Há palavras afiadas na voz doce de Elida Almeida

Ao segundo álbum, Kebrada, Elida Almeida confirma o lugar cada vez mais único que ocupa na música cabo-verdiana. Um lugar em que, sem apear a tradição, se permite a ousadia de inventar uma nova abordagem aos géneros locais.

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N'Krumah Lawson Daku

No embalo adocicado da música cabo-verdiana, por entre as frestas do crioulo, o público foi-se habituando a ouvir cantar a saudade, o amor, a beleza magnética das ilhas, o apego a uma terra cujo charme é algo que se entranha em cada visitante e pouco tem de subtil. Mesmo quando eram as paisagens a ser cantadas ou a falta de sentir aqueles cheiros e aquele chão debaixo dos pés, a imigração era um tema que se diria quase sempre fantasma, implícito nas palavras de um povo cuja diáspora, é bem sabido, supera em muito a população oficial do país. Claro que as agruras da vida quotidiana nunca foram estranhas às mornas, às coladeiras e aos funanás, mas é impossível não detectar na postura de alguém como Elida Almeida uma voz mais implicada e afiada, alguém que deixa escorregar da língua não apenas as palavras amorosas e de homenagem às gentes e aos horizontes de Cabo Verde, mas também pedaços de uma crítica social pouco confortável com aquilo que os olhos vêem e os ouvidos escutam do lado menos luminoso daquele território ao largo do Senegal.

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No embalo adocicado da música cabo-verdiana, por entre as frestas do crioulo, o público foi-se habituando a ouvir cantar a saudade, o amor, a beleza magnética das ilhas, o apego a uma terra cujo charme é algo que se entranha em cada visitante e pouco tem de subtil. Mesmo quando eram as paisagens a ser cantadas ou a falta de sentir aqueles cheiros e aquele chão debaixo dos pés, a imigração era um tema que se diria quase sempre fantasma, implícito nas palavras de um povo cuja diáspora, é bem sabido, supera em muito a população oficial do país. Claro que as agruras da vida quotidiana nunca foram estranhas às mornas, às coladeiras e aos funanás, mas é impossível não detectar na postura de alguém como Elida Almeida uma voz mais implicada e afiada, alguém que deixa escorregar da língua não apenas as palavras amorosas e de homenagem às gentes e aos horizontes de Cabo Verde, mas também pedaços de uma crítica social pouco confortável com aquilo que os olhos vêem e os ouvidos escutam do lado menos luminoso daquele território ao largo do Senegal.

É uma questão de reacção epidérmica, tão instintiva e impossível de controlar que só no momento em que o novo disco, Kebrada, já estava misturado é que Elida Almeida confessa ter percebido que a insistência em que “deve haver sempre uma mensagem por detrás de uma boa melodia” não tinha ficado por uma enunciação de boas intenções. “Ter mensagens boas, reflexões e denúncias” é algo que sabe poder lançar-se quase disfarçado na volta de uma ginga em que só o corpo parece estar a ouvir mas em que, acredita, os versos vão fazendo o seu trabalho subterrâneo até começarem a construir sentidos muito para lá do momento. Em Kebrada, Elida canta sobre a violência física e psicológica sobre as mulheres cabo-verdianas, a imigração, as mortes e as famílias destroçadas por confrontos entre gangues rivais ou histórias de viagens de difícil regresso à dependência de drogas.

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N'Krumah Lawson Daku

Parece, por isso, um novo capítulo na música da cantora que, em Ora Doci, Ora Margos (2014), o disco de estreia, tinha os versos virados para dentro. Mas quando narrava a sua própria biografia, de miúda nascida e criada num meio rural, crescida depois a cantar nos bares, restaurantes e hotéis locais, feita mãe quando ainda nem largara a adolescência e numa árdua luta para conseguir afirmar-se e fazer vingar uma paixão pela música que a ajudava a galgar contrariedades, Elida cantava também, naturalmente, Cabo Verde. Daí que, sem o selo autobiográfico do álbum anterior, Kebrada não deixe de ser um disco pessoal. “Pode não ter acontecido comigo, mas aconteceu com Cabo Verde”, diz ao Ípsilon. “E o que acontece com Cabo Verde considero que é pessoal.”

Kebrada pode ser entendido como um reverso da nostalgia que alimenta muito do reportório clássico cabo-verdiano. Mas não o é enquanto programa. É assim porque Elida Almeida não consegue enfiar a cabeça no passado para evitar bater com os olhos no presente. Nem sequer passa por desenterrar temáticas longe da vista, mas sim de não desviar a cara quando, por exemplo, canta em Forti dor a história de “uma mãe que perdeu o filho nas guerras de grupos rivais”. “Essa música tem de chegar a quem de direito”, justifica. “Ou seja, o Estado, num sentido geral, para ver que isto está a acontecer todos os dias debaixo do nosso nariz. Estamos a perder uma camada juvenil, dos 15 aos 20 anos, por causa deste flagelo social – perdemos ou porque morrem ou porque vão para a cadeia.”

Elida não quer, no entanto, que a sua canção seja entendida apenas como apelo à acção governativa e à tomada de medidas legislativas. Não fecha o tema em exigências de respostas de gabinete e aponta para dentro de cada casa. “É também uma chamada de atenção para os pais – por mais que os cabo-verdianos não tenham tempo para cuidar do filho, para estar em casa e ajudar na educação, a fazer deveres, porque temos uma vida muito dura. Temos de inventar tempo para falar com os nossos filhos, ouvir o que lhes aconteceu na escola, perceber por que estão tristes ou zangados, se mudaram de comportamento e porquê, o que é que consumiram que não tinham consumido antes, quem é deu aquele ténis novo com que eles apareceram.” E daí, da identificação do problema, é um pulo até a cantora estender a reflexão até às condições de sobrevivência dos pais, “que não só não têm tempo como estão apenas à procura do pão para pôr na mesa”, mas também à desigualdade dos papéis de género dentro dos lares – “em Cabo Verde, na maioria dos casos a mãe é mãe e pai”. Para os jovens a quem possa também chegar, Elida acrescenta o conselho de não ceder a uma vida de crime e de violência em troca de um acréscimo de popularidade e de auto-estima.

Esses recados internos aparecem ainda na belíssima canção que finaliza o álbum, Nta fasi kusa, que reflecte sobre o regresso a casa dos cabo-verdianos emigrados. Elida quer evitar os julgamentos fáceis de quem aponta o dedo àqueles que passam anos sem ter um fim-de-semana de descanso a trabalhar em Portugal ou em França, àqueles que acumulam part-times, que se levantam às cinco da manhã e regressam às dez da noite ao cubículo onde vivem, e que chegados a Cabo Verde depois de anos de ausência, a amealhar o que podem e a sonhar com a terra, “gastam o dinheiro, vivem dia e noite, não dormem, bebem o tempo todo”. Como se passassem anos a tentar conquistar o direito a viver e depois o gastassem de uma assentada.

Mais África

Kebrada é a confirmação de um lugar muito particular que Elida Almeida tem vindo a construir na música cabo-verdiana. Se Ora Doci, Ora Margos já era claro na forma como a cantora não precisa de apear a tradição para injectar uma nova verve em funanás, mornas e batuques, em Kebrada essa linguagem surge muito mais acabada e personalizada. Em parte, porque Elida encontrou uma banda que lhe serve de sombra perfeita, não se limitando a um acompanhamento de marca branca que seria igual neste ou em qualquer outro contexto. Sob a direcção experiente de Hernâni Almeida, agrupam-se o piano versátil e de travo cubano de Diego Gomes, o baixo muito rendilhado de Nelly Cruz e a percussão vigorosa de Magik Santiago, numa relação construída durante três anos de estrada e que se sente na solidez sonora em que os instrumentos não se acumulam simplesmente por camadas, formando uma massa compacta, sob a produção de Djô da Silva.

A marca geracional que une sem esforço Elida Almeida à maioria da sua banda é óbvia em temas como Sapatinha (nha mininesa) ou Ki ta manda e mi, de uma clara filiação pop, com vestígios controlados do r&b norte-americano. Elida argumenta que se trata de uma característica própria de “uma geração completamente globalizada, atenta a tudo o que se passa através da Internet, uma geração ousada e que não tem medo dos considerados senhores da música”. “Não estamos preocupados com o que eles dizem ou não, se estragámos ou não, se estamos a fazer algo novo ou não. Estamos interessados em fazer com que a música de Cabo Verde esteja à altura de qualquer género de outros países africanos ou da América."

Tudo isto se vai naturalmente dispondo em volta de um tronco fundado nas músicas cabo-verdianas, mas em que a personalidade porosa de Elida Almeida vai deixando transparecer um interesse bastante mais vasto, de quem deu por si, graças à digressão na sequência do Prix Découvertes RFI, a descobrir-se muito mais ligada a África do que supunha. Nos últimos anos foi descobrindo a obra dentro dos nomes de Youssou N’Dour, Salif Keita, Boubacar Traoré, Oumou Sangaré ou Angélique Kidjo, ao mesmo tempo que investigava a pente fino a discografia da cantora franco-nigeriana Asa. “Mas mudo todo os dias”, ri-se. “Estou perdidamente apaixonada pelo último disco do Bruno Mars e pelo novo do John Legend. Mudar todos os dias acho que é a minha identidade.”

Uma identidade em que se atravessa também o violoncelo de Vincent Ségal, o acordeão de Regis Gizavo, em que o “friozinho na barriga de não conseguir corresponder às expectativas das pessoas depois do primeiro disco ter sido muito bem aceite” não boicotou o seu desejo de liberdade. E em que, tal como faz em Sapatinha, Elida vai sorvendo o mundo e trazendo-o para as canções da sua autoria, sem se desligar da aldeia longínqua na ilha de Santiago em que cresceu com a avó e onde há pouco tempo inauguraram a electricidade. Um lugar, chamado Kebrada, “em que nalguns dias não comemos peixe nem carne, vivemos com aquilo que temos, legumes e verduras”, e que parece explicar o porquê de, olhando à volta, tanto a entusiasmar e alimentar uma música ávida de visitar e inventar novas paisagens.