Jerusalém: a cidade que existe duas vezes
Em rigor, o mal começou bastante antes do actual Presidente norte-americano. Os EUA estão sem estratégia para o Médio Oriente há bastante tempo.
No magnífico livro Jerusalém: a biografia Simon Sebag Montefiore escreve a certa altura: "Jerusalém é a casa do Deus único, a capital de dois povos, o templo de três religiões e ela é a única cidade a existir duas vezes — no céu e na terra: a graça sem igual do terrestre é praticamente nada para as glórias do celestial ". E, mais à frente, conclui: "sempre houve duas Jerusalém, a temporal e a celestial, ambas governadas mais por fé e emoção do que por razão e factos."
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No magnífico livro Jerusalém: a biografia Simon Sebag Montefiore escreve a certa altura: "Jerusalém é a casa do Deus único, a capital de dois povos, o templo de três religiões e ela é a única cidade a existir duas vezes — no céu e na terra: a graça sem igual do terrestre é praticamente nada para as glórias do celestial ". E, mais à frente, conclui: "sempre houve duas Jerusalém, a temporal e a celestial, ambas governadas mais por fé e emoção do que por razão e factos."
Donald Trump decidiu mudar a embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém. Para uns trata-se apenas do cumprimento de uma promessa eleitoral, para outros de mais uma das suas loucuras. A segunda versão parece mais plausível. Mas a grande questão é a de saber se há um “método na loucura”, uma racionalidade no 45.º Presidente americano, neste assunto como em vários outros.
Há aqui duas dimensões distintas: uma interna e outra externa. Na perspectiva da primeira podemos entender a decisão pois ela é popular no essencial da base de apoio de Trump e Israel goza hoje de um amplo apoio nos EUA. Muitos norte-americanos projectam-se na história dos judeus, crendo que ambos partiram para longe, passando por todo o tipo de provações e adversidades, à procura da terra prometida, para criar o céu na terra. Além disso, os horrores do holocausto e o facto de os judeus terem criado a única democracia numa terra de tiranos, em muitos casos sanguinários que não hesitam em matar o seu próprio povo, toca fundo no coração da América.
Já do ponto de vista externo é praticamente impossível perceber a racionalidade de Trump uma vez que se trata de uma decisão má para a região, para os Estados Unidos, para os seus aliados árabes do Médio Oriente (Jordânia, Arábia Saudita, Egipto, etc.) e, sobretudo, para Israel, que será o grande alvo de todas as retaliações.
Em rigor, o mal começou bastante antes do actual Presidente norte-americano. Os EUA estão sem estratégia para o Médio Oriente há bastante tempo. Até 1979, a época feliz, esta assentou na tripla aliança – com o Irão, Israel e a Arábia Saudita (os “três polícias). Depois da revolução iraniana adoptaram a “dupla contenção”, consistindo na contenção simultânea do Irão e do Iraque (ao mesmo tempo que estes dois países se equilibravam mutuamente). Depois da estupidez da guerra do Iraque a América ficou à deriva na região. Donald Trump parece acreditar que é possível uma nova estratégia alicerçada no alinhamento completo com Israel e a Arábia Saudita, porém, ela não é exequível pois esta dupla aliança não chega para equilibrar o poder ao nível regional, sobretudo devido à ascensão do Irão, à crescente influência da Rússia no Médio Oriente e à quase-aliança (ou mesmo aliança) entre Moscovo e Teerão, visível diariamente nos escombros da Síria.
É possível argumentar que a mudança da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém não é uma decisão com consequências tão graves quanto isso por três grandes motivos. Em primeiro lugar, o Médio Oriente está a perder importância ao nível mundial, e também na América, sendo cada vez mais a periferia de um sistema internacional cujo centro está crescentemente na Ásia, devido sobretudo à ascensão de potências como a China e a Índia, tendo-se deslocado para aqui a prioridade estratégica de Washington. Em segundo lugar, o grande conflito na região já não é o israelo-palestiniano mas sim o entre xiitas e sunitas, encabeçado pelo Irão e pela Arábia Saudita e traduzido na “guerra aos pedaços” entre eles na Síria, no Iraque, no Iémen, no Qatar, no Líbano, e por aí fora. Finalmente, porque o assunto que pode incendiar de vez o Médio Oriente e levá-lo ao inferno está noutro lado, nomeadamente no acordo nuclear iraniano que, se for rasgado por Trump, destruirá os moderados em Teerão, acabará com a linha mais conciliatória da política externa do país e levá-lo-á a activar os seus clientes do Hezbollah, dos Hamas e a mobilizar as populações xiitas espalhadas por vários países.
Tudo isto é verdade. Mas, seja como for, reconhecer Jerusalém como capital de Israel é só um pouco menos incendiário do que ir para o centro de Meca e queimar um exemplar do Corão. Tem tudo para trazer de volta a espiral da violência, desde logo reacendendo um conflito que estava adormecido faz já algum tempo, mas também com uma alta probabilidade de se espalhar para outras geografias, desde logo a Jordânia (onde existe uma significativa população palestiniana) ou o Líbano (em crise e com um Hezbollah com imenso poder) ou mesmo a Arábia Saudita. Além disso, a decisão de Trump levará ao crescimento e proliferação do anti-americanismo um pouco por todo o Médio Oriente, a começar pelas opiniões públicas dos seus aliados. Acresce que ela põe em causa a détente (não assumida) de Israel com várias potências sunitas, como as monarquias do Golfo. Finalmente, deixa os EUA uma vez mais quase isolados, pois é praticamente certo que a larga maioria dos países seus amigos não só não vão seguir o exemplo como condená-lo-ão, como já o fez com especial veemência (e bem) Emmanuel Macron. Ora, se a Administração norte-americana continuar por este caminho, os aliados não terão outra hipótese que não seja repensarem as suas políticas externas em busca de alternativas.
Como escreveu Simon Sebag Montefiore, Jerusalém é uma cidade que existe duas vezes. Deus queira que se deixe a fé e a emoção para a cidade celestial e a da terra seja governada pela razão e pelos factos.