À caça de Sophie Calle
Em Paris, a artista ocupa as salas de um museu para nos falar sobre a sua obsessão com a fotografia. Que é sempre o resultado de uma perseguição – como sucede na caça, ou no amor.
Consideremos com atenção uma das muitas dezenas de peças desta exposição, um veado empalhado colocado num dos salões principais, sobre o qual alguém dispôs, como se fosse um manto, um vestido de tule vermelho repleto de folhos. Uma tabela próxima conta-nos uma história complicada de um casamento que nunca chegou a ser fotografado, e de uma fotografia fictícia feita mais tarde desse casamento, mas desta feita sem o noivo, por razões que se prendem com o acaso.
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Consideremos com atenção uma das muitas dezenas de peças desta exposição, um veado empalhado colocado num dos salões principais, sobre o qual alguém dispôs, como se fosse um manto, um vestido de tule vermelho repleto de folhos. Uma tabela próxima conta-nos uma história complicada de um casamento que nunca chegou a ser fotografado, e de uma fotografia fictícia feita mais tarde desse casamento, mas desta feita sem o noivo, por razões que se prendem com o acaso.
Este é um dos momentos visualmente mais espectaculares da exposição que Sophie Calle inaugurou em Paris, que decorre até 11 de Fevereiro no Musée de la Chasse et de la Nature. No Marais, o museu ocupa os palacetes Guénégaud e Mongelas, o primeiro com arquitectura de Mansart (o arquitecto mais importante do reinado de Luís XIV, e o autor do Palácio de Versalhes), do século XVII; o segundo é do século seguinte. É um museu privado, situado naquela que foi uma residência repleta de colecções, e que hoje expõe um acervo conotado, como o seu nome o indica, com a actividade da caça. Armas, animais empalhados, pinturas, esculturas, tapeçarias e objectos de arte preenchem a sucessão de salas e recantos que recordam outros tempos e, mais importante, que se inserem num gosto bem francês que praticamente até ao século XX deu cartas em todo o ocidente. Há alguns outros museus assim em Paris, como o Jacquemart-André e o Camondo. Mas não há nenhum neste grupo que se tenha sabido renovar e abrir à contemporaneidade como aqui acontece.
Beau doublé, monsieur le Marquis!, o nome da exposição de Sophie Calle (uma tradução muito aproximada dar-nos-ia um “Belo tiro duplo, senhor marquês!”), partiu de um desafio da instituição à fotógrafa francesa, que por sua vez convidou a escultora Serena Carone para dar forma tridimensional a alguns objectos saídos das narrativas de Calle. Sophie Calle desenvolve, já praticamente há quatro décadas, uma obra complexa e intrigante onde a narrativa verbal se associa à imagem fotográfica, ambas funcionando alternadamente como motor uma da outra. A junção destas duas formas de expressão à terceira, dada aqui pela materialização dos objectos, é a grande força da antológica que se apresenta no museu. De facto, Calle não apresenta apenas peças inéditas, mas está continuamente a estabelecer movimentos implícitos de recuo e avanço relativamente a um passado real ou imaginário, num trabalho quase terapêutico atravessado pela revelação de memórias e traumas. Em 2003, teve uma grande retrospectiva no Centro Pompidou, não muito longe deste museu, sendo esta a maior exposição individual que realizou desde então. Ainda antes disso, em 1996, expôs L’Erouv na Sinagoga do Porto, integrada numas Jornadas de Arte Contemporânea, naquela que foi a sua única exposição individual no nosso país.
Neste trabalho contínuo de manter a memória, de falá-la ou escrevê-la e torná-la presente no momento actual, Sophie Calle adopta com frequência a atitude do caçador. Numa das últimas salas da exposição mostram-se trabalhos de duas séries já antigas. Numa delas, Suite Vénitienne, de 1980, a artista seguiu um desconhecido pelas ruelas de Veneza, documentando exaustivamente essa perseguição. Noutro, Le Chasseur Français, de 2017, realizou uma recolha de pequenos anúncios de procura de relações amorosas, destacando através da escrita as palavras ou expressões comuns a todos eles – esta será uma das raras séries em que não utiliza a fotografia, mas apenas a palavra. Noutros locais, como na grande sala que nos introduz no edifício, conjuga todas as disciplinas artísticas para tratar aquele que é, no fundo, o grande tema do museu: a morte.
De facto, é aqui que encontramos algumas das peças mais fortes de toda a exposição, quase todas datadas também do ano em curso. Esta começa logo com uma fotografia daquilo que parece um fantasma, mas que se revela, afinal, ser o urso polar empalhado do museu – uma das peças mais conhecidas da instituição – tapado por um lençol. Ao lado, todos os possíveis significados e interpretações, por escrito, daquilo que estamos a ver: um fantasma, é certo, mas também uma noiva, uma mortalha, uma brincadeira, e a própria verdade, ou seja, o urso tapado. Tudo e o seu contrário parecem aqui ser possíveis, numa leitura que vai buscar, por exemplo, ao surrealismo de um Magritte a revelação do poder das imagens e da arbitrariedade dos discursos que as qualificam.
Na mesma sala, há três instalações que nos aproximam dessa temática macabra que é uma constante em todo o museu. Em primeiro lugar a homenagem ao pai, falecido recentemente, depois ao gato, fotografado dentro e fora de um pequeno caixão, e finalmente um grande cenotáfio onde um manequim de rosto tapado por véus parece chorar o sopro vital perdido. Esta figura, que representa a própria Sophie Calle, está rodeada por animais empalhados que pertencem à colecção pessoal da artista, além de outros de que se apropriou para este monumento. Pássaros, uma rã, uma zebra, um tigre, um pavão, e sobretudo uma grande cabeça de girafa compõem este estranho monumento funerário onde cada animal é investido de uma qualidade totémica para cada um dos amigos ou da família da fotógrafa. É-nos dito, por exemplo, que os olhos da girafa possuem a doçura dos olhos da mãe. E, mesmo não estando nós aqui neste caso perante nenhuma fotografia, a presença do texto é suficiente para desencadear o imaginário interior de cada visitante.
Mais adiante vão aparecendo outros objectos, por vezes dispostos de tal maneira nos cenários aristocratas reconstruídos dentro do museu que é necessária atenção redobrada para os descobrir. Por exemplo, num recanto escuro está um bando de morcegos de porcelana pendurados no tecto. Na sala de armas, há uma série de 2014, Liberté Surveillée, que documenta a interacção de animais selvagens nocturnos com autómatos dipostos em locais pré-definidos. Há também aqui uma série de armas tridimensionais onde a boca do cano foi substituída por uma cabeça de animal. Mais longe, um busto feminino que chora verdadeiras lágrimas, uma pele de urso no chão, entre animais passíveis de serem caçados, de se tornarem troféus, de apoiarem a criação de uma história ficcionada. Ou não.
No último piso, a fechar a exposição, Sophie Calle mostra-nos um conjunto de fotografias de construções para a caça de espera. Os textos, neste caso, introduzem-nos numa colecção de expressões do discurso amoroso retiradas da actividade da caça, revelando-nos que, para a fotógrafa, a sedução amorosa passa também inevitavelmente por um processo de captura (de conquista…) onde todas as metáforas, inclusive de género, são possíveis e permitidas. Claro que a espera, a descoberta, a busca e finalmente a captura são também, não por acaso, os processos do fotógrafo, verdadeiro caçador de imagens. Tomás Maia, em O olho divino, um livro publicado recentemente, fala da história humana como estando irrevogavelmente condicionada pela nossa condição de caçadores, de sujeitos empenhados numa caça (de imagens) sem fim. Ora, é esta condição que Sophie Calle, com Serena Carrone, aqui revelam. E que nos convidam a nós, visitantes, a replicar na errância que fazemos pelas salas do museu, que possuem qualquer coisa de labiríntico.
Se a peça mais antiga aqui presente, a Suite Vénitienne, já tratava explicitamente desta temática, um filme assinado por esta artista em 1992, No sex last night, projectado em sessão única num dos primeiros dias da exposição, retomava-a, dando-lhe um cunho autobiográfico forte. Nele, Sophie Calle e o companheiro de então, que terminavam uma relação, filmaram a viagem por excelência, de costa a costa nos Estados Unidos, tendo por únicas confidentes a câmara de vídeo que cada um levou consigo. Viagem, auto-descoberta, e afinal a morte de uma relação afectiva, provavelmente o grande traço de união que atravessa todas as obras da exposição.