Helder Pacheco: “A minha ligação ao Porto é feita de pequenas coisas, actos sublimes de felicidade”

Escreveu mais de 40 livros, quase todos sobre o Porto. É historiador, professor, cronista. Aos 80 anos,publicou mais um livro. Uma viagem no tempo, pelo Porto e pelo país, com reparos e elogios

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Helder Pacheco tem dezenas de livros publicados, quase todos sobre o Porto Manuel Roberto

A rua mudou de nome e quase tudo o resto mudou também. No número 98 da Rua do Correio — ou Conde de Vizela, como a modernidade a baptizou — instalou-se um strip club no rés-do-chão e o abandono no restante edifício. Há 80 anos, nasceu ali Helder Pacheco. “Isto é uma metáfora da evolução do Porto”, comenta num sorriso mesclado de paródia e tristeza: “Se a minha mãe e a minha avó vissem isto...”

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A rua mudou de nome e quase tudo o resto mudou também. No número 98 da Rua do Correio — ou Conde de Vizela, como a modernidade a baptizou — instalou-se um strip club no rés-do-chão e o abandono no restante edifício. Há 80 anos, nasceu ali Helder Pacheco. “Isto é uma metáfora da evolução do Porto”, comenta num sorriso mesclado de paródia e tristeza: “Se a minha mãe e a minha avó vissem isto...”

Helder Pacheco escreveu o primeiro livro sobre o Porto em 1984 — uma obra de capa azul que inaugurou a cidade como tema de livro e foi um marco para muita gente. É escritor, historiador e professor. Garante não ser saudosista, ainda que ouvi-lo seja quase sempre uma viagem nostálgica. Sabe que muito do que foi não voltará a ser. Mas prefere o Porto de hoje àquele onde tudo faltava. Abraça o progresso e o turismo. Mas teme a falta de memória. É pai e avô. Homem de hábitos, leitor compulsivo, amante de música e arte. Por uma única vez esteve perto de trocar o Porto por Lisboa. Nada tem contra a capital, entenda-se, mas contra o centralismo sim.

À boleia do lançamento de Porto: nos Dias do Meu Tempo (ed. Afrontamento), uma compilação de crónicas publicadas no Jornal de Notícias, subimos ao oitavo piso do seu prédio com vistas para o mar onde vive com Maria José, a mulher e companheira de todos os momentos. Serviu-se café, fez-se conversa longa antes e depois de ligar o gravador. Pelo meio, duas horas e meia de entrevista. A infância que o tornou amante do Porto, as lembranças pueris, política, religião e futebol. Os amigos que já não voltam e lhe levaram parte da alegria de viver. E os planos, que ainda são muitos. Agora, e depois de ter colocado um “coração biónico” com o qual se tem dado muito bem, teme apenas que o tempo não chegue para fazer tudo o que gostaria.

Marcámos esta entrevista para uma sexta-feira porque era o seu único dia livre durante a semana. Aos 80 anos, muitos esperariam que tivesse uma vida menos agitada. Mas acaba de lançar mais um livro. Ainda sabe quantos são?
São 44 ou 45. Também já lhes perdi a conta. [risos]

Essa vida calma não lhe faz falta?
Não, porque sigo o lema do meu amigo padre Almiro, que diz que vale mais a gente gastar-se do que enferrujar-se. Por outro lado, tenho muitas solicitações para escrever, participar em colóquios, fazer conferências. Dou aulas. Escrevo uma crónica semanal para o Jornal de Notícias. Tenho o compromisso com a cidade de a estudar e defender. A minha maneira de o fazer é escrever sobre ela. Isso é o desígnio da minha vida. É evidente que às vezes sinto-me muito cansado. Há dias em que chego a casa à noite, sento-me no sofá e adormeço. Mas sinto-me bem. Enquanto tiver resistência.

Vai continuar.
Vou continuar. Por outro lado, a ideia inefável de que um indivíduo se aposenta e não faz mais nada nem precisa porque a reforma dá para a sua auto-sustentação não corresponde à realidade. No período mais agudo da crise troikiana, tive de ajudar algumas pessoas próximas. Esta actividade é também uma forma de compensar aquilo que nos foi subtraído.

É professor, escritor, historiador. Como é que gosta mais de se ver?
Sempre gostei muito de ajudar as pessoas. Para um republicano, o bem comum é um valor absoluto. E ajudar os outros faz-se sobretudo pela acção docente. Pela defesa da qualificação das pessoas. Aparecem cá em casa muitos alunos de escolas secundárias e faculdades, E pessoas anónimas, que me pedem informações sobre o Porto. Penso que o Germano [Silva] deverá ter o mesmo problema: a quantidade de pessoas que nos pede informação. Estou sempre pronto para isso.

Nasceu a 31 de Janeiro de 1937 e nesse dia o seu avô Eduardo foi preso em plena Praça da Liberdade.
Isso é quase uma anedota. Porque o meu avô era um entranhado monárquico. O 31 de Janeiro era feriado até a ditadura acabar com isso e havia manifestações na Praça. De oposição à ditadura. O meu pai sempre disse que tinha ido para o futebol. Mas suspeito de que estivesse na manifestação e não o tenha dito para não exaltar os ânimos lá em casa, que já eram quase sempre quentes por questões políticas. O meu avô saiu a meio da tarde e foi para o café Suíço. Ia a atravessar a placa central da Praça, onde havia uma multidão, e viu vários indivíduos a bater forte e feio noutro que estava no chão. Ele era muito corajoso. Então, ao ver aquilo, chegou à beira deles e começou a bater-lhes e a dizer “seus grandes malandros, sete galfarros a bater num desgraçado”. Os tipos eram da PIDE. Foi dentro. Quando o meu pai chegou a casa e lhe contaram, ele foi vê-lo à PIDE. Ao entrar, viu nas escadas um letreiro que dizia “vir aqui pedir por um preso é duvidar do carácter desta polícia”. De maneira que ele voltou para trás [risos]. Depois, com a ajuda de um amigo que era do regime, lá convenceram a polícia de que tinha sido um engano.

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Dizia que essa gestão familiar não era fácil.
As discussões entre o meu pai e o meu avô agudizaram-se, sobretudo no fim da Guerra, em que havia a convicção de que o regime ia cair e que os Aliados vitoriosos não iriam consentir a continuidade de uma ditadura em Portugal. Foi uma ilusão idealista dos republicanos. Portanto, no fim da Guerra, houve uma discussão terrível lá em casa. Lembro-me perfeitamente. Foi à mesa, tenho a impressão de que a um domingo. Atingiu um nível quase de agressão física entre eles. A dada altura, o meu avô disse: “Estou a ver que estou a mais nesta casa.” Saiu e nunca mais voltou.

Apesar dessa desavença, não foi prejudicado por isso. Passava os sábados com o seu avô, os domingos com o seu pai.
O meu avô era superconservador e rígido, mas foi uma figura excepcional. Mandou dizer à minha mãe que gostava muito de sair comigo todas as semanas. Então, ia-me buscar e fazíamos passeios pelo Porto, de eléctrico sobretudo.

Quais foram os passeios que mais o marcaram?
Os da Foz. Íamos ao Chalet do Carneiro, a um pavilhão muito bonito que havia na Avenida Montevideu. Bebia mazagran e groselhas. E muitas vezes ia a Leixões, merendar ao Bem Arranjadinho, numa Leça que ainda era bonita. Comiam-se uns queques muito bons. E visitávamos os navios na doca de Leixões. Pelava-me para ir lá com o meu avô. Este ritual aconteceu durante alguns anos.

E com o seu pai?
Com o meu pai era diferente. Ele era muito pragmático e desportista. Jogou hóquei, râguebi, foi ciclista amador, remador e timoneiro. Esteve no Académico muitos anos a jogar hóquei em campo e no Fluvial até muito tarde. Quando morreu, quis ser sepultado com a bandeira do Fluvial. Íamos aos jogos de hóquei ao Palácio. Ver boxe, também no Palácio e no Parque das Camélias. A cidade era tão habitada que aquilo enchia. Lembro-me de ir ver basquetebol no campo do Porto, que era na Avenida dos Aliados. E futebol, na Constituição e depois no Estádio do Lima. Também íamos aos comícios. Foi-me deixando a semente de um certo republicanismo. O meu pai achava que os políticos deviam andar muito de eléctrico, para ouvir o povo. E que quando iniciavam a sua vida pública tinham de fazer uma declaração daquilo que tinham: quando saíssem poderiam ter um pouco menos, nunca mais. Pouco tempo antes de morrer, estava aqui em casa e, perante algo que se estava a passar na política portuguesa, teve esta frase, de um homem profundamente desiludido: “Não foi por isto que andámos a lutar e tudo isto me mete nojo.”

Num artigo que escreveu no Expresso em 1986, conta que na sua “passagem a homem, ao entrar na escola, tinha seis ou sete anos”, o seu avô o levou a conhecer Lisboa. Que primeira impressão lhe causou a capital?
Lisboa foi uma revelação. Era uma cidade encantadora. À escala humana. Fui fazer com o meu avô o circuito clássico: a Feira Popular, que não tínhamos no Porto, os Jerónimos, Estoril, Sintra. Era uma cidade amável, não de caixotes, tecnocratas ou bancos. Mais tarde, voltei lá com o meu pai e lembro-me de que, em relação ao Porto, a diferença era sobretudo a quantidade de automóveis em circulação. Já no pós-25 de Abril, parei muito em Lisboa quando estive no ministério [a dirigir projectos de investigação ligados ao património cultural] e a cidade já estava a desumanizar-se.

Foi também em miúdo, pelos oito anos, que se apaixonou pelo Futebol Clube do Porto. Foi a cidade que o fez ser portista ou ser portista que o fez amar mais a cidade?
Foi a cidade que me fez ser portista.

Não foi por influências familiares. Sei que não gosta muito de falar sobre isso.
Não gosto, não [risos]. Sobretudo de um homem tão sério e republicano. O meu pai era benfiquista, mesmo sendo um intransigente defensor da cidade. É a demonstração de que o mundo não é perfeito. Ele não era portuense, veio do Douro em miúdo. Fazia parte de um grupo de taineiros chamado Profiláticos, onde a maioria era benfiquista. Mas é engraçado: como o meu avô nunca teve um gesto de me influenciar politicamente para ser monárquico, também o meu pai nunca tentou que fosse benfiquista. Pelo contrário. Muitas vezes até me trazia informações do clube e da cidade. Foi um informador meu privilegiado. Tinha uma memória fabulosa e assistiu a muito do que aqui se passou nos anos 30, esteve no 3 de Fevereiro de 1927, a última revolução romântica do Porto.

Mas então o que é que o fez ser portista?
Se calhar, o Fernando Moreira. É uma fase de grande hegemonia do Porto no ciclismo e achava que eles eram uns verdadeiros heróis. Era um desporto muito popular. As pessoas deliravam com a Volta a Portugal. Na escola trauteávamos no recreio uma cantiga que era assim: “Fernando Jorge Moreira/ campeão nacional/ venceu pela vez primeira/ a Volta a Portugal.” Nessa altura havia as 24 horas à americana no estádio do Lima, em que se corria durante um dia inteiro. Levávamos lanche, dormíamos lá. Há também o Araújo, um famoso jogador do Porto, que estava no jogo em que o Arsenal veio cá e perdeu. Por outro lado, tinha muitos amigos que eram portistas. Isto enraizou-se. Na altura do 25 de Abril, estive menos ligado. A minha geração andava muito empenhada em tentar mudar o país. Com a democracia, infelizmente, o centralismo aumentou. E aí o sentimento deu lugar à convicção de que a cidade tinha de ter um clube que a ajudasse a afirmar-se. Intelectualizei muito a ideia de que a descentralização do país e a defesa dos interesses do Porto e da regionalização também passavam pelo Futebol Clube do Porto. Aliei uma visão política da importância de um clube na cidade com um sentimento...

Um sentimento inexplicável?
É pouco inexplicável. Tenho dificuldade em ver muitos jogos do Porto. Tenho sempre receio de que perca. Às vezes estou a ver e sinto-me muito inquieto, com as mãos frias, extremamente nervoso. Muitas vezes saio e não vejo.

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Ainda vai ao estádio?
Não tenho ido porque tive um problema de saúde e o estádio tem muitas escadas. É preciso andar muito para chegar ao sítio onde ficava.

Nos últimos anos em que ia ainda levava o seu livrinho de apontamentos?
Menos. Durante alguns anos fui ao futebol com um grande amigo, o Jorge de Melo, nas Antas. As Antas eram outra coisa. Havia um espírito de comunicação, êxtase, entusiasmo. Estávamos ali apertados, de pé. Esse meu amigo tinha a mania de ir para trás das balizas porque dizia que ali até sentia o cheiro do golo. Havia mais bocas nas Antas, mais asneiras, mais emoção. Até arranjei uma indumentária plástica, parecia que ia metido num preservativo. O Dragão é muito melhor. Mas é mais espectáculo. O futebol hoje é quase como quem está na ópera. Já tive vontade de ir para os Super Dragões. Aí tiraria muitas notas...

Continua a andar de caderninho e máquina fotográfica no dia-a-dia.
Continuo. E ando muito de autocarro. O meu pai tinha razão nisso: é nos transportes públicos que se conhecem as pessoas. Escrevo muito a partir do que ouço.

Falava há pouco de como passeava com o seu pai e avô. Foi aí que ganhou o gosto pela rua, pelas histórias?
O meu desejo de explorar a realidade veio do meu pai. Mas o amor pelo Porto veio da minha mãe. Ela era muito mais sentimentalmente portuense. Uma mulher de São Nicolau, muito comedida, com um amor profundo pelo Porto. Sem querer, ela incutiu-me muito mais o sentimento de pertença à cidade do que o meu pai. Sabia muitas canções de miúda, lembrava-se de peças de teatro que tinha interpretado na escola primária, tinha memórias do Natal, do Carnaval, das tradições. Ela era muito religiosa, mas não beata. Havia uma coisa muito interessante que tem a ver com a tolerância que me foi incutida. O meu pai, como republicano, era ateu. A minha mãe, muito católica. Recordo-me de o meu pai às vezes me dizer: “Esta semana não estou disponível porque tenho de levar a tua mãe a Fátima.” Ele levava-a e ficava à espera no carro com jornais.

E o professor, é católico?
Procuro manter um pensamento autónomo com dificuldade de adaptação aos dogmas religiosos. Por ADN materno e paterno, respeito escrupulosamente as opções dos outros. Durante anos, mantive um diálogo intenso sobre religião e fé com o doutor Leonardo Coimbra, religioso convicto, com quem trabalhei no Centro de Recuperação de Crianças Deficientes. Ia lá voluntariamente uma vez por semana. Criámos ateliers de expressão plástica e de escrita, oficinas de tapeçaria, tecelagem, carpintaria, música. E o jornal Fala Barato. Quem gostava muito desse jornal era o Manuel António Pina.

Começou os estudos nas Belas-Artes.
Havia uma certa tradição familiar nisso. Gostaria de ter sido pianista de jazz, tenho um excelente ouvido. Ainda hoje não posso trabalhar sem música. Sou muito melómano e muito jazzístico. Cresci a ouvir o Frank Sinatra e os grandes vultos da música americana. Tinha também algum jeito para o desenho. E para escrever. O meu primeiro artigo sobre o Porto foi escrito aos sete ou oito anos. Era assim: “Chega o viajante ao alto de Santo Ovídeo e vê a cascata que é o Porto.” Quando percebi que Belas-Artes não me completava, fui pelo caminho da educação, primeiro, e da história, depois. Hoje tenho dúvidas se fiz bem ou mal. A minha vida teria sido diferente. Provavelmente teria mais dinheiro, mas não me teria dedicado ao Porto.

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Foi no centro de Leonardo Coimbra que escreveu o seu primeiro estudo na área da educação — um trabalho que o conduziu à equipa de reforma educativa promovida pelo I Governo Provisório.
Era um programa de recuperação pedagógica de crianças com deficiência. Já tinha trabalhado com o ministério do professor Veiga Simão antes do 25 de Abril. Tinha estado ligado à formação de professores. Em 73 fui para um seminário na Irlanda do Norte. Eles defendiam que as escolas deviam poder administrar o seu currículo, além das orientações nacionais. Nessa altura, tive um convite para ir viver para Lisboa. Cheguei a arrendar uma casa em Linda-a-Velha. Na viagem de regresso, comecei a pensar naquilo. Já tinha começado a desfazer a casa no Porto. Então pensei: “O que é que vou fazer para Lisboa? Devo estar maluco!” A minha mulher vinha comigo e disse-lhe: “Já pensaste o que é mudarmo-nos para Lisboa?” Isto tem uma explicação lógica: o poder é apetecível. E quando se tem 30 anos agrada-nos. Cheguei a casa e a primeira coisa que fiz foi telefonar a esses colegas que me tinham convidado para lhes dizer para não contarem comigo.

Foi a única vez que esteve perto de se mudar para Lisboa.
Foi a única vez. O poder corrompe [risos].

Onde estava no 25 de Abril?
Em Lisboa, a fazer formação de professores. O ministério já estava a organizar novos programas que estavam na calha. Estava em casa de um colega, inspector do ensino, e ele veio chamar-me. “Está a haver uma revolução. O que fazemos?” Fomos para a Baixa ver. No dia 27 voltei ao Porto.

Em que espectro político estava na altura?
Pela influência do meu pai, estava sempre a desejar que acontecesse o que aconteceu. Discutíamos muito isso cá em casa. Mas não tinha nenhumas ligações. A minha perspectiva era de que o país tinha de ser mudado.

Como se define politicamente?
Sou um republicano laico que, com naturalidade, e talvez com o envelhecimento, se tem tornado cada vez mais rebelde e dificilmente compaginável com as estruturas políticas. Não tendo nada contra elas, excepto quando se sobrepõem tácticas e estratégias ao interesse do país. Há uma frase do Kennedy que define muito o meu estado de espírito: “Sou um idealista sem ilusões nenhumas.” A democracia é o melhor sistema. O país está melhor, não há dúvida, mas o que se passou recentemente com os incêndios faz-nos pensar e desilude-nos. De qualquer forma, continuo a trabalhar todos os dias para tentar mudar isto.

Vota sempre?
Sempre. Nunca me hei-de esquecer de que essa foi a nossa grande conquista. Sou um defensor acérrimo do Estado social. A política sem dimensão social não vale nada.

Porque é que nunca se envolveu activamente na política?
A partir de certa altura tornei-me muito independente. Sempre tive um grande sentido de justiça e independência. E a política partidária não dá espaço para isso. Aquilo que mais gosto de fazer é elogiar, tenho muita pena de não poder elogiar mais. Sempre acreditei na pedagogia do elogio. Mas também é preciso censurar asperamente aquilo que está mal. Não sei se a actividade política era compatível com isto. Sinto-me bem assim afastado.

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Como vê o actual momento da cidade?
Quando o Rui Moreira ganhou as últimas eleições, mandei-lhe um sms a dizer que ele tinha ganho, provavelmente, por uma frase que disse no último debate televisivo que fez. Dizia que preferia ver o Porto enfrentar os problemas do excesso do que enfrentar, como há dez anos, os problemas da miséria, da degradação urbanística. Não tem comparação o Porto actual com o de há dez ou 20 anos. A cidade mudou e em muitos aspectos para melhor. Quando se faz a crítica para o excesso, que o turismo está a roubar gente e casas, acho muita graça. Porque há 20 anos já denunciava as políticas da câmara para a habitação social, a expulsão de centenas de pessoas para a periferia ou para fora da cidade. A grande tragédia do Porto foi esvaziar-se e, em muitos aspectos, cair na inacção e na auto-implosão. Sempre defendi que a habitação social devia ser feita a partir do centro histórico e do centro da cidade. E não em Campanhã, em Lordelo ou Aldoar. Independentemente de se construir também nessas freguesias para novos residentes.

Que Porto gostaria de ter hoje?
Uma grande cidade de ciência, investigação e inovação no ramo universitário. O turismo é a única possibilidade que temos para criar emprego imediatamente. O Porto pode ser uma cidade altamente turística se souber conciliar cultura, ciência e tecnologia. E sobretudo uma visão social que respeite as pessoas. O que falta fazer? Repovoar. O grande desígnio é reabilitar, promovê-la internacionalmente, atrair moradores, impedir a continuação da sangria. A terciarização da Baixa foi uma tragédia. Acabaram com os cinemas, os cafés, o comércio.

Estamos a acordar tarde?
Estamos a acordar tarde para o que aconteceu há 30 ou 40 anos. Estamos a tempo de uma nova política para o comércio. Se não fosse essa miserável política chamada “troikização do país”, o Porto estava a aproximar-se de ser uma cidade de classe média. Não é possível voltar atrás: quem foi expulso foi expulso. Mas podemos atenuar os problemas.

O centralismo teve também influência naquilo que foi a evolução do Porto?
É um problema demasiado profundo para a nossa política, que é de curto prazo, do imediatismo. Teria sido possível fazer de outra maneira. Nunca me canso de falar do SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local, um projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril]. Mas o Porto não pode viver no passado. É preciso olhar para o futuro.

Não é nada saudosista, apesar de os seus textos serem muitas vezes nostálgicos.
Sou um falso saudosista. O passado passou. Não podemos concertá-lo. Mas o presente sim. Sou obcecado por viver o melhor presente possível. Mas no Porto foram cometidos muitos erros. Demasiados. A Avenida da Ponte [junto à Sé] é um cancro aberto no coração do Porto, no meu, no do meu pai. A Via de Cintura Interna, outro. Há freguesias, como Campanhã e Paranhos, que foram completamente cortadas. Mas ainda pode remediar-se. Vou fazer-lhe uma confidência: tenho grandes amigos em Lisboa. Uma coisa é o povo de Lisboa e aquilo que ele suporta também, outra é o Terreiro do Paço [símbolo histórico do poder político]. O povo de Lisboa merece-me o maior respeito, ainda que seja benfiquista [risos].

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Esta eterna batalha entre Norte e Sul continua a fazer sentido hoje em dia?
O Porto foi explorado e secundarizado durante muito tempo. Enquanto não for ressarcido dos seus direitos, faz sentido. O centralismo ataca e corrompe o país desde a monarquia. Atravessou parte de um regime liberal, a República, o Estado Novo. E continuou com a democracia. Não descentralizámos o país. Se me perguntar se prefiro a regionalização já ou uma honesta descentralização, prefiro a segunda. O país continua a ser ferozmente centralizado. Tivemos agora [com os incêndios] uma trágica experiência do que é a centralização. O que se passa com a desertificação do interior é uma vergonha nacional.

Diz que a cidade é como um grande amor: ama-se sem perder tempo a justificar o porquê. Gostaria que tentasse explicar.
Escrevi outra que é mais terra-a-terra e nada poética: gosto do Porto mesmo quando cheira mal e está poluído. Este amor não é assim tão inexplicável... Para a minha mãe, era. Tinha a cultura possível para uma pequena burguesa. O meu amor ao Porto é o amor da infância. O Raul Brandão dizia que aquilo que aprendemos de belo, grandioso e sublime acontece na infância. Depois não aprendemos nada que preste. E a minha infância é muito portuense e muito feliz. Sendo profundamente infeliz do ponto de vista físico, porque tive uma tuberculose entre os oito e os dez anos. Fiz sessões intensivas de raios ultravioletas no Hospital do Carmo. Isso atenuou as dores e fez-me um leitor compulsivo. Ficava horas no hospital e lia sob aquela luz etérea azulada. Depois fiz recuperação a nadar no Douro com o meu pai. Sou anterior à fisioterapia [risos].

Passado uns anos, aquilo que retemos é a felicidade. O nosso computador, chamado “memória”, é fantástico. Limpa o que nos magoa e deixa a recordação do que é bom. O que memorizei foi uma cidade cheia de coisas encantadoras. As relações de vizinhança, os amigos, as tradições do São João, o Natal, as Janeiras, as cascatas, as corridas de carros. É um sentimento de pertença a um território de gente. Um bairrismo.

O que é que lhe faz falta no Porto de hoje?
É não sentir a cidade habitada nos sítios que conheci com gente. Aquilo que mais me repugna e agride foi a expulsão de milhares de pessoas de sítios que conheci cheios de gente. Sinto falta desses portuenses. Não estrangeiros. Não tenho nada contra a vinda de estrangeiros. Aliás, no prefácio deste novo livro, digo que se fosse presidente da câmara punha um anúncio em jornais de todo o mundo a dizer “venham viver para o Porto”. Se isso trouxer 50 mil novos habitantes, tanto melhor. O idealismo é pensar que é possível recuperar o Porto, a falta de ilusões é saber que muitos amigos meus portuenses já não voltam à cidade. A minha mãe tinha um azulejo na entrada da porta que dizia “a minha casa é o meu mundo”. Para reabilitar a cidade, é preciso conquistar os jovens. E sinto falta de um comércio interessante nesses sítios que foram desabitados. Noutro dia inventei uma frase. Alguém me perguntava se havia excesso de turismo no Porto e eu disse: “O que há é falta de Porto, não excesso de turismo.” Porque vou à Lapa e não vejo turistas, vou a Campanhã e não vejo turistas, Ramalde igual. O turismo está concentrado. O que falta é mais cidade.

O que é que ainda lhe falta escrever?
Falta-me publicar dois grandes projectos e temo não ter tempo para o fazer. Um é o Carnaval no Porto. Tenho a investigação muito avançada, mas preciso de dois ou três anos para o terminar. Outro é o livro das pequenas festas, para lá do São João. Chegou a haver 100, agora haverá umas 15. Isto é a minha maneira de servir o Porto. O político português que mais admiro é o Sá da Bandeira. Quando morreu, exigiu que no epitáfio dele escrevessem: “Servindo o meu país, servi as minhas convicções, morro satisfeito, o país nada me deve.” Adapto isto ao Porto: servindo a minha cidade, servi as minhas convicções, a cidade nada me deve. Foi o Porto que fez com que pudesse ser feliz nesta vida. Gostava muito de conseguir escrever mais estes dois livros antes de me ir embora.

Pensa muito na morte?
Durante muito tempo não pensava nela. Andava sempre ocupado e contente com outras coisas. Agora começo a pensar porque muitos dos meus amigos estão-se a ir. Nos últimos anos, perdi alguns dos meus grandes amigos. O Miguel Veiga, o Jorge de Melo, o José Rodrigues, a Luísa Dacosta, o Emílio Peres, o Jaime Rebelo, o António Rebordão Navarro... Quando um tipo tem 30 ou 40 anos, não pensa nisso. É eterno. Agora sinto falta de tempo. Sinto muito tempo para trás e falta de tempo para a frente. É por isso que tenho uma certa pressa em fazer algumas coisas. Há um poema do Torga em que ele diz que a vida é feita de nadas. É uma sabedoria que só o envelhecimento nos traz. A sensação de que não são as coisas grandes que mudam a nossa vida. A minha ligação ao Porto é feita dessas pequenas coisas, actos sublimes de felicidade.

Por exemplo?
Por exemplo, a minha filha ter-me ligado há pouco a dizer que vem cá jantar com a minha neta. Ou ir ao cinema. Lembro-me perfeitamente da tarde em que, ainda miúdo, fui com o meu irmão ao Coliseu ver O Facho e Flecha, um filme de cowboys e índios. Ainda hoje me recordo de como me senti contente. Por causa deste sentimento, comecei a juntar imagens de pequenas coisas do Porto, fotografias minhas, que podem dar um livro. Mas eu ainda sou fiel aos diapositivos, tenho uns 10 mil, e escrevo à mão. É um problema técnico. Também me falta escrever o texto para esse livro. O problema disto é que pelo meio apetece-me fazer outras coisas. E como só faço o que gosto, penso que gosto de outra e deixo essa para trás. Já me convidaram para coisas e digo que não. Algumas porque não me interessam, outras por não serem sobre o Porto. Tinha de vir uma troika muito forte para me obrigar a fazer o que não quero. Inventei outra frase: “A minha ignorância está cada vez especializada, só escrevo sobre o Porto.”

Esta entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO