Fortuny quis pintar (e pintou) as cores das sombras

O destaque da programação de Inverno do Museu do Prado vai todo para um pintor espanhol que se deixou seduzir pelo Norte de África e que foi um incrível coleccionador de antiguidades. Mariano Fortuny vem dizer que, na pinacoteca de Madrid, o século XIX também conta. E não é só Goya.

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La vicaría (1868-1870) é uma pintura que tem lá dentro outra, de Tintoretto. Está entre as primeiras obras que deram a Fortuny fama internacional Museu Nacional d’Art de Catalunya, Barcelona

Numa das albuminas do catálogo vemo-lo de costas, de chapéu na cabeça, junto à mulher, Cecilia de Madrazo. Estão sentados no atelier, em cujas paredes podemos identificar algumas das 170 obras que hoje fazem de Fortuny (1838-1874), a monográfica que até 18 de Março é o grande destaque da programação do Museu do Prado, em Madrid, a mais completa exposição alguma vez dedicada ao catalão Mariano Fortuny, pintor de grande sucesso nacional e internacional na segunda metade do século XIX, mas que parece tardar a receber o reconhecimento devido na contemporaneidade, dentro e fora da academia.

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Numa das albuminas do catálogo vemo-lo de costas, de chapéu na cabeça, junto à mulher, Cecilia de Madrazo. Estão sentados no atelier, em cujas paredes podemos identificar algumas das 170 obras que hoje fazem de Fortuny (1838-1874), a monográfica que até 18 de Março é o grande destaque da programação do Museu do Prado, em Madrid, a mais completa exposição alguma vez dedicada ao catalão Mariano Fortuny, pintor de grande sucesso nacional e internacional na segunda metade do século XIX, mas que parece tardar a receber o reconhecimento devido na contemporaneidade, dentro e fora da academia.

Para os que não sabem de quem se trata, nada como ir buscar a frase que o comissário Javier Barón não se cansou de repetir durante a apresentação aos jornalistas para aguçar a curiosidade – “Mariano Fortuny é o mais completo pintor espanhol entre Goya e Picasso”. Um “artista poliédrico” encaixado entre dois  génios, exímio desenhador e aguarelista com “um sentido estético enormemente moderno” e que, garante este historiador de arte que é também o conservador-chefe de pintura do século XIX da pinacoteca madrilena, se deixou seduzir, desde a primeira hora e sem surpresas, pelos grandes mestres do Renascimento e do barroco, mas também pela nudez dos espaços árabes e pelo contraste entre a “luz aguda, brilhante, e a obscuridade serena” que encontrou no Norte de África, quando era ainda um jovem pintor de batalhas.

“É o mais completo porque foi o único a atingir um alto nível de qualidade nas suas pinturas a óleo, nas aguarelas (uma técnica completamente renovada por ele), nos desenhos a lápis e a tinta, e nas gravuras (outro campo que ajudou a renovar)”, explica Barón ao Ípsilon, chamando também a atenção para a sua faceta de coleccionador de antiguidades, com uma ambição que nunca antes se vira num artista espanhol.

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Desnudo en la playa de Portici (1874 ) é uma das obras mais conhecidas do último Verão do pintor catalão, passado em Portici, Nápoles Museo Nacional del Prado, Madrid

Esta multiplicidade de suportes, assim como a omnipresença do Norte de África e da cultura árabe no seu imaginário, torna-se evidente a qualquer um que decida percorrer a recém-inaugurada exposição que atravessa os 36 anos de vida daquele que foi o mais internacional dos artistas espanhóis do século XIX.

Dividida em oito núcleos temáticos organizados cronologicamente, a exposição inclui 67 obras que saem agora pela primeira vez das suas colecções de referência e beneficia de empréstimos de 40 particulares e instituições, nacionais e internacionais, com destaque para o Museu Nacional de Arte da Catalunha, que em 2003 organizou uma importante mostra consagrada ao artista e que agora cede à pinacoteca madrilena 15 obras, e para o Museo Fortuny de Veneza, o maior emprestador (30 obras) de um naipe de respeito, de que fazem parte o Museu Britânico (Londres), o Metropolitan (Nova Iorque), o Hermitage (São Petersburgo), a Biblioteca Nacional de França (Paris), o Art Institute de Chicago ou a National Gallery de Washington.

Esta monográfica começa com um módulo dedicado aos seus anos de formação em Roma (1858-61), para onde viajou com uma “bolsa” da cidade de Barcelona, cuja Escola de Belas-Artes frequentou por insistência do avô, um carpinteiro que se tornou seu tutor muito cedo, quando Fortuny perdeu os pais.

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Cofre hispano-árabe em marfim, madeira e bronze (século XI) que pertencia à riquíssima colecção de antiguidades do artista Museo Civico di Arte Antica, Turim

Regressado de Roma, no mesmo ano de 1861, parte para Marrocos para acompanhar e registar, como um repórter de imagem que em vez de uma câmara tem um bloco de desenho, a guerra hispano-marroquina, e em particular a participação que nela têm os voluntários catalães. Das pinturas, desenhos e aguarelas inspirados no conflito, com um forte peso propagandístico, o mais famoso dos agora expostos em Madrid é La batalla de Wad-Ras (1860-61), em que fixa o momento em que as tropas catalãs derrotam o inimigo, conciliando cenas de confronto directo de grande movimento com outras mais serenas, com corpos a serem retirados do rio.

Explica o comissário da exposição que, no Norte de África, o pintor se sentiu imediatamente seduzido pelo “estilo de vida mourisco”, que preferia ao europeu, e que entrou em contacto, pela primeira vez, com uma luz brilhante e espaços abertos, vazios, com construções geométricas. É também em Marrocos, sublinha Javier Barón, que Fortuny “toma consciência de que as sombras têm cor”, uma “intuição” que virá a desenvolver mais tarde em Granada, onde se estabelece entre 1870 e 1872, e em Portici, nos anos finais (1873-74), duas localidades que têm direito a núcleos próprios na exposição do Prado. “Ele sabia, pela sua própria experiência de observação directa da natureza, de que a cor de um objecto muda consoante a luz que se reflecte na sua superfície.” E que isso influenciava também a forma como a sua sombra podia ser representada.

Um grande coleccionador

O percurso expositivo de Fortuny inclui também salas dedicadas ao tempo que passa entre Espanha e Itália (1863-68) – período em que se casa com Cecilia, filha do pintor Federico de Madrazo, que durante 20 anos foi director do Prado –, ao seu sucesso internacional (1868-70), e à gravura, técnica que tem em El anacoreta um “extraordinário exemplo de inovação” e em que toma Rembrandt, Ribera e Goya, o pintor que mais reproduz no Prado, como fonte de inspiração.

As cópias que faz no museu de Madrid ocupam outro dos oito módulos, onde estão as suas “versões” de obras de Velázquez, Van Dyck, Veronese, Ribera e até El Greco, que era pouco apreciado na altura, mas que Fortuny admira ao ponto de comprar uma pintura do mestre do retábulo da Catedral de Toledo.

Diz o comissário que para esta exposição se fez o primeiro estudo de fôlego sobre o trabalho de Mariano Fortuny a partir dos grandes mestres, primeiro em Roma e depois em Madrid. O artista usa-os como inspiração, mas também chega a citá-los directamente. As suas pinturas em que aparecem homens já velhos, em tronco nu (como Viejo desnudo ao sol), evocam Ribera, e La Vicaría (1868-1870), obra que retrata o casamento de uma jovem mulher com um cavaleiro e que contribuiu de forma decisiva para a sua fama internacional, tem lá dentro a cópia de um Tintoretto.

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Em El fumador de opio, Fortuny mostra o que aprendeu com Rivera Museu Hermitage, São Petersburgo

Outra das parcelas da vida do artista que agora foi também objecto de investigação deu origem a um dos núcleos mais interessantes da exposição – o que se ocupa de Fortuny enquanto coleccionador de arte e antiguidades. A qualidade do seu olhar sobre o que o rodeia, tão evidente nas aguarelas e pinturas em que representa cenas de rua adoptando perspectivas singulares ou tratando como protagonistas pormenores que a maioria teria eventualmente desconsiderado, estende-se aos objectos que vai comprando e que depois passam para a sua obra, mesmo que para isso cheguem a mudar de cor ou de tamanho (veja-se, por exemplo, o cofre hispano-árabe do século XI de Árabe apoyado en un tapiz ou a arca florentina do século XVII das várias versões de El aficionado de las estampas).

O comissário da exposição está entre os que defendem que Fortuny seria um pintor totalmente diferente se não tivesse sido tão bom coleccionador: “Estamos convencidos de que o seu contacto com todas estas preciosas antiguidades contribuiu para a sua apetência pela representação das qualidades materiais, da cor e do brilho dos objectos na sua pintura. O seu atelier era uma espécie de microcosmos onde os seus próprios trabalhos se misturavam com têxteis, armaduras e cerâmicas.”

A sua actividade de coleccionador intensificou-se logo na primeira estada em Marrocos, em 1860, e manteve-se até ao fim. O seu fascínio pela arte, cultura e costumes magrebinos, aliado ao desejo de representar o quotidiano local, que deu origem a obras como El fumador de opio (1869) ou El vendedor de tapices (1870), levou-o a comprar nos mercados e antiquários objectos que teria de representar mais tarde, quando os seus pequenos cadernos de esboços dessem origem, já em estúdio em Madrid, Barcelona, Paris ou Roma, a pinturas a óleo muito procuradas por coleccionadores espanhóis e estrangeiros. É por isso que adquiriu espingardas e punhais, tapetes e capacetes militares persas ou a célebre placa de cerâmica do século XV que há décadas atrai os especialistas interessados na arte produzida na Andaluzia islâmica.

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La elección de la modelo (1868-1874) National Gallery of Art, Washington

Na exposição podem ver-se ainda vidros e espelhos venezianos, uma tapeçaria flamenga do século XVI, um magnífico capacete de combate de fabrico milanês (século XVI), decorado com uma delicada coroa de folhas de carvalho douradas, e até a máscara mortuária de Beethoven, compositor que estava entre os seus favoritos.

Ao mesmo tempo que ganhava fama como artista, Mariano Fortuny consolidava a sua reputação como coleccionador erudito, capaz de distinguir sem esforço um artefacto autêntico de uma falsificação. Essa competência torna-se evidente quando olhamos para as legendas das peças que já foram suas e percebemos que hoje pertencem a alguns dos mais importantes museus do mundo, como o Louvre, o Metropolitan e o Hermitage.

“Não há qualquer descontinuidade entre a sua pintura e o que o rodeia no atelier”, acrescenta Javier Barón.

Um pintor burguês

Tirando partido desta monográfica, o mercado editorial espanhol lança três publicações: uma centrada na vida do pintor e nos reflexos que dela existem na sua obra (Fortuny o el arte como distinción de classe, de Carlos Reyero), uma biografia da mulher do artista (Cecilia de Madrazo, luz y memoria de Mariano Fortuny, de Ana Gutiérrez), e outra ainda em que se reúnem 400 cartas de e para Fortuny (organizada pela mesma Ana Gutiérrez e por Pedro Martínez, ambos conservadores do Prado).

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Pasatiempos de hijosdalgos (1870-71) Museu Pushkin, Moscovo

Defende Reyero, especialista em pintura e escultura espanholas do século XIX, no seu livro que, apesar de “mais doce” do que o que faz prever o retrato que dele lhe pinta o sogro, Federico de Madrazo, Mariano Fortuny serve na perfeição o ideal burguês da época – valoriza o trabalho, é um homem consciente do seu talento, mas é também um pragmático, sabe o que tem de fazer para garantir uma carreira de sucesso. E sabe que o que tem de fazer não passa só pelo atelier. A entrada para a família De Madrazo é apresentada como um ponto de apoio essencial nessa sua escalada social e artística.

“Fortuny não se tinha casado apenas com uma mulher, tinha entrado para uma família. E para uma família com muita classe”, escreve o autor, depois de na introdução explicar por que resolveu tirar partido do duplo sentido da palavra “classe” (por referência a um estatuto social e como sinónimo de qualidade). É que Fortuny, argumenta, viveu e trabalhou numa época em que se redefinia a ordem social (falava-se de novos-ricos, classe média, proletariado).

O artista catalão, que tinha na sua carteira de clientes a alta sociedade de Barcelona e Madrid, “os elegantes de Paris” e os coleccionadores europeus e americanos, todos a usarem a sua pintura como forma de “associar classe e bom gosto”, beneficiou claramente de um ambiente em que esta “elite” estava desejosa de mostrar o seu poder através do que podia comprar, mesmo que lhe escapassem, muitas vezes, as “subtilezas estéticas”. Um contexto, garante, que começou por lhe ser favorável e que depois se tornou “asfixiante”.

No começo dos anos 1870, no seu retiro de Verão em Itália, o artista procura afastar-se dessa asfixia com um conjunto de pinturas luminosas de que faz parte Los hijos del pintor en el salón japonés (1874).

“Agora posso pintar para mim”, diz a certa altura (a citação está escrita na parede do último núcleo, o das obras de Portici, zona balnear perto de Nápoles). “[Pintar] como eu gosto, como me dá prazer: e isto é o que me dá esperança de progredir e de me mostrar como realmente sou.”

São estas obras de fim de vida que podem ser vistas como uma espécie de projecto que Fortuny deixa a meio. “Estava a trabalhar várias coisas ao mesmo tempo [quando morreu]. Por um lado, andava preocupado em encontrar uma maneira de representar a luz com mais rigor ao ar livre. Por outro, estava empenhado em integrar elementos japoneses na sua pintura”, diz Barón, acrescentando que o último grande quadro que fez, e que mostra um talhante em Portici, denuncia o seu interesse por um “realismo intenso”.

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Los hijos del pintor en el salón japonés (1874) Museo Nacional del Prado, Madrid

As aguarelas e pinturas feitas nesta praia italiana, sobretudo as paisagens marítimas e os rapazes na água e na areia, entre eles o seu filho Mariano (Mariano Fortuny y Madrazo, artista e designer de moda), estão, para o comissário, entre os melhores trabalhos do artista. “Neles integra finalmente o seu fascínio pelo Japão, as qualidades materiais dos objectos que colecciona e a beleza lúgubre da paisagem da beira-mar”, conclui Barón, depois de resumir, assim, a personalidade de Fortuny: “Estava sempre a trabalhar, era sensível e extremamente leal à família e aos amigos. Tímido e reservado, inteligente, era também modesto, embora consciente do seu valor como artista.”

Uma das obras mais surpreendentes da exposição está guardada para o fim. Em Marina (1874) voltamos à praia de Portici, mas sem pessoas, e sentimos, uma vez mais, que Fortuny anda à procura de outras maneiras de pintar e que para ele a luz nunca é de mais.

O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha