As pegadas de um enólogo verdadeiramente nacional

O Senhor do Vinho que escolhemos para esta edição especial da FUGAS fez-se no Douro, revolucionou Bucelas, afirmou o Ribatejo e é hoje um ícone dos grandes vinhos do Dão. Nuno Cancela de Abreu deixa aqui num registo pessoas as experiências que viveu, as memórias que conserva e os vinhos e os companheiros que fazem parte do seu percurso.

Foto
Francisco Borba

Ao longo da minha carreira tive a sorte de me cruzar com pessoas interessantes ligadas ao vinho de uma ou de outra forma e que me marcaram pelo seu exemplo, consistência de pensamento, rigor e, sobretudo, de honestidade intelectual. Foi com eles que muito aprendi e cresci técnica e intelectualmente e a todos eles devo uma palavra de agradecimento.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ao longo da minha carreira tive a sorte de me cruzar com pessoas interessantes ligadas ao vinho de uma ou de outra forma e que me marcaram pelo seu exemplo, consistência de pensamento, rigor e, sobretudo, de honestidade intelectual. Foi com eles que muito aprendi e cresci técnica e intelectualmente e a todos eles devo uma palavra de agradecimento.

Toda a minha paixão pelo vinho começou cedo, nos tempos quentes de finais de Setembro com as vindimas em Mortágua, na propriedade que pertence á família desde há muito. Eram uns fins de férias agitados e vividos intensamente, gozados com alegria e com grande curiosidade. Foi essa curiosidade que me levou a frequentar a minha primeira formação técnica em Anadia, no curso prático de vinificação. Foi o meu primeiro contacto com o pH, acidez, teor alcoólico, antocianos e outros palavrões que nem entendi bem mas que me aguçou a vontade de saber mais.

Aproveitei bem esses tempos pela Anadia para conhecer melhor o meu tio Lopo, talvez o melhor contador de histórias que conheci até hoje. Ficava boquiaberto com as suas histórias e experiência de grande conhecedor de vinhos, com o privilégio de algumas vezes provarmos juntos verdadeiras “pomadas” como ele costumava dizer. Sempre me entusiasmou a seguir enologia para recuperar “os bons vinhos que se fazia lá em casa”. Estávamos no início dos anos setenta, quando o Dão pontuava com o Grão Vasco e o Terras Altas, vinhos que ofereciam ao meu pai pelo Natal e que se bebiam lá em casa. Também a Bairrada tinha os seus ícones como as Caves de S. João, Caves Primavera, Caves da Montanha entre outras que iam á mesa em Anadia. Ficava por aqui o meu conhecimento de vinhos.

Foto
Paulo Pimenta

Chegou o tempo de decidir o que fazer na universidade. Eramos 11 irmãos, alguns com ligações à agronomia, mas só eu acabei por ter o “bichinho” do vinho. A conversa com o pai não correu bem. Não achava que eu tivesse convicção suficiente e suspeitava que a opção por agronomia era por facilitismo, porque na altura era considerado um curso menor. Lá acabou por aceitar a minha escolha. Foi neste contexto que segui para Agronomia onde aprendi muito com o mestre e Prof. Manuel Vieira. Esmagava-nos com tanto conhecimento que, por vezes, era difícil seguir-lhe o raciocínio. Pena foi que a escassa carga horaria da cadeira de enologia não nos permitisse absorver mais da sua sabedoria.

Lembro-me bem de ter passado pela vergonha, na discussão do projeto de uma adega a construir no Douro, de faltar capacidade de armazenagem. Esqueci-me da adição de aguardente. Não perdoou e deu-me uma lição sobre vinho do Porto que ainda guardo na memória. No final acabou por me dar uma boa nota pelo meu empenho e entusiasmo, que já era por demais evidente. A turma era pequena, os colegas fantásticos e esses anos da universidade foram gloriosos com grande camaradagem e muito gozo. Todo e qualquer pretexto era perfeito para acabarmos no Calvário a beber copos.

Saí da Ajuda com a sensação que precisava de saber mais. Estávamos nos conturbados anos 80, com algumas dificuldades lá por casa, mas mesmo assim arrisquei. Pedi dinheiro emprestado e fui para Montpellier tirar a pós-graduação em Viticultura e Enologia. Fiz bem. Fui aluno do conhecido Prof. Boubals que sabia de viticultura como poucos, do Prof. Gallet, o especialista em ampelografia e um terror para todos nós, para além de muitos outros professores de grande craveira. Foi um tempo magnífico. A concentração do conhecimento na viticultura e enologia foi extraordinário. Tudo se encaixava e os temas eram complementares. Parecia fácil assimilar tanta informação. Por outro lado, Montpellier era e é uma cidade universitária com estudantes de todo o mundo, com uma vida estudantil forte que deu para curtir. O dinheiro era pouco e a imaginação tinha que funcionar para não perdermos pitada do que se passava.

Ainda em Montpellier a escrever a tese, o Prof. Boubals apresentou-me o Sr. António Rosas, da firma Ramos Pinto, que vinha sondar a minha vontade de ir trabalhar para o Douro. Pouco sabia da região mas o projeto apresentado era de tal forma ambicioso e desafiante que nem hesitei e foi um “sim” de imediato, mesmo sem saber as condições oferecidas. Foi assim que me vi na Régua a dar os primeiros passos na ADVID com o objetivo de responder às grandes dúvidas da viticultura duriense, o que não era nada fácil. Mesmo sendo o único funcionário da associação nunca me senti sozinho. O meu grande guru foi sempre o Sr. António Rosas, com quem gostei de aprender e partilhar horas de conversas interessantes e amigas. Homem de enorme sensibilidade humana, apresentava preocupações fundadas com o futuro do Douro.

Foto
Adriano Miranda

A viticultura era um buraco negro e a prática era a tradição sem qualquer base científica. A sua interpretação da viticultura e da prova de vinhos era indiscritível. Passava o conhecimento sem uma postura de catedrático. Sabia ouvir e tinha uma grande abertura à inovação e à experimentação. Foi entusiasmante participar de perto em todos os trabalhos feitos pelo João Nicolau de Almeida na procura do conhecimento das castas e de tudo o que as podia influenciar. Muitos dias passados no Bom Retiro a tirar e analisar películas da Touriga, Roriz, Tinto Cão e muitas outras, depois de as colher a muitos quilómetros de distância na Ervamoira e não só. Sinto grande nostalgia ao recordar os jantares no Bom Retiro seguidos de passeios nas vinhas para completarmos os raciocínios. Tenho bem presente a prática do Sr. António Rosas de esfarelar as folhas de algumas castas e dar-me a cheirar para fixar o tipo de aromas que marcam os seus vinhos. Que discussões imensas sobre a plantação das vinhas quando surgiu a opção da vinha ao alto e a sua mecanização… Nunca me senti sozinho, como já referi, tal era o número de colegas com quem discutia experiências e alternativas para melhorar aquela viticultura tão tradicional e cara.

A cooperação estava na ordem do dia e o entrosamento com a UTAD foi singular e frutuoso. Este trabalho conjunto foi aprofundado principalmente com o Prof. Nuno Magalhães e o Prof. Fernando Bianchi de Aguiar. O primeiro fundamentalmente na ajuda da definição das bases da viticultura como por exemplo a escolha dos porta-enxertos, conduções, tratamento dos taludes, etc. e, principalmente, o grande trabalho de seleção da nossa casta rainha, a Touriga Nacional. Foram muitas as horas de observação e controlo dos diferentes clones de forma a estruturar a informação consistente a fornecer à equipa nacional de seleção.

Desta equipa não quero deixar de lembrar o trabalho fabuloso do Prof. Antero Martins e do Prof. Luís Carneiro, a quem poucos dão a devida importância e quem muito devemos. Foi gratificante trabalhar com eles, atingindo resultados fantásticos que permitiram, entre muitos outros, recuperar a Touriga tornando-a economicamente viável. Quanto ao Prof Fernando Bianchi de Aguiar, o seu trabalho foi imprescindível nas soluções de mecanização das vinhas. Lembro-me bem da visita que fizemos às vinhas do Reno para estudarmos as soluções ali implementadas. Quantas horas de trabalho e de colheita de informação para podermos apresentar uma mecanização segura, viável e com custos substancialmente mais baixos.

Foi uma época de ouro no Douro. Foi o início da contratação de técnicos formados na UTAD e da mudança abismal que se deu na região. Não tínhamos mãos a medir nos ensaios que foram montados. Era o tempo das estatísticas e tudo passava pelo crivo do “estatisticamente significativo”. Vivi intensamente estes tempos e convivi amigavelmente com aqueles que mais entusiasmo refletiam nos avanços que íamos construindo, como o José Maria Soares Franco, Álvaro van Zeller, Jim Reader, Vasco Magalhães, Miguel Corte Real, António Agrelos, Cristiano van Zeller e muitos mais. Grandes saudades que tenho dos fim-de-tarde na Quinta do Noval, com o sol a pôr-se no Douro enquanto bebíamos fantásticos Portos com aquelas amêndoas de sabor único, passadas por manteiga com sal e pimenta.

Foto
Adriano Miranda

Um anúncio do Expresso mudou mais uma vez a minha vida. Respondi e fui abraçar o projeto da Quinta da Romeira em Bucelas. De fácil não teve nada e também aqui comecei sozinho. Com os solos altamente calcários e pobres a somar à voracidade dos coelhos que destruíram mais de metade dos bacelos plantados no primeiro ano, fui completamente posto à prova. Acabei por inventar umas redes de proteção e lá consegui ultrapassar o problema. A adega foi construída e nasceu o primeiro vinho da casta Arinto, o Prova Régia. Foi um dia especial o seu lançamento depois de tanta luta.

As dificuldades ainda não tinham acabado. Era preciso explicar o que era Bucelas e a casta Arinto. A Vinalda, pela mão do Sr. José Casais, acreditou e com grande esforço conjunto conseguimos pôr este vinho na boca dos apreciadores. Só alguns anos depois fiz o Morgado de Stª Catarina que deu que falar. Com 100% de castas brancas plantadas e o projeto a arrancar levo com o fenómeno do “paradoxo francês” em que os brancos caem em desgraça a favor dos tintos muito mais “amigos da saúde”. A venda ainda se tornou mais difícil. Na vinha, entretanto, arrancámos com a seleção do Arinto, mais uma vez coordenada pela equipa da seleção, da qual resultaram os clones que hoje são plantados por todo o país. Nas vinhas velhas a média de produção era de 200gr por pé. No final da seleção, os clones eleitos produziam entre 2 e 3kg por cepa sem perca de qualidade. Esta minha forte ligação ao Arinto ficou para sempre. Não bastavam as dificuldades referidas quando me deram um “murro no estômago” no dia em que os buldózeres destruíram cerca de 6 hectares de vinha para a construção da CREL, dividindo a vinha a meio. Chorei nesse dia.

Na segunda fase da empresa, depois da sua venda, coordenei os múltiplos investimentos nas vinhas e adegas da Quinta da Cardo em Figueira de Castelo Rodrigo, da Quinta da Cova da Barca em Freixo de Espada à Cinta, que muito gostei, e da Herdade da Farizoa em Elvas. Acho que bati o record de quilómetros feitos em estrada. Fiquei vacinado contra projetistas e empreiteiros. Sobrevivi, completei os projetos mas senti que, depois de 12 anos, estava na hora de outros desafios e rumei ao Ribatejo para ajudar a renovar o projeto da Quinta da Alorna, onde contribui para a reorganização da empresa, reorientação dos perfis dos vinhos e construção de uma estratégia comercial condizente com realidade. Foi rica a experiência de trabalhar os grandes volumes, lutar pela marca e por uma região mal-amada. As recusas por parte dos distribuidores e dos grandes clientes foram repetitivas mas conseguimos levar o projeto a bom porto.

Paralelamente a todo este trabalho, tinha iniciado em 1991, o meu projeto pessoal das Boas Quintas no Dão, ao qual dedicava noites e muitos fins-de-semana. Chegado a 2010 com algum cansaço, decidi dedicar-me de corpo inteiro a esse meu projeto.

Naturalmente, convidei para me acompanhar o Rui Brandão, com o qual tinha trabalhado anteriormente, e que se tornou meu sócio e responsável pelas matérias menos enológicas ou seja os “deves e haveres”, com grande profissionalismo e com uma amizade inexcedível, sem o que a empresa nunca teria atingido o ponto em que nos encontramos.

Foto
Pedro Cunha

De 1991 a 2010 foi um pequeno projeto de vinho de Quinta. Desde 2010 o projeto desenvolveu-se, alargou-se a outras regiões, melhorando assim a oferta. Com uma equipa fantástica e muito coesa onde destaco os meus braços direitos José Fonseca, que me acompanha desde o primeiro dia e a sua irmã Fátima, conseguimos atingir neste ano de 2017 a comercialização de 900.000 garrafas em que 80% são dirigidas para exportação, de acordo com a estratégia há muito definida.

Neste meu projeto tenho tido a liberdade de criar vinhos como os Encruzados, os Arintos e os tintos que têm a Touriga como base onde me revejo intensamente.

Do ponto de vista pessoal e para quem me conhece sabe como adoro a enologia, realizo-me com grande dedicação até com prejuízo da vivência familiar, principalmente no caso da Maria João, minha mulher, que tem sido o meu grande amparo e farol e que sempre me acompanhou nas opções tomadas nos bons e maus momentos. Para a compensar cedi ao seu pedido de fazer um Colheita Tardia que continuamos a beber juntos com enorme prazer. Sendo reservado por natureza, não me é confortável a exposição pública e muito menos sou capaz de criar factos, o que sinto que me prejudica em termos comunicacionais como enólogo. Pensar e agir de acordo com os meus princípios e maneira de estar na vida foi herança de ouro que o meu pai me deixou.