Com Circuit des Yeux, a música é a resposta para tudo

Reaching for Indigo é um álbum precioso, feito de procura íntima e exploração sonora. É o álbum de uma voz avassaladora. Haley Fohr fala ao Ípsilon

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Ela não revela muito. Contou que algo determinante aconteceu em Janeiro de 2016. Que algo se transformou em Haley Fohr, cantora e compositora que assina como Circuit des Yeux, num momento que descreveu como próximo do transe místico revelador, convulsões e lágrimas e o mundo interior e os olhos que observam o mundo lá fora a ganhar outros contornos. Haley Fohr não explica exactamente o que aconteceu e isso é pouco importante. Interessa que temos Reaching for Indigo, o seu quarto álbum enquanto Circuit Des Yeux, experiência avassaladora (a que sentimos ao ouvi-lo) sobre experiência avassaladora (a dela, que conduziu à música que agora ouvimos).

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Ela não revela muito. Contou que algo determinante aconteceu em Janeiro de 2016. Que algo se transformou em Haley Fohr, cantora e compositora que assina como Circuit des Yeux, num momento que descreveu como próximo do transe místico revelador, convulsões e lágrimas e o mundo interior e os olhos que observam o mundo lá fora a ganhar outros contornos. Haley Fohr não explica exactamente o que aconteceu e isso é pouco importante. Interessa que temos Reaching for Indigo, o seu quarto álbum enquanto Circuit Des Yeux, experiência avassaladora (a que sentimos ao ouvi-lo) sobre experiência avassaladora (a dela, que conduziu à música que agora ouvimos).

Brainshift, came like a tidal wave”, anuncia-se à primeira canção, cantado naquela imponente voz grave, intuição controlada com precisão de cena, enquanto o órgão desenha sombras misteriosas em redor, enquanto coros, mais farrapos digitais que sons humanos, rondam as notas esparsas e uma secção de metais se ergue como espectro subitamente despertado do seu sono imortal. “The world wants an oath, but all you can say is, ‘I can only promise to take up space'”, continua Haley a cantar.

“Muito mudou, e talvez não seja visível ao olhar, mas sinto-o em mim. Encontrei uma resposta de que nem sabia estar à procura. Tinha que questionar por que tenho andado a apanhar comboios sozinha pela Europa, ou a conduzir sozinha pelos Estados Unidos. De uma forma muito concreta, algo encaixou”. Haley Fohr, 28 anos, fala com o Ípsilon desde Chicago, a cidade para onde se mudou depois de terminar os estudos (nasceu em Lafayette, no Indiana) e onde se tornou música presente e activa na cena experimental.

Ao longo dos anos, em Portrait (2011), Overdue (2013) ou In Plain Speech (2015), foi criando para si um lugar onde a exploração, feita de bordões e profundidade de música ambiental, feita de manipulação de sons de proveniência diversa, se conjugam com uma dimensão de singer-songwriter introspectiva, fundada na folk e tentada pelos precipícios emocionais de Nico, por exemplo. Reaching For Indigo tem, porém, um alcance diferente, como se a música que criou no passado frutificasse definitivamente. “Não tenho problemas em habitar a Terra e lançar o olhar sobre a vastidão do oceano, mas tenho problemas em viajar num comboio cheio de gente ou em explicar as minhas coisas. Nos últimos dez anos, a música tem sido a minha resposta para tudo. Ainda é, mas há qualquer coisa de novo neste processo tão íntimo”.

Curioso que cheguemos a Reaching For Indigo depois de um desvio de percurso. O ano passado, Haley Fohr transformou-se em Jackye Lynn, anti-heroína e cowgirl à solta, revólver na mão e estrada sem fim à sua frente. Jackie Lynn, o álbum que editou, era country digital, os Suicide com poncho vestido, uma fantasia pop muito apelativa. Não era claramente Circuit des Yeux, mas gerou maior entusiasmo público do que tudo o que Haley Fohr editara antes. Tal não significou, porém, que ela ponderasse aproveitar as portas abertas pelo alter-ego. Pelo contrário. “Fiz Jackie Lynn porque precisava de um pouco de alívio. Queria tentar outra coisa e pareceu-me arriscado e divertido. Foi entretenimento e diverti-me muito, mas não sou eu”.

Respondendo ao coração

Tinha oito anos quando, nas aulas do coro da escola, uma professora a chamou à parte. Disse-lhe que soava diferente, que havia algo de especial na sua voz. “Sempre tive uma voz grave. Adoro cantar, mas a voz é tão sonora que só a posso utilizar de uma forma performativa, num palco”. Testemunhámo-lo em Abril passado, durante o concerto de deu no festival Tremor, em Ponta Delgada. Vimos como a voz se metamorfoseava, feminina e masculina, negra ou resplandecente, calmante ou perturbadora, usando da melhor forma um alcance de quatro oitavas.

Haley Fohr tornou-se Circuit des Yeux depois de criar e enterrar a sua primeira banda – chamavam-se Cro Magnon, tocavam punk rock, ela não cantava. Tornou-se verdadeiramente Circuit des Yeux depois da mudança para Chicago, enquanto se dividia entre o convívio com a comunidade de músicos que ia descobrindo e as preciosidades de outros tempos (da folk, da country, da soul) que descobria a trabalhar nos escritórios da Numero Group Records.

“Não gravo um disco a menos que tenha uma razão para o fazer. Tem que ter essa carga. Invejo os músicos que dizem a si mesmos, ‘bem, tenho contrato para mais três álbuns, portanto é tempo de fazer mais um’. Só consigo trabalhar respondendo ao coração, o que não resulta muito bem num contexto que exige algum pragmatismo”. 

Gravado com músicos como Cooper Crain e Rob Frye, dos Bitchin Bajas, ou Josh Abrams (Natural Information Society), o novo álbum de Circuit des Yeux é um casulo musical que preserva uma imensa riqueza no seu interior. Guiado pela admirável voz de Haley Fohr, é ode animista onde a paisagem natural se vai revelando, salvadora, e é busca íntima. Musicalmente, é o revisitar, sob outra luz, da folk tingida de jazz do Astral Weeks de Van Morrison (Black fly). É blues transformado em bordão sónico (A story of this world, part II), são os missais negros de Diamanda Galás, mas despidos da tralha místico-diabólica (Philo). São torch songs na madrugada de uma casa abandonada e tomada pela vegetação (Falling blonde) e são a voz em rodopio à volta do sintetizador, antes de o sintético se tornar telúrico, melhor, antes de o folk-rock se tornar também divagação cósmica e de a autoridade da voz de Haley transformar Paper bag num pedaço de música admirável.

“Tenho muitas conversas existenciais comigo mesma em que fujo para demasiado longe, mas depois reparo em algo de belo, o voo de um pássaro, uma onda da maré, todas essas coisas que soam a cliché, e elas trazem-me de volta”. Reaching for Indigo é essa viagem completa. É uma preciosidade. Rara como o são as preciosidades.