Spielberg, a nostalgia dele é a nossa
Documentário biográfico, é o primeiro a contar com a participação do realizador mais famoso do mundo em horas de entrevistas, além de vídeos caseiros e idas aos bastidores dos seus filmes. Estreia-se em Portugal no TVCine2, dia 12.
Steven Spielberg é a nave que se levanta em Encontros Imediatos do 3.º Grau. É o olhar de Indiana Jones que faísca quando um mapa de pedra se ilumina no chão, é o casaco vermelho da menina de A Lista de Schindler, é a despedida luminosa de E.T.. Spielberg é também um novo documentário de Susan Lacy, sobre “o realizador mais famoso do mundo”, e a nostalgia dela é a nossa.
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Steven Spielberg é a nave que se levanta em Encontros Imediatos do 3.º Grau. É o olhar de Indiana Jones que faísca quando um mapa de pedra se ilumina no chão, é o casaco vermelho da menina de A Lista de Schindler, é a despedida luminosa de E.T.. Spielberg é também um novo documentário de Susan Lacy, sobre “o realizador mais famoso do mundo”, e a nostalgia dela é a nossa.
Spielberg, o filme, é um encontro imediato com o familiar. É um olhar de compêndio recheado de revelações que não parecem novas, mas que de certa forma são – a fama de Steven Spielberg nunca o revelou totalmente, defende a realizadora. “Isso é bullshit”, atira mesmo sobre uma crítica ao seu filme que dizia que já sabíamos tudo o que nos revela sobre o autor de Tubarão. “Nunca houve um filme biográfico sobre ele em que ele tenha participado”, diz ao Ípsilon por telefone, na primeira entrevista desde a estreia do documentário nos EUA. “Ele nunca falou a nenhum biógrafo; ele nunca fez uma edição comentada dos seus filmes em DVD, nunca”.
Susan Lacy fez 15 entrevistas com Spielberg ao longo de dois anos, cerca de 30 horas de conversa. No total, foram mais de cem entrevistas para um documentário que, além de ser um whodunnit caloroso do melhor de Spielberg, é uma teia temática que casa a sua biografia e os seus filmes. Estreado em Outubro nos EUA na HBO e agora com estreia marcada para dia 12 no canal TVCine 2, as suas jóias são, além da rara participação confessional do cineasta de 70 anos, as imagens de bastidores. Da sua vida e, claro, dos seus filmes. Ou não fossem eles, especialmente nas primeiras décadas da sua carreira, quase a mesma coisa.
Em Spielberg, o mais apaixonante é então ver o realizador no seu habitat natural, as filmagens. A fazer Drew Barrymore chorar em E.T. ou a endurecer e a reencontrar-se em Auschwitz - como judeu e como realizador, ele que nunca tinha defendido a câmara ao ombro e de repente lá estava com ela sobre “terreno sagrado”. Ou nos filmes caseiros do jovem Steven e suas irmãs, do pai e da mãe Leah, a pianista que dança – era “um Peter Pan”, descreve o realizador de Hook. Foram cedidos os filmes de guerra feitos quando aluno de liceu e os home movies do bilhar e pizzas com Francis Ford Coppola e Brian De Palma, eles na cozinha de Martin Scorsese, no fundo o backstage dos Easy Riders, Raging Bulls em que Spielberg é o rosto risonho a ver um comboio de brincar a rodar.
São vislumbres para as cozinhas de madeira e fórmica, doses de grão nostálgico entrecortadas com os miúdos de bicicleta rumo a aventuras que se tornaram sinónimo de Spielberg. “As crianças são heróicas” nos seus filmes, como destaca a certa altura o crítico do New York Times A.O. Scott, um dos vários avaliadores para o documentário. A crítica existe no filme de Lacy, premiadíssima realizadora da série documental American Masters (28 Emmys) da estação pública PBS, mas o documentário não é crítico. É sobretudo focado no sucesso de Steven Spielberg embora, garante a autora ao telefone a partir de Nova Iorque, tenha fugido à eloquência treinada do realizador ao falar sobre o seu próprio trabalho. “Queria mesmo mostrar o Steven que se abre de uma forma não-soundbyte.”
Steven Spielberg era uma criança sonhadora que ouvia bandas-sonoras de filmes e era alvo dos bullies. Quando, adolescente, viu a perfeição de Lawrence da Arábia (1962) quase desistiu de ser realizador. Mais tarde, verteria directamente os seus traumas e histórias para o seu cinema. “Evitei a terapia porque os filmes são a minha terapia”, diz a certa altura no documentário. “Quando podia dizer ‘acção’ e ‘corta’, podia ter controlo sobre a minha vida.”
A famosa crítica do New York Times Pauline Kael escreveu sobre Asfalto Quente (1974), a estreia de Steven Spielberg no cinema, que ele era um “entertainer nato” mas, avisava, comparando-o com Martin Scorsese: “Não há sinal da emergência de um novo artista no cinema”. Em Spielberg, Steven dá-lhe razão: “Ainda não tinha crescido através dos filmes. Isso ainda estava para vir”.
Antes fizera séries de TV ou Um Assassino Pelas Costas (Duel, 1971), um telefilme em que um camião acelera numa perseguição diabólica sobre um carro. “É a minha vida no recreio”, associa Spielberg. A árvore fantasmagórica à janela de Heather em Poltergeist (1982), de que é co-argumentista, era a árvore que lhe dava pesadelos na casa da família em Phoenix. Vários dos seus filmes são sobre famílias que se dissolvem e pais ausentes. Ou sobre o processar do divórcio dos pais quando tinha 18 anos – “Cry baby! Cry baby! Cry baby!”, grita o menino de Encontros Imediatos ao pai choroso interpretado por Richard Dreyfuss. Foi o que Steven Spielberg gritou ao pai, Arnold, quando o informático chorou à mesa por causa do divórcio.
E depois, houve Tubarão (1975). “Ilustra como desde tão cedo, aos 24 anos, ele acreditava em si e confiava nos seus instintos”, diz Susan Lacy sobre a história que ocupa grande parte da primeira parcela do seu filme. Nada sabia sobre filmar no mar, o tubarão saía da água quando não devia, o desespero crescia. “Pensou que ia ser despedido e não sabia mesmo que ia ser um enorme êxito”, mas mesmo assim, frisa a realizadora, persistiu. Usou a música de John Williams ao serviço do suspense, pôs uns barris amarelos na história do medo. “Isso diz muito sobre a sua relutância em chegar a um meio-termo e [a insistência em] fincar a sua visão.” Inventou os blockbusters e, tal como o amigo George Lucas faria dois anos depois com Star Wars, foi ver da janela de um táxi as filas que davam a volta a quarteirões para entrar no seu filme. “Tubarão deu-me carta branca para o meu futuro.”
Um realizador emocional
George Lucas, admite o próprio em Spielberg, achava o seu futuro amigo “demasiado Hollywood” no início da década de 1970. Os filmes que grande parte do mundo viu, cinéfilos e espectadores casuais, provariam que sim, e que não. “Não há uma trajectória de carreira no cinema como esta na história do cinema”, contextualiza a certa altura a crítica do New York Times Janet Maslin. Ou, como diria em 2004 Peter Biskind, o historiador de cinema que escreveu em 1998 Easy Riders, Raging Bulls: How the Sex-Drug-and Rock ‘N Roll Generation Saved Hollywood (cuja veracidade das histórias que conta sobre Spielberg o realizador contestaria depois), “é um realizador interessante, embora um pouco esquizofrénico”. É o realizador de Amistad (1997), Terminal de Aeroporto (2004) ou O Resgate do Soldado Ryan (1998). De Hook (1991), de Sempre (1989) e de Munique (2005). De A.I. Inteligência Artificial (2001), Relatório Minoritário (2002) e A Guerra dos Mundos (2005), de Lincoln (2012) ou O Amigo Gigante (2016). De Os Salteadores da Arca Perdida (1983) e de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008). Ou de Império do Sol (1987).
Ele “toca em coisas que são muito universais, os anseios da juventude, a história americana”, baliza Susan Lacy. Um fã da repetição - Spielberg vê religiosamente uma vez por ano Lawrence da Arábia, como muitos dos seus fãs revêem infinitamente os seus filmes mais pop -, consegue a intemporalidade, 40 ou 50 anos depois, mesmo na era do bingewatch e do acesso total. “As pessoas [hoje] sentem o que sentiram pela primeira vez ao ver E.T.”, defende a realizadora. “Encontros Imediatos é tão espectacular à 80.ª vez que o vemos como da primeira, é um filme notável. Penso que ele estabelece uma ligação emocional com o público, compreende de forma instintiva ao que o público reagirá de forma emotiva. Porque ele reage. Ele é um realizador emocional, e isso é denegrido como sentimentalismo por algumas pessoas. Tal como diz Tom Stoppard, é algo de que ele precisa. É parte de quem ele é.”
Stoppard escreveu Império do Sol, um rapaz perdido dos pais no Japão na II Guerra. Para o dramaturgo, “é o fim da inocência da criança Spielberg”. Mas, no documentário, Stoppard lamenta também que o filme tenha sido contaminado pelas emoções, ensopado numa “suavidade desnecessária”.
“Acho que ele [Spielberg] ficou um pouco magoado ao descobrir que Tom Stoppard achava que ele se tinha tornado demasiado sentimental em Império do Sol” comenta agora Susan Lacy. “Isso surpreendeu-o. Ele não sabia isso.”
Já sobre A Cor Púrpura (1985), o filme que Spielberg fez após dois Indiana Jones, um Tubarão e um E.T., talvez um filme que quis fazer para se afirmar, o crítico David Edelstein diz no documentário que a sua paleta e composição têm “algo tão falso, tão storyboard da Disney”. É algo que faz lembrar as críticas de Biskind sobre como Lucas e Spielberg “infantilizaram os públicos” com o seu cinema. Spielberg junta-se inesperadamente ao coro de críticas, conformado e sorridente, quanto à sua falhada representação de uma das facetas do romance de Alice Walker - um beijo lésbico mole, o silêncio quanto à exploração da sexualidade da personagem de Whoopi Goldberg. O realizador, que pedira apenas a Susan Lacy que as entrevistas fossem cronológicas, acaba por admitir on camera que, de facto não teve unhas para o tema nem para o filmar.
Lacy, experiente entrevistadora de músicos, cineastas e mestres em geral, avó cujos netos vêem E.T., tentou não ser esmagada pelo peso simbólico de Spielberg ao entrar nesta empreitada de mais de dois anos de trabalho. “Inconscientemente tentei não me focar nisso, porque senão teria ficado paralisada”, explica. “Houve confiança total. Ele não pediu para ver nada até ao filme ficou pronto. Tendo em conta a reputação dele, que é obcecado pelo controlo, chocou-me”, admite, repetindo ao longo da conversa como o maior desafio foi mesmo fazer uma história coerente e temática a partir da história do realizador de cerca de 30 filmes, que deu bastantes entrevistas à imprensa nas primeiras décadas de carreira (agora muito menos) e um punhado delas à televisão (alguns excertos curiosos dos anos 1970 e 80 temperam Spielberg). E que era um produto para televisão, “para um público internacional de potenciais milhões de pessoas”. Findas as entrevistas, “ele escreveu-me e disse-me que eu tinha um jeito que faria O.J. Simpson confessar os seus crimes”, ri-se.
São mais de 2h30 de filme, nas quais quis “seguir um amadurecimento artístico”. Para a realizadora, “havia uma viagem clara até A Lista de Schindler. Depois de A Lista de Schindler ele é um cineasta muito diferente. Ali há uma demarcação, e no [meu] filme também. Ele atingiu o pináculo, recebeu o Óscar, provou a si mesmo e ao mundo que é um realizador sério”, enumera, “e nunca deixa o seu interesse em coisas como Parque Jurássico”, do mesmo 1993 que Schindler. “Relacionar tematicamente o trabalho dele pós-Schindler com a sua história pessoal” foi mais complexo, admite. “Tive de deixar alguns filmes de fora.”
É por isso que alguns desses filmes deixados de parte, só vislumbrados em montagens ou rápidas menções, são também os seus filmes mais tardios, e/ou os menos felizes e mais criticados? “Inicialmente isto ia ser um programa para duas noites”, responde Susan Lacy quanto à natureza televisiva do documentário. “A primeira noite terminava com A Lista de Schindler” mas a HBO não sabia se o público voltaria na noite seguinte para ver mais. “Não acho que estivessem errados”, admite, mas também “não fazia ideia que isso tiraria uma hora ao filme”. Chegou a ter quatro horas de filme.
Mas defende: “Não estava a fazer uma masterclass”. “A minha própria equipa acha que passei demasiado tempo com Munique, mas não quero saber. Quero mostrar a sua coragem na escolha do tema. É, para mim, um filme notável e um exemplo espantoso de como é como artífice.” E adianta: “Quando cheguei ao final de A Lista de Schindler, disse pessoalmente: ‘não quero ouvir críticas sobre este filme neste momento’. Temos de confiar nos nossos instintos. [Já] tínhamos as críticas a A Cor Púrpura, a Império do Sol ou a 1941 - Ano Louco em Hollywood, e tirei-as”.
Um dos raros momentos em que se vê o rosto afável de Spielberg quase endurecer é quando é confrontado com a habitual dualidade arte vs. entretenimento por um jornalista televisivo. “Steven não quer fazer pequenos filmes pessoais. Ele quer fazer grandes filmes pessoais”, diz a certa altura o actor Bob Balaban. Este ano adiou alguns outros projectos, revela Susan Lacy, para estrear The Post, já premiado pelos críticos de Nova Iorque pelo seu retrato dos meandros das investigações jornalísticas do Washington Post sobre os Pentagon Papers e as actividades do governo americano durante a Guerra do Vietname.
Spielberg ainda viverá em parte assombrado por essa divisão artificial entre o sucesso comercial e os filmes intelectual e cinematograficamente mais sofisticados? “Acho que não. Ele tem 70 anos e é muito seguro de si mesmo” diz Lacy. “Acho que há uma parte dele que quererá sempre fazer um filme tipo Parque Jurássico porque ele adora a tecnologia, está sempre na ponta de lança.”
Cineasta presente
David Edelstein elogia Spielberg como autor de uma movimentação única da câmara. Extractor de emoções, “tem um óptimo instinto para o apelo para o público, porque ele é o seu próprio público. Não de forma consciente e, como diz Coppola, a sorte é que os instintos dele estão alinhados com os da maioria das pessoas. Acho que é a chave [para o seu sucesso], não é muito mais complicado do que isso”, defende Lacy.
Spielberg estava pronto há ano e meio. O realizador pop star é um optimista incurável, um apaixonado pela excitação de uma aventura. Os seus discípulos, como J.J. Abrams, elogiam-no assim no filme, que está cheio de Scorsese e De Palma e DiCaprio e Tom Hanks, e de Liam Neeson, Ralph Fiennes, Daniel Day-Lewis, Harrison Ford, Tom Cruise, Christian Bale ou Cate Blanchett. A produtora Kathleen Kennedy ou o ex-sócio David Geffen (na Dreamworks, a produtora que fundaram com Jeffrey Katzenberg) não permitem um vislumbre à sua actividade como produtor. É o realizador que está no centro.
Apesar da felicidade de muitos dos filmes que o mantêm popular na consciência colectiva, Spielberg enegrece à medida que se aproxima do fim, indo buscar alguma luz do fim da escravatura de Lincoln ou a mensagem de heroísmo agridoce de A Ponte dos Espiões (2015). O argumentista e dramaturgo Tony Kushner cita Tennessee Williams na sua famosa frase de que os artistas são como os canários nas minas de carvão, alertas vivos de perigos iminentes. Quais são, afinal, e crianças heróicas e judaísmo à parte, os temas de Spielberg after all these years? “Ele sempre foi fascinado pela Constituição”, começa Lacy, “observa e examina a democracia americana”. “Acho que nunca tinha percebido isso. Não examino as coisas assim, uma história chama-me e quero abordá-la. Você é que está a fazer estas ligações temáticas. Eu não quero pensar nisso dessa forma”, disse-lhe Spielberg.
Há a imigração, o terrorismo em Munique ou A Guerra dos Mundos no pós-11 de Setembro, e The Post “faz todo o sentido tendo em conta o que se passa neste país agora, com a luta por uma imprensa livre”, continua Lacy sobre o filme com Tom Hanks e Meryl Streep. “Ele tem um sexto sentido inquietante sobre o que se está a passar no mundo, é um cineasta muito presente e compreende a sua responsabilidade, sendo o realizador mais famoso e talvez o realizador mais influente vivo, que vem com isso. Mas pensa conscientemente nisso? Não. É parte dele. É muito instintivo.”
Entretanto, Susan Lacy já fez outro filme, sobre Jane Fonda, que no dia em que conversou com o Ípsilon tinha acabado de ser seleccionado para o próximo Festival de Sundance. Dois meses depois da estreia americana de Spielberg, continua a congratular-se com o facto de que aqueles que conhecem bem o realizador mais conhecido do mundo terem descoberto coisas que não sabiam no filme. Foi o caso de Hanks, ou dos filhos de Spielberg. “Ele não passa o tempo à mesa de jantar a falar do seu trabalho, como fazem muitos pais.”