O sexo da cidade
Há mulheres que se privam de sair de casa à noite por terem medo de andar na rua.
Cidade, substantivo feminino que de feminino pouco tem de substantivo e Lisboa não é excepção. Definidas historicamente por homens à medida das funções desempenhadas tradicionalmente por homens, a cada rua vazia, a cada largo mal iluminado, a cada paragem de autocarro num ermo, as cidades esquecem a outra metade da população que deve servir: as mulheres.
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Cidade, substantivo feminino que de feminino pouco tem de substantivo e Lisboa não é excepção. Definidas historicamente por homens à medida das funções desempenhadas tradicionalmente por homens, a cada rua vazia, a cada largo mal iluminado, a cada paragem de autocarro num ermo, as cidades esquecem a outra metade da população que deve servir: as mulheres.
Há muito que as mulheres exigem ser ouvidas nos mais diversos contextos, só por si um sintoma de que a igualdade está longe de uma realidade. Reclama-se a liberdade de andar na rua; a liberdade de sair à noite sem ter de confirmar se há dinheiro para o táxi (as que não receiam regressar de táxi); a liberdade de voltar para casa depois do trabalho sem ter de suster a respiração.
Ouçamos as mulheres de modo a adoptar soluções que respondam efectivamente aos seus problemas específicos. O primeiro Inquérito Municipal à Violência Doméstica e de Género no Concelho de Lisboa, realizado pela FCSH este ano, afirma que há mulheres que se privam de sair de casa à noite para actividades de lazer por terem medo de andar na rua. E o que fazem as que não têm opção ou não prescindem da sua liberdade de sair de casa quando entendem? Continuarão a sentir o coração acelerar quando ouvem passos atrás de si, a vestir-se em função do que outros pensam ou a definir previamente os percursos a seguir antes de sair de casa?
Soluções que passam por aumentar as restrições à liberdade das mulheres de usarem o espaço ou os transportes públicos seguem o sentido oposto ao da igualdade que se exige, a igualdade de acesso a espaços e transportes públicos adequados às diferentes vivências de quem habita e trabalha na cidade.
Os factores que inibem as mulheres de usar plenamente os espaços públicos são diversos, como diversos são os motivos que levam as mulheres a desesperar ou levar carro, quando o têm. Em Lisboa os dados ainda são escassos, mas muito trabalho tem sido desenvolvido em diversas cidades, nomeadamente na Europa onde o nível de violência é mais próximo, e os processos e soluções desenvolvidos podem dar-nos pistas para melhorar a cidade tendo em conta a perspectiva da mulher.
Ainda que a percepção que as mulheres têm da cidade e, consequentemente, a maior ou menor sensação de segurança varie de acordo com as zonas em que se movimentam, as horas a que o fazem ou a sua condição social, entre outras variáveis, do muito que se tem investigado e discutido ao longo de décadas é consensual que um espaço público onde exista maior número e diversidade de pessoas a ocupar esse espaço aumenta a sensação de segurança. Significa isto que, quanto mais gente houver a deslocar-se a pé para um passeio, menor é a insegurança percepcionada.
Assim, se melhorarmos os passeios facilitando às mulheres deslocarem-se com os carrinhos de crianças ou de compras, estamos a melhorar os passeios para todos os que desempenham as mesmas funções e também para os idosos ou para as pessoas com mobilidade condicionada.
Se colocarmos equipamento que permita às mulheres descansar e conviver no espaço público, sem obrigar a consumo, aumentamos o leque de pessoas a quem esse espaço serve. Se revirmos a iluminação dos percursos pedonais reduzindo a insegurança das mulheres, convidamos mais pessoas a sair para a rua à noite, além das que não podem evitá-lo. Se pudermos confiar nos horários dos transportes públicos e aproximarmos as paragens dos destinos de quem os usa, reduzindo as distâncias a percorrer pelas mulheres, aumentamos o número e diversidade de utentes reduzindo a sensação de insegurança no seu interior.
Se tivermos consciência das diferenças que existem entre os usos que fazemos dos espaços públicos, todos nós — arquitectos, urbanistas, autarcas, moradores e trabalhadores que vivem a cidade — saberemos encontrar soluções que permitam usá-los e desfrutá-los sem medo.
Como defendia Jane Jacobs, jornalista, em 1961, as alternativas devem passar por pôr mais “olhos na rua”; olhos de outros, de vizinhos, de amigos, de outros iguais a nós em todas as nossas diferenças, todos com igual direito a deslocarmo-nos livremente na cidade e a aceder e desfrutar de todos os seus espaços públicos em condições de igualdade com os demais.