Jogar um novo jogo com as velhas regras é perder
Nesta semana vimos a Irlanda tirar um proveito decisivo da sua pertença ao projeto europeu. Não negando todos os defeitos que a UE tem, não nos esqueçamos de reconhecer as vantagens reais que ela também traz.
Qual foi o país mais poderoso da União Europeia nesta semana? Dica: não fomos nós. Mas também não foi a Alemanha, a França, a Itália, ou qualquer dos suspeitos do costume.
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Qual foi o país mais poderoso da União Europeia nesta semana? Dica: não fomos nós. Mas também não foi a Alemanha, a França, a Itália, ou qualquer dos suspeitos do costume.
O país mais poderoso da UE foi, nesta semana que passou, a Irlanda. Foi ao governo irlandês que os outros 26 membros do Conselho entregaram um veto para ser usado nas negociações do "Brexit" (após as cedências britânicas sobre os direitos dos cidadãos e a conta restante a pagar pela saída da UE). Se a Irlanda estivesse confortável com as propostas britânicas para a fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, as negociações entre o Reino Unido e a UE poderiam avançar. Caso a Irlanda não aprovasse as propostas britânicas, a UE como um todo não avançaria para a próxima fase de negociações.
Tendo em conta os interesses económicos que estão em jogo, é fácil de ver a magnitude da decisão que foi entregue aos irlandeses. E não é preciso esquecer todos os defeitos que a União Europeia tem, e em particular as dificuldades que os países pequenos têm nela, para chegar à seguinte conclusão: nunca na sua história a Irlanda teve tanto poder em relação à Grã-Bretanha. Na sua história, a Irlanda foi invadida, colonizada, empobrecida e dividida pelo vizinho do lado. Em séculos, jamais Londres imaginou vir a depender de uma decisão de Dublin. Pois depende agora, porque o Reino Unido decidiu soberanamente sair da UE e a Irlanda decidiu soberanamente ficar. Já sei que isto irritará quem gosta de ver sempre o projeto europeu através do prisma do cinismo e das ideias feitas, mas factos são factos.
Tal como são, é claro, factos inegáveis todos os vícios, perigos e defeitos da política da UE. Muitos deles, aliás, denunciados nesta coluna desde o início — e lembro, a título de exemplo, o que escrevi sobre a política de refugiados, as derivas autoritárias no leste e acima de tudo sobre a gestão da crise do euro (a propósito, ninguém na política portuguesa reparou que a Comissão Europeia propôs ontem integrar o Tratado Orçamental no direito europeu? Pois é melhor abrir os olhos). A conclusão é que, pesando uns factos e outros, a União Europeia pode também servir como um instrumento de ampliação de soberania. Compete-nos a nós, reconhecendo isso, usá-la para maximizar essas oportunidades, que serão cada vez mais cruciais nos tempos que correm.
Queiramos ou não, o sistema internacional entrou numa nova fase com Donald Trump. A sua proclamação de Jerusalém como capital de Israel, à revelia do direito internacional e de todos os esforços de décadas para atingir a paz entre dois estados, Israel e Palestina, vivendo em segurança lado a lado e partilhando Jerusalém como capital, é apenas o mais recente exemplo de uma tendência que se vai acelerar.
Para onde quer que olhemos, a política mundial está cada vez mais dominada por líderes que supõem fortes mas são sobretudo instáveis. Nos próximos anos, as poucas potências que ainda levam a sério a cooperação internacional tentarão jogar este novo jogo com as velhas regras. Sabemos que não terão ainda a agilidade estratégica para responder a Trump com outra audácia: reconhecendo já o Estado da Palestina, por exemplo, e propondo depois a esse novo estado e a Israel um acordo de associação com a UE em troca de um tratado de paz definitivo e com garantias de verificação. Sim, é verdade que a UE é muitas vezes um projeto frustrante e uma realidade injusta.
É também verdade que se a UE não existisse teria de ser reinventada. Vemos muito os seus defeitos e esquecemos demasiado as suas possibilidades. Ora, se os cidadãos da UE não souberem ver nela potencial e os seus estados não souberam fazer força a partir da união, rapidamente seremos reduzidos a muito pouco nos tempos que aí vêm. Nesta semana vimos a Irlanda tirar um proveito decisivo da sua pertença ao projeto europeu. Como estado-nação isolado, jogando um jogo novo com as velhas regras, a Irlanda teria perdido. Não negando todos os defeitos que a UE tem, não nos esqueçamos de reconhecer as vantagens reais que ela também traz.