Os vinhos que venceram o fogo e o gelo
Josep Roca, sommelier e um dos três irmãos que criaram El Celler de Can Roca, fez em Girona uma prova de vinhos saídos de vinhas sobreviventes de incêndios e de ondas de frio. Porque o vinho também serve para falar das alterações climáticas e do que andamos a fazer ao mundo.
Não é habitual uma prova de vinhos começar com a citação de filósofos, pensadores, ambientalistas, com imagens de incêndios ou com a contagem do número de mortos que estes provocaram em vários pontos do mundo. Mas foi isso que Josep Roca fez no último Fórum Gastronómico da Catalunha, que aconteceu entre 19 e 21 de Novembro. “Vinhos do fogo e do gelo” foi não só uma prova inesquecível, mas também um statement político e uma lição de vida.
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Não é habitual uma prova de vinhos começar com a citação de filósofos, pensadores, ambientalistas, com imagens de incêndios ou com a contagem do número de mortos que estes provocaram em vários pontos do mundo. Mas foi isso que Josep Roca fez no último Fórum Gastronómico da Catalunha, que aconteceu entre 19 e 21 de Novembro. “Vinhos do fogo e do gelo” foi não só uma prova inesquecível, mas também um statement político e uma lição de vida.
“Há já algum tempo que não me interessa o vinho como mera construção gustativa, mas sim como uma construção reflexiva: o que está por trás dele, quem o fez assim, que geografia física e humana se esconde por trás de um vinho”, disse Josep Roca, a quem na Catalunha chamam carinhosamente Pitu e que, dos três irmãos que criaram El Celler de Can Roca, restaurante com três estrelas Michelin e já considerado o melhor do mundo (na lista do The World 50 Best Restaurants), é aquele que se ocupa dos vinhos.
Primeiro, os livros e os pensadores, com os quais tenta aproximar-se dessa “visão mais holística”: Marina Garcês, filósofa catalã, Jordi Pigem, também catalão e autor de Inteligência vital. Una vision postmaterialista de la vida y la consciencia, Ernest Callenbach e a obra de ficção Ecotopia, a activista indiana Vandana Shiva, James Hoggan, autor de Climate Cover-Up, Mark Lynas e Six Degrees, John Gladstones e Wine, Terroir and Climate Change.
Depois, as imagens dos fogos e os números, milhares e milhares de hectares queimados nos últimos anos da Califórnia a Portugal. “Estamos a arder e não temos tempo para parar e pensar por que ardemos.” Josep Roca vai dar-nos vinho a provar, mas quer falar de alterações climáticas. “Estamos a destruir o mundo e a destruirmo-nos com ele”, alerta.
A solução passa por uma resposta que não pode ser individual, tem que ser “muito mais diversa – a diversidade é uma palavra que me interessa”. E durante uma hora e meia vai falar da diversidade de formas de olhar o vinho, da diversidade de castas, da mistura de culturas agrícolas, da importância de o Homem sair do lugar central que acredita ocupar e respeitar muito mais a Natureza, não tentando falar mais alto do que ela, deixando-a exprimir-se em tudo – e também nos vinhos.
Por isso, quando os incêndios varrem as vinhas, o vinho deve contar essa história. São esses os “vinhos do fogo”.
O primeiro que Josep Roca apresentou foi Vi Nu 2016, da catalá Núria Renom (sem etiqueta, não está no mercado, é “uma experiência”), um “Moscatel de raízes queimadas num incêndio de 6 de Agosto” de 2016, “um vinho natural, de cores intensas, inocência, acidez rugosa, um fundo amargo, quase carbonizado”.
A ideia era mostrar como se pode jogar com os limites dessas plantas, as videiras, que em muitos casos servem de corta-fogos, explicou. “É uma oportunidade de beber consciência, de nos aproximarmos de um vinho feito a partir do coração e das dúvidas. Aqui há intuição, estamos no tempo da intuição, mas também há bagagem, experiência.” É Moscatel, uma casta que “simpática, alegre, jovial, descarada”, mas que neste caso vem de “uma vinha que soube estar entre a vida e a morte” e isso torna-o um vinho único, que “compreendeu o que é estar no limite”.
O vinho seguinte da prova só existe porque Josep Roca insistiu com o produtor para que o fizesse, apesar de as uvas terem sido queimadas. “Colhe-as que eu compro-te o vinho.” E assim nasceu o Vi Fumat 2012, em Empordà, Catalunha, de vinhas corta-fogo. “O que sentem aqui não é a madeira, é o fumo que traziam a uvas.”
A seguir, um vinho de um terreno “que não é vulcânico, é carbonizado”, Els Escurçons 2015, da família Pérez i Ovejero. Também aí, depois de um terrível incêndio em 2015, o produtor disse que não iria fazer vinho naquele ano porque “tem esse ponto de fumo que não vai agradar às pessoas”. Roca insistiu: “As pessoas já não procuram morangos ou amoras, querem saber o ciclo de um ano e se podes explicá-lo com uma matiz potente de impregnação dessa paisagem, é preciso contar isso.” Foi um vinho que permitiu essa reflexão, essa “viagem à dúvida”: devemos mostrar a paisagem real ou a irreal? Deve-se mostrar tudo ou só a parte que não se queimou?
A prova passou ainda por vinhos da Califórnia (de Duncan Arnot, em Sonoma, com um aviso sobre não cairmos na armadilha de pensar que os vinhos da Califórnia são todos iguais e uma referência ao “dragão que cospe fogo” dos incêndios naquela zona, “muito parecidos com os de Portugal”) e do Chile (Vigno, De Martino, La Aguada 2011, de Itata, (pretexto para falar sobre a posse da terra e as comunidades indígenas), um espumante natural da Catalunha (Alta Alella Bruant 2014, para falar da importância do equilíbrio ecológico) e terminou com dois vinhos extremos, um colheita tardia, com as uvas atacadas pela botrytis cinerea, a chamada “podridão nobre”, e um ice wine, um “vinho do gelo”.
“Queria que provassem o vinho mais quente possível da zona mais ao Norte possível”. É um vinho de uvas com botrytis – o que, sublinhou Roca, não é necessariamente uma coisa boa, porque esta doença da vinha “é um elemento que torna os vinhos iguais”, independentemente das regiões ou das castas. Mas este (Georg Breuer, Berg Schlossberg, 2003, de Rheingau, Alemanha) é um “vinho que tem tudo, toda a família dos cítricos, os cítricos fermentados, os cozidos, em compota, os secos, mas também as notas carnudas da fruta branca desidratada, a contundência das marmeladas, mas com o brilho da acidez”. E, sobretudo, um “ritmo lento, que não quer terminar” – “há poucos vinhos que poderão explicar tantas coisas em lentidão”. Este, afirma Roca, “é um vinho que vai lutar com a imortalidade”.
Por fim, o gelo, o outro extremo. As uvas novamente a aproximarem-se da morte, mas a escolher a vida. “São vinhos que já quase não existem, que já praticamente não se podem fazer de uma forma natural”. Em 2008 houve uma onda de frio, com muitos milhares de pessoas na China a terem que ser deslocadas para outras regiões. Foi nesse ano que em Pfalz, Alemanha, se colheram as uvas para o A. Christmann Konigsbacher Idig Riesling Eiswein 2009 (um vinho raro, só voltariam a fazê-lo em 2016).
Se, nos primeiros vinhos da prova, as uvas chegaram ao limite da sobrevivência frente ao fogo, aqui estiveram também perto de serem vencidas pelo gelo. E regressaram com essa história para contar. “Assim como a uva queimada se transformou em vinho, também a uva gelada se transformou em vinho, deixando a água do gelo para trás e concentrando toda a essência, que é pura poesia e é verdade, é gestão de um tempo ao limite.” São, diz Roca, vinhos que sabem que chegaram quase à morte e por isso oferecem a quem os bebe “uma viagem à imortalidade.”