Austeridade: uma ilusão perigosa
Os países da Zona Euro podem apenas recorrer à deflação ou ao incumprimento, uma vez que não possuem autonomia monetária para inflacionar os preços ou desvalorizar a moeda.
Toda e qualquer semelhança entre este título e o conhecido livro de Mark Blyth, “A Austeridade: A história de uma ideia perigosa” publicado em 2013, é verdadeira. Esta crónica é inspirada na recente leitura que fiz desta obra, escrita pelo aclamado professor de Economia Política da Universidade de Brown. Embora já haja um vasto grupo de economistas e políticos que têm vindo a derrubar a argumentação por detrás da ideia da austeridade, existe ainda um coletivo de pessoas que acredita que ela foi necessária e a única alternativa possível (onde é que já ouvimos isto?).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Toda e qualquer semelhança entre este título e o conhecido livro de Mark Blyth, “A Austeridade: A história de uma ideia perigosa” publicado em 2013, é verdadeira. Esta crónica é inspirada na recente leitura que fiz desta obra, escrita pelo aclamado professor de Economia Política da Universidade de Brown. Embora já haja um vasto grupo de economistas e políticos que têm vindo a derrubar a argumentação por detrás da ideia da austeridade, existe ainda um coletivo de pessoas que acredita que ela foi necessária e a única alternativa possível (onde é que já ouvimos isto?).
Paul Krugman, prémio nobel da Economia, acreditava, em 2015, que a ideologia da austeridade que dominou o discurso das elites nos últimos anos tinha finalmente colapsado, ao ponto de ninguém mais acreditar nela. Isto, claro, à exceção da coligação Cameron-Clegg, na altura e, diria também, da direita portuguesa – a elite e também algumas franjas da sociedade civil. Em 2014, uma sondagem realizada pela Eurosondagem concluiu que um terço dos portugueses acreditavam que a política de austeridade levava à “cura”, ou seja, que ia ajudar a “equilibrar as contas e recuperar economicamente”. Veja-se também, por exemplo, o que disse Rui Rio, candidato à presidência do PSD, quando questionado, recentemente, sobre uma possível posição de rutura com a austeridade. Rio assumiu que teria “feito igual ou pior” do que Maria Luís Albuquerque, se estivesse ele à frente do Ministério das Finanças.
Mas afinal o que é isso da austeridade? É uma forma de deflação voluntária em que a economia se ajusta através da redução de salários, preços e despesa pública para restabelecer a competitividade, supostamente melhor conseguida à custa de cortes no Orçamento do Estado, nas dívidas e nos défices. Desta forma, alegam os defensores, a “confiança empresarial” irá aumentar, uma vez que o Governo não vai desertificar o mercado de investimento, sugando todo o capital disponível através da emissão de divida, nem aumentar a divida – já demasiado avultada – do país. E foi isto que foi “apresentado” aos países resgatados, em troca da liquidez monetária que não tinham. Estes países cortaram nos orçamentos, mas enquanto as suas economias se contraíam, a dívida aumentava em vez de diminuir e os juros dispararam.
Não foi a primeira vez que esta “receita” foi prescrita e não será certamente a última. Antes da crise financeira de 2008/2009, Moritz Schularick deu conta de 71 crises bancárias sistemáticas em 14 países, nos 140 anos anteriores. As crises bancárias e financeiras vão continuar a existir. E havendo apenas quatro formas de lhes escapar – inflação, deflação, desvalorização e incumprimento – a austeridade (ou deflação) será novamente apresentada como a receita mais eficaz . De forma inevitável, os países da Zona Euro podem apenas recorrer à deflação ou ao incumprimento, uma vez que não possuem autonomia monetária para inflacionar os preços ou desvalorizar a moeda.
Veja-se a semelhança entre os empréstimos dados à periferia da Europa, que nunca poderão ser reembolsados devido ao fardo já pesado da sua dívida. É exemplo a Alemanha dos anos 20, asfixiada pelas imposições do Tratado de Versalhes e sem liquidez, que recebeu avultadas somas de capital – entenda-se empréstimos – dos Estados Unidos, depois usadas para financiar o pagamento das pesadas indeminizações. Dívidas essas que foram, mais tarde, perdoadas parcialmente, em 1953, num acordo em que representantes de 26 países concederam o perdão de metade da dívida da Alemanha pós-guerra. Outros exemplos de que a austeridade quase nunca funciona são o Japão, a França e o Reino Unido no período entre guerras. Afinal, porque é que ainda tantos acreditam que a austeridade funciona e que não havia outras alternativas?
Ainda é comum encontrar pessoas que acreditam que quem é contra a austeridade (e isso não significa ser contra reformas) é radical e heterodoxo. Contudo, segundo Krugman, a verdade é que os livros de economia mainstream não só justificam estímulos económicos após crises económicas, como defendem que esses estímulos devem continuar até a economia recuperar. Em vez disso, cortou-se no Estado Social sem olhar a preocupações como o desemprego. Porquê?
O mérito da resposta não é minha, mas sim de Krugman. Grande parte dos cidadãos não entende a justificativa dos gastos deficitários e tende a pensar no orçamento do Governo através de analogias com as suas finanças familiares e pessoais. É a teoria dos “cintos apertados”, tantas vezes evocada por Pedro Passos Coelho: “O Estado tem de cumprir a sua parte, gastando menos, e as empresas privadas e as famílias vão ter de gastar menos também, de modo a poder poupar […] e a garantir condições para alguma retoma do investimento”.
O problema é que nem sempre a poupança gera investimento. Se todos (famílias, empresas e Estado) fizéssemos essa “poupança”, acompanhada por um corte nas despesas, a economia despenhar-se-ia – é a chamada falácia da composição: quando os agentes tentam transferir para o todo (a economia) aquilo que é verdadeiro apenas para a parte (os agentes).
E claro, existem também razões ideológicas e políticas que respondem à pergunta acima. São essas que explicam o porquê de uma parte da direita portuguesa continuar a defender a austeridade através de uma agenda política e ideológica que apostou as fichas todas na austeridade e numa narrativa em que aqueles que não defendem sacrifícios e escolhas difíceis não são pessoas sérias.
Agora que percebemos (em parte) o porquê de alguns continuarem a acreditar na austeridade, falta refletir sobre o porquê de ter sido – e continuar a ser –, uma perigosa ilusão. Em primeiro lugar, o conceito de austeridade parece apelar, de facto, ao instinto natural dos indivíduos para “cortar em tempos de dívida”, mas é perigoso do ponto de vista social e económico porque não apresenta os resultados que os seus defensores alegam (os resultados insatisfatórios e contraditórios foram até apresentados pelo FMI, no relatório World Economic Outlook, de Outubro de 2012). Em segundo lugar, o modo como a austeridade foi apresentada, tanto pelos políticos como pela comunicação social – como o retorno de uma coisa chamada 'crise da dívida soberana' supostamente criada pelos Estados que aparentemente 'gastaram de mais' – é uma representação fundamentalmente errada dos factos. E em terceiro lugar, porque cortar cegamente no Estado Social contribui também, em parte, para a redução da já baixa mobilidade económica e social em Portugal.
Investigadora associada do IPP e doutoranda em Política Comparada do ICS-ULisboa