esta semana se estreia o oitavo e novo capítulo (há ainda Rogue One, de 2016, independente das trilogias). “Isto significou que acabei, na segunda metade da minha carreira académica, por estudar e ensinar cinema e literatura.”
É uma história de origem para a carreira de Lancashire, que vive em Toronto, como A Guerra das Estrelas contou a de Luke Skywalker, um rapaz que vivia em Tatooine, e uma outra trilogia contou a de Anakin Skywalker, uma personagem que viveria na infâmia como símbolo de como as dores de crescimento podem ter consequências políticas e morais. O poder de Star Wars, esse conjunto de duas trilogias, uma terceira em curso e uma quarta a caminho, vem “do mito” e da sua ligação “ao que realmente importa dentro de nós”, diz o realizador Rian Johnson, que por estes dias terá um dos filmes mais rentáveis do ano nas suas mãos.
São histórias de “coming of age”, diz o argumentista Filipe Homem Fonseca, cujo segundo capítulo numa estrutura tradicional de três actos tende a ser mais negro, mais tortuoso, pela sua construção narrativa. Crescer com Star Wars é também ver crescer em Star Wars. “Introduzir um elemento mais negro a meio de uma trilogia funciona como um segundo acto no quadro mais alargado de uma história. É uma função da serialização que remonta ao primeiro ‘cliffhanger’ e mesmo aos tempos de Charles Dickens (o rei da ficção em série)”, lembra William Proctor, professor de Média, Cultura e Comunicação na Universidade de Bournemouth e director do The World Star Wars Project.
Há dois anos, O Despertar da Força, o regresso recordista de Star Wars depois de dez anos de ausência (1,7 mil milhões de euros de resultados brutos de bilheteira) apoiou-se fortemente, em termos narrativos, na estrutura de A Guerra das Estrelas - agora rebaptizado como Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança. Os Últimos Jedi “é o segundo filme de uma trilogia e fomos treinados para esperar que seja um pouco mais negro, e obviamente parece um pouco mais negro”, admitiu Rian Johnson na conferência de imprensa sobre o filme, no início do mês, em Los Angeles. Mas será também divertido, será um tributo a Carrie Fisher (a sua princesa-general que morreu há um ano depois de ter terminado de filmar) e uma continuação da história da nova heroína Rey, bem como o regresso de Luke Skywalker. Terá “não só o Wagner” mas também “o Flash Gordon” da ópera espacial que George Lucas criou sob a forma de Star Wars, esclarece Johnson na Rolling Stone.
Estamos treinados não só por Império, mas pelo seu lastro duradouro. O feito de Lucas e o filme que entregou a Irvin Kershner em 1980 ecoam até hoje no cinema de entretenimento. “Embora não seja um novo fenómeno, houve de facto uma aceleração do storytelling serializado no novo milénio”, confirma Proctor.
Mark Hamill, rosto de uma personagem cuja história de coming of age tem um alcance planetário, considera que Império era “era mais profundo. Mais cerebral, mais espiritual”. E isso tornou-se um sinónimo, ou uma bengala, de dignidade. As sequelas e/ou segundos capítulos de trilogias dos anos 1980 seguiram essa tendência: Star Trek II: A Ira de Kahn (1982), Indiana Jones e o Templo Perdido (1984) - “onde é tudo subterrâneo”, lembra Filipe Homem Fonseca, e onde o herói só “deixa de estar em perigo quando vai para o sol” -, e até Regresso ao Futuro II (1989) estavam contaminados pelo negrume. Treze anos depois, Matrix Reloaded perde a patine do vinil de Matrix e mostra as entranhas. E, nos últimos anos, O Cavaleiro das Trevas (2008), Além da Escuridão: Star Trek (2013), Thor: O Mundo das Trevas (2013) ou Capitão América: O Soldado de Inverno (2014) carregaram o escuro dos segundos capítulos no nome. Até As 50 Sombras de Grey são Mais Negras (2017) à segunda volta e na nova televisão que não larga os anos 1980, Stranger Things 2 é uma série que quis intitular-se como filme e enegrecer mais a sua fotografia e a sua história.
Dos filmes já estreados ou por estrear, alguns com a marca Lucas-Spielberg bem vincada, muitos invocam O Império Contra-Ataca como referência. O novo filme Mundo Jurássico: Reino Caído quer ser o Império Contra-Ataca dos novos filmes de dinossauros, tal como Batman v Super-Homem: O Despertar da Justiça queria ser “um pouco O Império Contra-Ataca” nas palavras do seu argumentista. O próprio elenco de Os Últimos Jedi contribui para a eterna associação e expectativa - o guião do novo filme, também escrito por Johnson, “é semelhante a como O Império Contra-Ataca tem um tom diferente”, disse Adam Driver, aliás o aprendiz de vilão Kylo Ren, à Variety.
A idade adulta de Star Wars
Os filmes contam histórias e estas são as dos Skywalker, e de rapazes e raparigas a aprender as fronteiras do bem e do mal, com naves e sabres de luz místicos à mistura. Kylo Ren, uma das novas figuras da galáxia muito, muito distante que mais deixou a sua marca no reboot mercantil de Star Wars, faz a sua própria viagem no novo filme. “Lembra-me, como rapaz, da transição de menino para homem, [de como] aprender como manter um certo tipo de energia que se tem e a escolher a forma como se liberta essa energia. É com isso que ele luta”, diz John Boyega, o Finn dos novos filmes, sobre a personagem de Driver.
A jornada do herói, segundo Joseph Campbell, é o reconhecido molde de onde Lucas forjou a sua história, e de onde Lawrence Kasdan depois partiria para o argumento de Império. Um filme que coincide com o momento em que a produtora Lucasfilm estava ainda a tactear o terreno na sua visão de como podia crescer a saga: por um lado, permitia coisas como editoriais sobre peles na Vogue em que “The Force of Fur” justificava que as modelos encasacadas convivessem com Darth Vader ou C-3P0 nas páginas de uma revista de moda; por outro, lembra Chris Taylor no livro How Star Wars Conquered the Universe, processava Neil Young por ter em palco actores vestidos de jawas, os pequenos seres de mantos castanhos e olhos luminosos do planeta de Luke Skywalker. O filme inclui, acredita Chris Taylor, alguns “dos momentos mais aterrorizantes e traumatizantes do cinema infantil”. É Star Wars a olhar para a idade adulta.
“Império torna a inocência, entusiasmo e optimismo do primeiro filme em algo bastante negro. No primeiro filme há uma ‘boa guerra’, e no segundo Yoda diz que ‘as guerras não tornam alguém grandioso’”, lembra Anne Lancashire. Também Os Últimos Jedi vão ter guerra, filmada de uma forma inédita segundo Boyega, num mundo que é radicalmente diferente daquele em que os seus antecessores foram forjados. “Sou da geração dos Beatles; acreditava que o amor era a única coisa de que precisávamos”, disse Hamill ao Sydney Morning Herald. A sua geração acreditava em chegar ao poder e “não haveria mais guerras, mais discriminação racial, não haveria mais ódio para as comunidades LGBT e trans.(...) E no entanto, o mundo está muito pior hoje do que na altura”. Num “tempo muito cínico, pós-Vietname, pós-Watergate", com o cinema pejado de "anti-heróis”, prossegue, uma fantasia como Star Wars tocava esses elementos de forma indirecta, orgulha-se. Hoje, e tendo em conta que Star Wars veio para ficar, de que Star Wars precisamos?
Sinfonia de crise e escapismo
“Os filmes na cultura pop acabam por ser um espelho dos tempos em que vivemos e até há bem pouco tempo - uma, duas décadas – o tempo de crise era acompanhado por filmes mais solares porque as pessoas precisavam de heróis em quem se apoiar”, reflecte Filipe Homem Fonseca, para quem Império é o melhor filme da saga. “Depois, o balanço da negritude, com filmes mais negros, era feito no rescaldo disso, [quando] já havia distanciamento.” Hoje, “a quantidade de filmes de super-heróis e o regresso de Star Wars e Star Trek ao cinema [mostram que] há uma apetência enorme, em virtude desse ímpeto escapista que a realidade nos traz”, por histórias deste género, por fantasia. E “com a rapidez actual, agora é tudo em sinfonia” - há tanto escapismo quanto espelhos para os problemas do mundo que vive fora da sala de cinema.
O realizador de Os Últimos Jedi tem 43 anos e apenas três longas-metragens no currículo, todas escritas também por si - Brick, Os Irmãos Bloom e Looper - Reflexo Assassino. Assinou também três episódios de Breaking Bad (entre os quais Ozymandias) e terá a seu cargo a futura trilogia Star Wars independente dos Skywalker. Insiste que não há ecos da actualidade no filme, mas sim de humanidade.
Mas Gwendolyn Christie, a actriz dentro da máscara prateada de Capitão Phasma, avisa que “há qualquer coisa neste filme...”. Ele fala do “mundo em que vivemos”, garante, onde faz particular eco esta história “do que é seguir as nossas tendências humanas, obscuras e narcisistas e de onde isso nos leva”.
Procurado para entretenimento, reencontro e emoção, um filme Star Wars é apenas um grão de areia no zeitgeist, mas é um grão que se vê a partir de qualquer parte do mundo. E o seu tom é também um sinal. Há quem procure nestas trilogias um ponto entre o preto e o branco, entre o negrume turbulento da adolescência e a infância luminosa. Stephen Kent, autor de um podcast sobre Star Wars e política, lembrava em Abril no Washington Examiner uma fala da saga: “o bem é um ponto de vista”, como diz um burocrata tornado ditador, o senador Palpatine, em A Vingança dos Sith (2005).
“Atingimos um novo ponto baixo na nossa política e não é exagero dizer que a maior parte dos americanos provavelmente quer fazer o que Luke Skywalker fez algures entre O Regresso de Jedi e O Despertar da Força – afastar-se de tudo”, escreve. Fala da importância do encontro de um meio-termo neste conto de fadas global, que “pode estar a tentar uma vez mais dizer-nos algo sobre nós mesmos. A política partidária está num ponto de ruptura nos EUA e com o tipo de poder cultural que Star Wars detém, uma mensagem forte de equilíbrio pode ser exactamente o que o país precisa.”
Filipe Homem Fonseca vê nas linhas narrativas dos novos filmes indícios disso mesmo. “Não pode existir luz sem escuridão, por isso vamos ser um pouco mais cinzentos”, prevê sobre uma atmosfera “não tão radical. Nem é preto nem é branco. E isso é um coming of age”, remata, é crescer. Star Wars é um franchise imparável, o que assusta William Proctor. “É um ícone cultural, por isso é lógico que a Disney” a explore até ao tutano - “é, infelizmente, assim que funciona o capitalismo tardio”. Teme que deixe de ser “único”. Em termos simbólicos, mas sobretudo narrativos, para Anne Lancashire só uma coisa é certa. “Não é possível voltar à nostalgia do primeiro filme, não temos essa opção.”