Uma arte inventada por mulheres no século XVII é agora Património da Humanidade
Os bonecos de Estremoz são o primeiro figurado do mundo a merecer a distinção de Património Cultural Imaterial pela UNESCO. É o reconhecimento, ainda que tardio, de uma arte popular historicamente pouco valorizada.
O Comité Intergovernamental da UNESCO para Salvaguarda do Património Cultural Imaterial para a Educação, Ciência e Cultura voltou a contemplar Portugal na sua 12.ª reunião, que decorreu na Coreia do Sul. Depois do cante alentejano e dos chocalhos, da olaria negra de Bisalhães e da falcoaria, chegou a vez de inscrever na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade os bonecos de barro de Estremoz.
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O Comité Intergovernamental da UNESCO para Salvaguarda do Património Cultural Imaterial para a Educação, Ciência e Cultura voltou a contemplar Portugal na sua 12.ª reunião, que decorreu na Coreia do Sul. Depois do cante alentejano e dos chocalhos, da olaria negra de Bisalhães e da falcoaria, chegou a vez de inscrever na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade os bonecos de barro de Estremoz.
A decisão, anunciada na madrugada desta quinta-feira, foi a que suscitou maior unanimidade entre os membros do júri, que aprovaram em apenas cinco minutos a candidatura apresentada pela Câmara Municipal de Estremoz, e que teve como responsável técnico o director do Museu Municipal de Estremoz, Hugo Guerreiro. É o primeiro figurado do mundo a merecer a atribuição de Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Na área de Património Cultural e Imaterial da Humanidade estavam inicialmente a concorrer 49 candidaturas, das quais 35 foram aprovadas, tendo 11 recolhido parecer negativo. A decisão final sobre as candidaturas a aprovar, anunciada para quarta-feira, acabou por ser adiada devido às sucessivas discussões sobre outras candidaturas, que suscitaram alguma controvérsia.
O artesão Duarte Catela, 29 anos, manifestou ao PÚBLICO a sua “enorme satisfação" pelo prémio atribuído aos que nos dias de hoje fabricam bonecos em barro no concelho de Estremoz. A arte aprendeu-a aos 15 anos com a sua avó Alice Marmelo, que por sua vez recebeu os ensinamentos da sua mãe, Quirina Marmelo. O jovem artesão, o único da sua família a dar continuidade à herança, em part-time (é chef de cozinha num restaurante em Queluz), acredita que a atribuição da UNESCO venha a suscitar uma maior procura dos bonecos de Estremoz.
A conjugação do período natalício e a atribuição do prémio da UNESCO também gera expectativas comerciais mais promissoras em Afonso Ginja, que molda figuras de barro há mais de 40 anos. “É a única coisa que sei fazer”, confessa o artesão de 67 anos, ao PÚBLICO, ainda surpreendido pela projecção internacional que “os bonecos” feitos na cidade alentejana estão a ter com a classificação. E salienta que a sua atribuição “vem recompensar” o esforço dos artesãos de Estremoz em manter viva “uma arte antiga”, apesar dos condicionalismos impostos pela crise económica. “É um artigo muito bonito”, vinca Afonso Ginja, mas quando o dinheiro não abunda “há outras coisas mais prioritárias na vida das pessoas”, reconhece.
Do ponto de vista material, “ninguém fica rico com esta arte", observa o artesão, frisando que a sua moldagem “leva dias, como leva dias a pintar”, sublinhando que “não há moldes, só mãos para conceber uma arte que não tem duas peças iguais”.
Os artífices que hoje moldam o barro seguem, na sua essência, as referências deixadas pelos artesãos originais, que, ao contrário do que foi afirmado e divulgado durante muito tempo, não eram “os famosos oleiros de Estremoz, mas sim na sua vastíssima maioria mulheres”, como refere a acta da sessão de 31 de Outubro de 1770 da Câmara Municipal de Estremoz.
Com efeito a ficha de inscrição da “Produção de Figurado em Barro de Estremoz” à candidatura a Património Mundial Imaterial refere que as mulheres “nem sequer tinham a sua actividade considerada como ofício de pleno direito (constituído enquanto corporação), tal era a condição feminina na época”. Daí que as primeiras figuras conhecidas sejam santos populares de forte implantação devocional na região, como Santo António, São João Baptista, Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora com o Menino: são modelos de feição popular, resultado de as artífices serem mulheres sem qualquer tipo de educação erudita, tendo somente uma “formação” baseada na experiência pessoal.
No século XVII, os ofícios ligados aos barros de Estremoz (oleiros de barro fino, oleiros de barro grosso, telheiros e poteiros) eram profissões exercidas por homens, certamente com algum contributo feminino na área da decoração e dos acabamentos, mas o de bonequeira, exercido por mulheres, não era considerado, como refere o Livro das Taxas dos Ofícios de Estremoz, 1675-1732.
"Um momento grande"
Sendo uma arte de cariz popular realizada por mulheres anónimas, os bonecos de Estremoz foram historicamente pouco valorizados. Só no século passado é que se assistiu a uma preocupação séria no sentido de recuperar a história da tradição e de descrever a arte. A partir do momento em que os antropólogos portugueses se começaram a interessar pela arte popular, o figurado em barro de Estremoz passou a ser visto como um importante legado a estudar.
Recentemente, os bonecos de Estremoz foram objecto de uma conferência na Academia Portuguesa de História. Também no selo da taxa de 0,55 euros, destinado ao correio azul nacional, e posto em circulação pelos Correios de Portugal em 21 de Abril de 2015, aparecem dois exemplares de bonecos pertencentes ao núcleo tradicional do figurado de Estremoz.
Em nota enviada ao PÚBLICO, a Direcção Regional de Cultura do Alentejo felicita “o reconhecimento do valor do Património Imaterial”, destacando a “especificidade do Figurado de Barro de Estremoz (…) com particular importância para a continuidade e salvaguarda da prática num contexto de sustentabilidade económica, social e cultural”.
Nas declarações que prestou à Lusa, Luís Mourinha, presidente da Câmara de Estremoz, descreveu a atribuição da UNESCO como “um momento grande da história de Estremoz, das suas gentes”. O autarca acentua que o figurado de barro “representa tudo o que é o trabalho, tudo o que é a dificuldade dos alentejanos e dos estremocenses em particular".
Presentemente, a tradição de modelação de figurado em barro continua bastante activa e é desenvolvida por cinco barristas a tempo inteiro (Afonso Ginja, Fátima Estroia, Irmãs Flores, Maria Luísa da Conceição, Ricardo Fonseca) e um a tempo parcial (Duarte Catela).