Trump farto de história(s)
Que o fogo se propague pelo Médio Oriente e que, dentro de meses, se contem provavelmente por milhares os palestinianos mortos, tudo isso é secundário. Estamos habituados.
“Os presidentes que me precederam fizeram [da mudança da embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém] uma das suas principais promessas eleitorais, e não a cumpriram. Hoje, eu estou a cumprir a minha.” É assim, com lógica puramente eleiçoeira, que Donald Trump justificou outro dos seus gestos incendiários em política externa. Esta era uma velha e repetida promessa eleitoral e uma decisão do Congresso que nenhum dos presidentes, desde 1995, tinha concretizado, e Trump, o conseguidor, deu o passo "corajoso" que ninguém tinha dado. “Vocês sabem que este é um governo único. Que toma medidas ousadas", terá dito Trump ao governo israelita (The Guardian, 8.12.2017). Que o fogo se propague pelo Médio Oriente e que, dentro de meses, se contem provavelmente por milhares os palestinianos mortos, tudo isso é secundário. Estamos habituados. E tanto melhor se, já agora, a decisão ajuda um aliado, Netanyahu, outro encenador de testosterona, a conseguir ser o primeiro dirigente israelita a dispor desta consagração do aliado americano e a desviar as atenções das acusações de corrupção que impendem sobre ele e vários membros do seu staff. Mais do que verificarmos o fracasso de negociações de paz israelo-palestinianas, o que vemos é não haver sequer processo algum desde há anos - não por responsabilidade das duas partes, como se gosta de salomonicamente dizer, mas porque Israel, tratado com toda a condescendência pelo Ocidente e pela Rússia, nem precisa de fingir querer negociação alguma.
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“Os presidentes que me precederam fizeram [da mudança da embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém] uma das suas principais promessas eleitorais, e não a cumpriram. Hoje, eu estou a cumprir a minha.” É assim, com lógica puramente eleiçoeira, que Donald Trump justificou outro dos seus gestos incendiários em política externa. Esta era uma velha e repetida promessa eleitoral e uma decisão do Congresso que nenhum dos presidentes, desde 1995, tinha concretizado, e Trump, o conseguidor, deu o passo "corajoso" que ninguém tinha dado. “Vocês sabem que este é um governo único. Que toma medidas ousadas", terá dito Trump ao governo israelita (The Guardian, 8.12.2017). Que o fogo se propague pelo Médio Oriente e que, dentro de meses, se contem provavelmente por milhares os palestinianos mortos, tudo isso é secundário. Estamos habituados. E tanto melhor se, já agora, a decisão ajuda um aliado, Netanyahu, outro encenador de testosterona, a conseguir ser o primeiro dirigente israelita a dispor desta consagração do aliado americano e a desviar as atenções das acusações de corrupção que impendem sobre ele e vários membros do seu staff. Mais do que verificarmos o fracasso de negociações de paz israelo-palestinianas, o que vemos é não haver sequer processo algum desde há anos - não por responsabilidade das duas partes, como se gosta de salomonicamente dizer, mas porque Israel, tratado com toda a condescendência pelo Ocidente e pela Rússia, nem precisa de fingir querer negociação alguma.
Duas parecem-me ser as motivações de Trump. Ambas decorrem de extraordinárias leituras históricas. A primeira de natureza religiosa, com objetivos políticos: agradar aos 81% de evangélicos norte-americanos que votaram Trump em 2016 e que acreditam que a sua decisão relativamente a Jerusalém ajudará ao desencadeamento da "Batalha do Armagedão", na qual "Cristo regressará à Terra e vencerá os inimigos de Deus", antes de mais os infiéis palestinianos que povoam a cidade há séculos. "Para alguns evangélicos", lembra a Diana Butler Bass, historiadora das religiões, "este será o clímax da história. E Trump está a conduzi-los até ele. Ao Juízo Final, à vitória certa." A quem parecer desolador que semelhante retórica religiosa possa ter peso na formação de opinião política de muita gente, Bass faz notar que "milhões de cristãos americanos acreditam nisto e nisto basearam a sua fé e a sua identidade.” (Haaretz, 8.12.2017) Os que estão ainda convencidos que o islamismo político é a fonte de todos os perigos, não se esqueça de acrescentar à lista os delírios políticos que se reclamam do cristianismo e do judaísmo.
Augúrios bíblicos destes podem parecer alheios a um empresário com a ética de predador sexual. Seguramente mais associável à sua mundivisão é aquela que me parece ser a segunda motivação: a da "adoção da política da vitória de Israel" como base, não mais implícita, mas absolutamente explícita, da posição dos EUA no Médio Oriente. Essa é a batalha há muito do lobista pró-israelita Daniel Pipes, cujo "objetivo é convencer Washington a deixar Israel vencer" e deixar os israelitas "decidir livremente como atingir este objetivo". Pipes sabe bem que "quebrar a vontade palestiniana de ir à luta não será nem fácil, nem agradável" - como, aliás, já se está a comprovar. Mas se ela não for "quebrada", a "única alternativa é o desaparecimento de Israel", retórica que há muito se tornou hegemónica entre os israelitas e que se traduz na determinação em não aceitar qualquer Estado palestiniano. Que lição tira Pipes da história? A de que "o compromisso e 'concessões dolorosas' não acabam conflitos; pelo contrário, a história mostra que tal só se consegue com a desistência de um dos lados" (Pipes, Israel National News, 14.5.2017).
De "lições" destas se fez a história do belicismo. De resto, e como o genro de Trump, Jared Kushner, foi apanhado há meses a dizer sobre a Palestina, "não queremos mais lições de história. Já lemos livros suficientes. É altura de perceber como resolver a situação” (The Guardian, 8.12.2017). Pois aí está. Cem anos depois do arranque da aventura sionista na Palestina, os outros que desistam dos seus direitos, da sua terra, da sua vida. E que Trump, armado em árbitro, julgue poder proclamar o vencedor.