O Estado, a cana de pesca e o livro de instruções
1. A morte de Belmiro de Azevedo foi, sem dúvida, um dos acontecimentos marcantes do ano que em breve termina. Elegido por muitos como o maior empresário português do Portugal pós-25 de Abril pelas suas qualidades de liderança, de capacidade de trabalho, de visão prospetiva, mas atenta à realidade, temperada com o rigor e a sobriedade de quem valoriza o mérito e o esforço.
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1. A morte de Belmiro de Azevedo foi, sem dúvida, um dos acontecimentos marcantes do ano que em breve termina. Elegido por muitos como o maior empresário português do Portugal pós-25 de Abril pelas suas qualidades de liderança, de capacidade de trabalho, de visão prospetiva, mas atenta à realidade, temperada com o rigor e a sobriedade de quem valoriza o mérito e o esforço.
Um dos aspetos mais referidos quanto ao seu modelo de gestão prende-se com a sua relação com o Estado. Vários comentadores referiram a sua independência face ao poder político como exemplo de um empresário que não está à espera do favor ou do subsídio obtidos nos corredores dos ministérios para tomar as suas decisões e fazer crescer os seus negócios. Se esta foi uma das suas características mais marcantes, já é mais difícil de aceitar que o papel do Estado, nas suas funções fundamentais, tenha sido um adversário da atividade do empresário ou das empresas que criou e desenvolveu.
Recuemos ao início. Filho de uma costureira e de um carpinteiro de uma aldeia do Marco de Canaveses, Belmiro de Azevedo frequentou a escola primária local, tendo sido a perspicácia do seu professor da escola primária que fez convencer os seus pais a deixá-lo prosseguir os estudos no Porto, no Liceu Alexandre Herculano. Anos mais tarde concluiu a licenciatura em Engenharia Química na Universidade do Porto. Ninguém duvida que o acesso à educação e ao ensino que o Estado da época proporcionou ao jovem Belmiro de Azevedo não tenham sido determinantes no seu desempenho enquanto empresário. Do mesmo modo, as atividades das suas empresas em muito beneficiaram dos bens e serviços públicos que o Estado foi capaz de prover. Basta pensar nas centenas de diplomados em Universidades Públicas que foram contratados, cujo talento e conhecimentos as suas empresas aproveitaram, ou na rede de estradas que permitem aos consumidores chegarem aos supermercados do grupo, ou ainda no sistema de segurança e de justiça, que por muitos defeitos consigamos enumerar, permitem que as lojas do grupo Sonae abram as portas todas as manhãs sem problemas de maior. Foi, aliás, a insuficiência destas funções básicas do Estado, segurança, justiça e uma administração pública onde a corrupção não seja a norma, que impediram o sucesso dos investimentos da SONAE em países como o Angola ou o Brasil. Belmiro de Azevedo subiu a pulso e construiu um grupo empresarial que muito contribuiu para o desenvolvimento do país, mas foi o Estado português que lhe emprestou a escada.
2. Belmiro de Azevedo foi pioneiro na perceção de que a qualidade de gestão era um fator chave para a rendibilidade e sustentabilidade de um negócio. Em 1975, quando rumou à Universidade de Harvard, ou em 1985 quando estudou em Stanford, não era prática corrente os gestores portugueses considerarem a sua formação como um elemento imprescindível para o seu sucesso. Mais tarde, as empresas do seu grupo foram das primeiras a custearem a frequência de MBA ou cursos de especialização em gestão aos seus quadros, culminando o seu empenho na formação dos gestores no apoio à constituição da Porto Business School, uma escola de referência internacional neste domínio. O tempo veio dar-lhe razão: um estudo do INE publicado em novembro deste ano mostra que as práticas de gestão contam significativamente para o desempenho económico das empresas.
No mesmo sentido, os autores deste artigo analisaram a relação entre a escolaridade média dos gestores e a escolaridade média dos trabalhadores dentro da empresa e concluíram que há uma elevada correlação entre ambas. Considerando que a produtividade das empresas depende da qualificação dos trabalhadores, os nossos resultados sugerem que empresas com gestores mais qualificados podem ser mais produtivas, quer porque essas qualificações permitem ganhos de eficiência ao nível da organização, quer porque tenderão a contratar trabalhadores mais qualificados. Acresce que a combinação de ambas as dimensões da qualificação dentro de uma empresa é promotora de inovação e de uma visão internacional do seu mercado potencial, aspetos fundamentais para um crescimento acentuado e sustentado da nossa economia.
Mas a qualidade de gestão não depende unicamente do nível de formação ou de escolaridade dos seus gestores. Num artigo de 2007, publicado no Quarterly Journal of Economics, Bloom e van Reenen investigaram outras causas para a existência de uma grande variabilidade da qualidade de gestão entre países, tendo identificado três fatores: (i) o grau de concorrência no mercado do produto (quanto maior for a concorrência, melhores serão as práticas de gestão); (ii) a gestão familiar (empresas detidas por famílias e/ou geridas por famílias tendem a apresentar piores práticas de gestão); (iii) o grau de internacionalização das empresas (multinacionais e empresas exportadoras também tendem a apresentar melhores práticas de gestão). Todos estes fatores estão presentes nas empresas do Grupo Sonae: nenhuma delas goza de um monopólio natural, o processo de transmissão de poder para os seus filhos foi exemplar, e a Sonae é hoje uma multinacional portuguesa presente em 90 países.
As séries longas de dados existentes relativos aos salários e à produtividade mostram uma forte correlação entre elas, indiciando que não podem existir aumentos sustentados dos primeiros sem crescimento da segunda. Mais do que insistir numa competitividade da economia baseada em baixos salários, obteríamos muito melhores resultados se empresas e decisores públicos investissem seriamente na formação e na qualificação dos empresários portugueses. É que não chega dar a cana ao pescador se esta não vier com o livro de instruções.