A cultura amarantina dentro de um hotel
Pascoaes recebia aqui a correspondência e agora a sua sobrinha-bisneta reinventou-o. O Des Arts – Hostel & Suites sucede a um hotel emblemático de Amarante e ousou quebrar a tradição. O nome não engana: com quartos e camaratas, é uma espécie de híbrido que quer abraçar o espírito cultural da cidade — que é também o da família proprietária.
Depois de noite chuvosa, o dia amanhece a limpar-se: puxamos o blackout da porta-janela, saímos para a estreita varanda e lá está o Tâmega a libertar-se das brumas em que na noite anterior se tinha aninhado. Foi à noite o primeiro contacto no Des Arts – Hostel & Suites, aberto em Julho deste ano em Amarante. Subir as escadas antigas à espera de um rangido (também há elevador), deparar-nos com um corredor franqueado por altas portas duplas de madeira com bandeira em vidro é como entrar em casa dos avós; chegar ao quarto e encontrar um cartão-convite para um copo de vinho no bar é irresistível.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Depois de noite chuvosa, o dia amanhece a limpar-se: puxamos o blackout da porta-janela, saímos para a estreita varanda e lá está o Tâmega a libertar-se das brumas em que na noite anterior se tinha aninhado. Foi à noite o primeiro contacto no Des Arts – Hostel & Suites, aberto em Julho deste ano em Amarante. Subir as escadas antigas à espera de um rangido (também há elevador), deparar-nos com um corredor franqueado por altas portas duplas de madeira com bandeira em vidro é como entrar em casa dos avós; chegar ao quarto e encontrar um cartão-convite para um copo de vinho no bar é irresistível.
E, então, adia-se a cama para voltar a descer ao rés-do-chão. A música está amena, há duas mesas ocupadas e os sofás diante da lareira (ainda apagada) livres. É entre estes, de couro, antigos, um pouco coçados, e a esplanada, uma varanda-terraço com pérgula e escada em caracol que leva a outro terraço (a “desenhar” uma das violas amarantinas de Souza-Cardoso e com acesso do nosso quarto, descobriremos), que o tal copo de vinho se bebe.
Esta é uma casa de família, para um negócio de família que é a um tempo o resgate da história e do património da família. Francisca Fonseca recua até “aos avós da avô” (paterna) para falar da casa, onde estes terão começado “a alugar quartos”. Não há registos, diz, mas “em 1902 já era hotel” — Hotel Silva, o primeiro, e durante muito tempo o único, hotel da cidade, ponto de encontro de “muita gente conhecida”. Passando de geração em geração, transformou-se em Albergaria Dona Marguerita, entrou em declínio e fechou em 2007. “Sempre tive o sonho de fazer alguma coisa aqui, é um edifício espectacular e estava completamente apagado”, confessa Francisca. O sonho chegou através do pai, que comprou as restantes parcelas à família — ele queria voltar a fazer um hotel, ela embarcou nesse sonho. “Não tinha nada a ver com hotelaria, estava na produção de eventos.”
Na verdade, Francisca até estava no Brasil, onde ela e o marido haviam terminado a produção de mais uma edição do Rock in Rio. “Foi uma decisão muito rápida, era impossível dizer que não”, para “uma mudança muito forte”, concede Francisca, que nasceu em Lisboa e viveu em grandes cidades, como Londres e Rio de Janeiro. No primeiro ano, viveram na Casa de Pascoaes, com a avó dela — Francisca é sobrinha-bisneta de Teixeira de Pascoaes (lado materno). Na altura, ainda não havia o projecto do hotel, que acabou por se chamar Des Arts porque “há uma cultura enorme na cidade”. “Quanto mais informação procurávamos, mais esta sobressaía.” E, ainda antes das obras começarem, o hotel gritou ao que vinha: uma festa de 16 horas com música, fotografia, dança, design de hortas mandalas, permacultura e live painting. A arte, portanto.
O enorme quadro representando uma bailarina na parede da cozinha comunitária é herança dessa noite, foi pintado ao vivo. Este é um espaço de que ambos gostam muito e que reflecte o conceito abrangente deste hotel que não é apenas hotel (daí o hostel no nome) — as camaratas (nove, indo das duas às 10 camas) convivem com as suítes (15), tornando-o uma espécie de híbrido com um público diferenciado. As camaratas são para grupos e “também enchem muito com eventos desportivos” — “as pessoas vêm para corridas ou BTT e não têm tempo para usufruir do hotel, as camaratas são práticas”; as suítes são para casais e famílias (há-as familiares, com camas e beliches).
Na cozinha, todos se podem reunir, sendo que os pequenos-almoços são aí servidos: o espaço é gigante, e tem no seu coração uma comprida (e maciça) mesa de madeira, que convida à partilha. Há um recanto para crianças, os fornos são antigos com placa de indução; há plantas e a atmosfera é marcadamente vintage, como no resto do hotel. Não por capricho, por “filosofia. A sustentabilidade é importante para o casal, assim a aposta foi na reutilização — não se surpreenda se o seu espelho for uma antiga porta ou se reparar que as prateleiras do bar eram antigas tubagens do hotel. Mesmo o mobiliário foi recuperado das antigas encarnações do hotel (muitas vezes para novos fins) e o que foi comprado, uma minoria, é de segunda mão. A excepção são os beliches das camaratas, desenhados especificamente para aqui: podem ser recolhidos e fechados à chave, “todo um mundo”.
O “nosso mundo” é um quarto no primeiro piso. “Teixeira de Pascoaes”, mesmo diante do “Amadeo de Souza-Cardoso” — todos têm nome de “artistas amarantinos ou que têm história em Amarante”. O próprio edifício terá muitas histórias para contar, mas o que se sabe ao certo é que, por exemplo, Teixeira de Pascoaes recebia a correspondência aqui. O escritor Alexandre Pinheiro Torres, “também da família”, poderá ter nascido cá. Mário de Cesariny por aqui terá passado, já que “praticamente viveu na Casa de Pascoaes”, era fã deste, conheceu o avô de Francisca e ficaram muito amigos — “tenho muitas memórias dele, era encantador”. Souza-Cardoso tê-lo-á frequentado, e o jardim desenha um dos seus quadros — quando as flores estiverem abertas apreciar-se-á o colorido, por agora distingue-se a geometria. As suítes espalham-se do rés-do-chão até à mansarda (onde os corredores exibem fotografias da autoria da mãe de Francisca) e são todas diferentes (algumas não têm, por exemplo, separação da casa de banho, o que não agrada a muitos hóspedes e será alterado), excepto nas mesas-de-cabeceira: livros para as “de” escritores, paletas para as “de” pintores.
De volta ao bar, novo olhar sobre a parede de fotografias, junto a uma das estantes. Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís (outra ilustre amarantina) e Eugénio de Andrade, Mário de Cesariny a abraçar os avós de Francisca, uma capa da Portugal Futurista, textos manuscritos (incluindo uma carta de Souza-Cardoso “ao querido amigo” Pascoaes). Este é o “ponto de encontro da comunidade local e dos hóspedes”. E o espaço “mais para cidade” (pelo menos enquanto não chega o restaurante e os eventos culturais), onde já nasceu Francisco, o filho do casal, e em breve nascerá a filha. “Também queríamos fazer algo para Amarante.”