“Preciso de ajuda!”

Durante sete dias, uma jovem portuguesa entrou no lado mais negro da Web, num universo de chats, redes sociais e plataformas onde jovens como ela partilham angústias e revoltas sobre os seus comportamentos alimentares considerados “desviantes”

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Tenho um distúrbio alimentar e não sei dar conselhos para perder peso. Tens de aguentar a fome. Sinto-me mesmo bem, nem sequer tenho dores no estômago. O meu desejo de ser magra supera a necessidade de comida, por isso, mantenho-me ocupada e bebo chá e água” — esta foi uma das muitas mensagens que Kaylee Hodge recebeu ao longo da semana em que a acompanhámos. A jovem de 17 anos, residente em Boulder, no Colorado, apaixonada pelas artes performativas e com o desejo de emagrecer para poder ingressar na licenciatura em Teatro ou Dança numa das suas metrópoles de sonho, Nova Iorque ou Los Angeles, travou amizades por conveniência em comunidades online e conversou casualmente em redes sociais e chats, com rapazes e raparigas tão solitários como ela.

Boulder, a região montanhosa conhecida pela estância de esqui de Aspen, foi o ponto de partida para esta história. É a cidade norte-americana onde se regista uma maior incidência dos distúrbios alimentares, resultado da obsessão por um estilo de vida saudável, que acaba por se materializar em muito mais coisas do que andar de bicicleta e escalar ou comer produtos orgânicos sem glúten.

Foi no Sudoeste dos EUA que Kaylee, com 50kg e 1,70cm, criou uma conta na plataforma myproana para partilhar a sua angústia e pedir dicas aos “anas e mias” mais avançados — Ana e Mia poderiam ser alcunhas de duas raparigas, talvez de amigas de Kaylee, no entanto, tratam-se de abreviaturas de anorexia e bulimia.

Introduziu-se à comunidade myproana com um post intitulado “Preciso de ajuda!”. A comunidade autodescreve-se como: “Somos o fórum pro-ana [designação de quem é apologista da anorexia nervosa] mais famoso para discutir dietas, thinspiration, resultados e para partilhar conselhos em grupos de apoio.” A thinspiration a que se refere são raparigas e rapazes magros, uns mais conhecidos, como actrizes e actores ou modelos, outros anónimos, cuja imagem estimula o emagrecimento de quem se encontra no início da sua jornada de perda de peso. Naquele post, Kaylee revelava o peso, a altura, afirmava sentir que não pertencia a este “mundo estereotipado” porque as amigas tinham “cinturas finas, um espaço entre as coxas e namorados” e ela sentia-se totalmente inútil. Ainda explicou que os pais controlam as refeições que realiza, exceptuando quando se encontra na escola e que, quando não tem outra opção, toma laxantes para se ver livre da comida, porque “comer e não ver tudo a sair pela boca logo de seguida significa ser uma falhada”. No fim, a jovem pediu auxílio a todos os membros e, citamo-la, “não quero passar o meu último ano do liceu como uma baleia!”

A mensagem espalhou-se rapidamente e Uglyfrominsideout, uma adolescente de 15 anos, respondeu: “Não és nada gorda! Morreria para ter o teu peso e a tua altura. Pára de fazer dieta antes que te arrependas. Não és mesmo gorda! Cuida de ti!” De certo modo, Kaylee esperava receber comentários mais rudes, mas a menina cujo avatar é a personagem de um anime com uma cara deveras triste e (a sua assinatura nos posts contém o seu peso e um gif de uma rapariga a chorar), só conseguiu brindá-la — e devidamente — com compaixão. Já HiHeyHello deu-lhe as boas-vindas e pediu que visitasse o seu perfil do MyFitnessPal — aplicação que permite a contagem de calorias dos alimentos e a criação de um plano alimentar — para que perdesse peso de forma “mais ou menos saudável”.

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No Tumblr — plataforma de blogging para a publicação de texto, imagem, vídeo, citações, áudio e o chat entre membros —, começou por descobrir thindaisy, que revelou: “Tento comer menos, por volta das 1000 calorias por dia. Há pessoas aqui que só bebem água durante 24 horas e perdem imenso peso, mas nem sempre aguento a fome” (thindaisy é uma jovem de 20 anos, da Dinamarca, que tem 1,58cm e pesa 84 quilos).

A dieta alimentar, no sentido lato da expressão, deve ser adaptada às necessidades, à actividade física e à saúde de cada indivíduo. Contudo, 1000 calorias é o número que uma criança de dois anos consome. Uma pessoa só é considerada anoréctica se o seu Índice de Massa Corporal (IMC, a relação entre o peso e a altura) se encontrar abaixo dos 18,5, número correspondente ao patamar “Abaixo do peso normal”. Se avaliarmos os dados facultados por thindaisy, o seu IMC situa-se nos 33,6 — obesidade grau I.

Comportamentos desviantes

Mas será que os distúrbios alimentares ocorrem somente em pessoas vistas como magras pela sociedade? E existirão só a anorexia, a bulimia e pouco mais? Quando alguém não se insere nas características habituais de determinado distúrbio e os seus comportamentos são considerados “desviantes”, é incluído numa outra categoria onde cabem: a anorexia nervosa atípica (o peso não é baixo); a bulimia nervosa com menos ocorrência; a compulsão alimentar; o distúrbio do vómito (envolve vomitar sem a compulsão alimentar); a síndrome da compulsão alimentar nocturna (as pessoas consomem quantidades elevadas de comida somente ao fim do dia).

Pode dizer-se que palaceofana é uma destas pessoas cujos comportamentos não podem ser encarados como os habituais: partilha constantemente um gif de Cassie, personagem da série Skins, onde se lê: ”I didn’t eat for three days so I could be lovely” (estive três dias sem comer para poder ser linda, numa tradução literal) e revelou que passa semanas a água e frutas pouco calóricas para depois comer tudo aquilo que lhe apetece durante determinadas horas num dia que planeia com antecedência. Mais: dá conselhos às newbies, as recém-chegadas como Kaylee, parecendo não ter noção de que pode levar estas raparigas à morte, pois influencia-as fortemente desde o primeiro minuto (ver figura 2, acima).

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No Omegle — autodescrito como “uma forma fantástica para conhecer amigos; escolhemos aleatoriamente alguém e deixamos que fales com essa pessoa em privado” —, chat que Kaylee usou casualmente, surgiram as maiores surpresas. Utilizando as hashtags ana e mia, entrámos num mundo onde a revolta e a necessidade de partilhar objectivos, receios e até fetiches proliferam. Tommy, a primeira pessoa com quem falámos, apresentou-se como “um simples rapaz do Texas”. Alguns minutos depois, as suas intenções tornaram-se evidentes: “Olha, eu estou à procura de uma rapariga submissa, devota e obediente, mas que seja ana, não quero mias, isso enoja-me. Vou enviar-te o meu Kik e falamos lá, está bem?” Abandonou a conversa e deve ter ficado à espera que Kaylee ou, qualquer uma das outras inocentes com quem havia falado, lhe enviasse uma mensagem instantânea naquela aplicação cuja qualidade enfatizada é o facto de o anonimato ser sempre preservado: “Sem números de telefone, só precisas de um username!”

Passámos para Alex: com 22 anos, disse ser apaixonado por ossos: “Quais são os ossos que gostas mais de ver num rapaz? Os meus são bastante salientes, adoro-os! Sou viciado em clavículas e em braços estreitinhos!” Pouco tempo depois, já Alex dizia: “Não achas que faríamos um excelente casal? Imagina a inveja que os gordos sentiriam de nós!”

Não resistindo à tentação de explorar territórios ainda mais obscuros, Kaylee criou uma conta no Twitter, e o seu primeiro tweet foi: “#bluewhale #curatorfindme #i_am_whale dm me!”, ou seja, assumiu a vontade de terminar com a vida e, alguns minutos depois, tinha quatro seguidores e uma mensagem de bl3ndizzy_: “Também queres jogar? Eu não encontro um curador. Ajuda-me, envia-me uma mensagem privada!”

Inicialmente, bl3ndizzy_ mostrou-se reticente quanto a criar uma ligação com Kaylee, respondendo sempre: “Só quero falar com um curador!” (ver figura 3 na pág. da dir.).

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O termo “Baleia Azul” refere-se ao fenómeno das baleias encalhadas, supostamente suicidas. Este mamífero pode atingir as 177 toneladas e os 30m de comprimento, sendo considerado o maior animal do mundo, mas não é suicida (a causa apontada para o fim da sua vida é a poluição dos oceanos), o que torna esta analogia inválida. Entrar neste maldito jogo dos 50 passos da vida que conduzem à morte é tão fácil como criar uma conta numa rede social. Entre fotografias totalmente explícitas de baleias desenhadas em braços repletos de sangue, a nossa nova amiga disse: “Vamos ao Omegle, usamos a mesma hashtag e de certeza que encontraremos um curador!” Não sei se ela o encontrou, mas nós encontrámos. Nunca chegámos a saber o seu nome, a sua idade ou sequer a sua localização, mas abriu as cortinas desta realidade virtual que destrói vidas humanas reais.

Os “curadores” são as pessoas responsáveis por introduzirem os jogadores nos desafios da Baleia Azul, que incluem tarefas como furar as mãos com agulhas e acordar às 4h30 para ver filmes de terror. Diariamente, encarregam-se de enviar mensagens com o desafio do dia e asseguram-se, pedindo fotografias ou vídeos como prova, de que os desafios foram cumpridos. Os curadores dizem vezes sem conta que têm em sua posse todas as informações do jogador, como o local de residência, dados acerca da família e outras coisas.

“Hi. ASL”, rematou aquele que desejava arruinar a vida de Kaylee, querendo saber a idade, o género e o local onde vive a nossa entrevistada. Respondemos com dados fictícios e seguiram-se as questões que presumimos que sejam da praxe: “Estás interessada em jogar? Já jogaste alguma vez?” — esta pergunta não foi muito inteligente, na medida em que, se Kaylee tivesse jogado, teria acabado morta, porque desistir não é, de todo, fácil. Quando lhe perguntámos de onde era, respondeu secamente: “Não tens nada a ver com isso, essa não é a forma como as coisas funcionam.” Entre ordens como “terás sempre de responder ‘sim, senhor’”, o curador deu-nos acesso ao chat privado dos membros do jogo: “Há muitas formas de fazer isto”, afirmou (ver figura 4).

A partir da sala de chat, Kaylee foi encaminhada para a aplicação Kik; mais especificamente, para o grupo the whale challenge, onde falou com Fm Ella, que respondeu de modo duvidoso, tal como o curador com quem Kaylee conversara.

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Perspectiva médica

Para o médico António Sampaio, mestre em Neurociências e doutorado em Política Social, as mutilações e outros comportamentos considerados desviantes são, desde o princípio da humanidade, possíveis: “O homem tem uma série de coisas que não são úteis, por exemplo, um indivíduo pode andar com as mãos ao invés de o fazer com os pés. Faz parte dos adolescentes a descoberta dessas capacidades desviantes. Estes comportamentos autodestrutivos são incentivados por situações depressivas que requerem uma apologia da dor.” Diz este especialista que o importante é sentir as pessoas e não vigiar as suas atitudes online: “Temos de perceber se um determinado adolescente possui capacidade de ter comportamentos construtivos, isto é, que lhe dão vida ou se, pelo contrário, apresenta uma tonalidade obscura e triste. Não temos de vigiar as crianças, temos de as sentir, é isso que falta a muitos pais.”

E existe um perfil típico do automutilador? “Há o jovem derrotado pelo sistema, que sente que deve distinguir-se dos seus pares em alguma coisa, que tem de ser original. Há quem anseie tudo menos a insignificância, como refere a obra do psicólogo suíço Carlo Strenger, O Medo da Insignificância. Mas toda a gente quer um pouco de protagonismo e há pessoas que o alcançam através de marcas de cigarros na pele, por exemplo. E vencer o jogo da Baleia Azul significa chegar a um patamar a que a maioria não chega, até mesmo os indivíduos que entram no desafio. Portanto, completar as 50 tarefas do jogo, mesmo que signifique morrer, é ser diferente”, explica António Sampaio.

Aos pais, o médico deixa um alerta: ao se aperceberem de que o seu filho se corta, queima ou apresenta outra perturbação comportamental que envolva agressões directas, a solução é conversar com ele e fazer vê-lo que pode contar com alguém. “Mesmo que um adolescente não queira contar algumas coisas ao pai ou à mãe, o que é perfeitamente normal, tem de perceber que terá de falar com um especialista. Não deve ser obrigado, mas tem de ter a noção de que a psicoterapia e, em alguns casos, a medicação são as soluções para que a vida retome o seu curso normal.”

Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e investigadora da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, que coordena a parte portuguesa do estudo Health Behaviour in School-aged Children (HBSC), da Organização Mundial de Saúde (OMS), menciona a Internet como “uma enorme janela de oportunidades. O que é preciso é aprendermos a viver com ela e a não nos deixarmos reduzir pela mesma”. Relativamente às perturbações psicológicas desenvolvidas por abuso e dependência do mundo virtual, a psicóloga é directa: “As pessoas encontrariam muito provavelmente outros problemas psicológicos caso a Web não existisse. Cabe à sociedade civil, à família e à escola informar e desenvolver regras e competências de modo a ‘monitorizar/regular’ este uso em parâmetros agradáveis e úteis. E às políticas públicas legislar de modo a não permitir abusos em massa.”

O acesso facilitado à Internet não é “necessariamente negativo”, segundo esta especialista, pois “bastaria aliás imaginar em Portugal, em 2017, como seria a socialização e a escolarização de um(a) jovem que nunca tivesse visto um computador e nunca se tivesse ligado à Internet. O que é preciso é uma utilização regulada, do ponto de vista do tempo de uso, dos horários de uso e dos conteúdos”.

O jogo da Baleia Azul teve origem na Rússia e foi alvo de atenção mediática um pouco por todo o mundo em meados deste ano. Em Portugal, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, admitia em Maio que “todos os dias” eram sinalizados casos para investigação no âmbito do fenómeno da Baleia Azul, e que as autoridades judiciais se empenhavam em combater este tipo de criminalidade na Internet. Para Margarida Gaspar de Matos, “foi um jogo idiota, desinteressante e oportunista. Mas a questão do ciberbullying e a possibilidade de haver estes conteúdos e de haver jovens frágeis que ‘vão neles’, essa, continua e merece um olhar aprofundado e continuado”.

Segundo os relatórios HBSC, 50,3% dos inquiridos respondem que “nunca ou quase nunca acontece” sentiram uma tristeza insuportável, mas 49,6% responderam: “Acontece-me às vezes” e “ando assim quase sempre”, ou seja, os jovens dos 6.º, 8.º e 10.º anos dividem-se entre o bem-estar e o mal-estar psicológicos.

Para entendermos os motivos da tristeza destes jovens na sua plenitude, temos de analisar outros dados epidemiológicos disponíveis nos relatórios HBMSC de 2010 e 2014, entre eles, o da imagem corporal e o da autolesão. Se 49,1% dos inquiridos consideram ter um corpo ideal (maioritariamente os rapazes), 35,4% já se vêem como “gordos” (com incidência no género feminino). Os comportamentos autolesivos, estudados apenas desde 2010, têm vindo a aumentar, principalmente quando realizados “ocasionalmente”.

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Segundo dados dos relatórios HBMSC de 2010 e 2014, 49,1% dos inquiridos consideram ter um corpo ideal (maioritariamente os rapazes), 35,4% já se vêem como “gordos” (com incidência no género feminino) getty images

O psicólogo Paulo Machado, professor catedrático na Universidade do Minho, disponibilizou-nos um artigo que co-realizou com Sónia Gonçalves e Hans W. Hoek, intitulado DSM-5 Reduces the Proportion of EDNOS Cases: Evidence from Community Samples [DSM-5 é o manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais, editado pela Associação Americana de Psiquiatria e que possui critérios específicos de análise da prevalência dos distúrbios alimentares]. Nesse trabalho de 2012, foram combinados dois estudos: um onde foram entrevistadas 2028 alunas de 11 escolas secundárias portuguesas (com idades entre os 12 e os 23 anos); e um segundo, para conhecer os hábitos alimentares de 1020 estudantes universitárias (78% do Norte do país e 22% do Sul, com idades compreendidas entre os 18 e os 58 anos. A média de idades desta amostra eram 21,81 anos e os distúrbios alimentares foram detectados essencialmente nas jovens entre os 17,9 e os 20,23 anos).

Independentemente das categorias utilizadas para o diagnóstico de doenças do comportamento alimentar, o total de casos (somatório das alunas do ensino secundário e do universitário) foi de 118. Este número de casos tem em conta doenças mais conhecidas como a anorexia e a bulimia nervosas, mas também a BED (binge eating disorder), que se define por episódios de compulsão alimentar, ou as EDNOS (eating disorder not otherwise specified) — exemplos das últimas são mastigar a comida e cuspi-la ou vomitar após ingerir pequenas quantidades de comida mas manter um peso considerado normal.

Kaylee é fictícia e fui eu que me infiltrei durante sete dias no lado negro da Web, mas esta rapariga representa todas as pessoas depressivas e solitárias e, caso fosse real, poderia já não estar neste mundo. 

Maria Moreira Rato é aluna do 3.º ano da licenciatura em Jornalismo, na Escola Superior de Comunicação Social, Lisboa

Texto editado por Maria Paula Barreiros