O Panteão e as receitas dos monumentos
Nunca houve uma real vontade política em repensar a estratégia para o património cultural português.
A recente polémica em torno do aluguer do espaço central do Panteão Nacional é justificada. Qualquer evento realizado num edifício público onde se encontram os restos mortais de personagens ilustres da nossa história e da nossa cultura deve ser autorizado apenas em caso de justificado interesse público e natureza não conflituante com o seu valor simbólico. É para isso que existe um regulamento aprovado que prevê a rejeição de pedidos de utilização quando essas premissas não estão asseguradas. Mas uma questão de critérios objectivos na gestão da coisa pública e de bom senso no respeito pelos valores sociais inerentes parece estar tomar contornos ideológicos e políticos que podem vir a afectar de forma negativa a sustentabilidade da política patrimonial nacional.
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A recente polémica em torno do aluguer do espaço central do Panteão Nacional é justificada. Qualquer evento realizado num edifício público onde se encontram os restos mortais de personagens ilustres da nossa história e da nossa cultura deve ser autorizado apenas em caso de justificado interesse público e natureza não conflituante com o seu valor simbólico. É para isso que existe um regulamento aprovado que prevê a rejeição de pedidos de utilização quando essas premissas não estão asseguradas. Mas uma questão de critérios objectivos na gestão da coisa pública e de bom senso no respeito pelos valores sociais inerentes parece estar tomar contornos ideológicos e políticos que podem vir a afectar de forma negativa a sustentabilidade da política patrimonial nacional.
Importa, portanto, enquadrar devidamente esta questão. Começando pelo princípio, o Orçamento do Estado para a Cultura há muito que se mantém abaixo dos níveis mínimos requeridos pelas políticas culturais (o tão desejado 1% do OE continua uma miragem). O sector do património cultural (maioritariamente representado pela DGPC) é cada vez mais chamado a compensar o reduzido financiamento directo do OE, através de receitas próprias. Estas recaem sobretudo nas receitas dos chamados bens culturais afectos ou “serviços dependentes”, num total de 23 museus e monumentos sob a sua gestão directa, distribuídos pelo país e que têm, por regra, cinco tipos de receita possível: bilheteira, restauração, loja, direitos de imagem e aluguer de espaços para eventos. Ora este último, não sendo o mais significativo do ponto de vista quantitativo (até porque a própria natureza dos edifícios não o permite), é, no entanto, muito importante, pela capacidade de angariar verbas consideráveis em contextos muitas vezes de promoção da região, do próprio monumento ou de estratégias de mecenato.
Trata-se de uma prática comum em toda a Europa e inclui-se numa política de gestão comercial dos monumentos que, a par da sua abertura à visita e usufruto público enquanto importantes veículos educacionais e identitários (exposições, concertos, visitas escolares, etc.), reconhece o importante valor comercial da sua imagem, que pode ser utilizado a favor do próprio edifício ou estrutura (filmagens, publicações, eventos). Assim se consegue muitas vezes compensar a sazonalidade turística ou uma geografia periférica. Foi aliás neste sentido que, por exemplo, em 2015, a principal instituição patrimonial inglesa foi dividida em duas entidades distintas, mas complementares, separando a actividade de gestão comercial e valorização dos equipamentos culturais (English Heritage) e a responsabilidade normativa e boas práticas do sector (Historic England).
A questão das receitas dos monumentos ou, melhor dizendo, do financiamento das políticas patrimoniais, é antiga e desde pelo menos 1975, Ano Europeu do Património Arquitectónico, que se discute a sustentabilidade financeira das instituições patrimoniais, tendo o Conselho da Europa dedicado vários encontros ao tema da economia do património e o ICOMOS criado uma secção própria sobre o assunto. A razão era simples: o conceito patrimonial alargava-se, os inventários iam registando cada vez mais bens culturais dignos de protecção e as classificações (protecção legal) ampliaram o universo patrimonial sob responsabilidade directa ou indirecta do Estado. Dos estudos de impacto económico e social, ao mecenato, às cartas de risco, vários foram os mecanismos estudados ou desenvolvidos para incentivar o investimento público, o financiamento privado ou a selecção criteriosa de prioridades na alocação de verbas cada vez mais escassas face a um universo cada vez maior.
Em alguns casos, as estratégias passaram por encontrar fontes alternativas de financiamento (caso da National Lottery em Inglaterra), alienar bens culturais considerados menores (caso do governo Berlusconi em Itália) ou ainda concessionar bens culturais a uma gestão privada (caso do Palácio de Schönbrunn na Áustria). Atento aos novos modelos de gestão patrimonial na Europa, Portugal foi tentando replicar posteriormente soluções semelhantes: parte da receita da lotaria e dos jogos sociais alimenta o Fundo de Fomento Cultural, alguns imóveis históricos foram alienados por sucessivos governos (os défices...) e foram criadas novas instituições de capital público mas com gestão autónoma (caso da Parques de Sintra – Monte da Lua, SA. e da EGEAC).
Porém, ao longo de sucessivos governos nunca se verificou uma real vontade política em repensar a estratégia para o património cultural português que incluísse um novo modelo de financiamento da principal instituição patrimonial em Portugal. Pelo contrário, apenas se exige que a DGPC seja capaz de angariar mais receita própria para aliviar o contributo anual do OE. Assim se volta às receitas dos monumentos e, como diz o ditado popular: quando o cobertor é curto, cobrem-se as orelhas e destapam-se os pés...
A questão do aluguer de espaço para eventos no Panteão não se resolve com restrições ou demissões, mas sim com coragem política da tutela e do governo para definir um novo modelo de financiamento da DGPC que se adapte aos desafios das políticas patrimoniais actuais. Trata-se de repensar um modelo institucional, herdeiro de uma complexa genealogia que concentrou serviços e competências (DGEMN, IPM, IPA e Igespar) num processo de simplificação da orgânica da administração pública, e que juntou monumentos, museus, arqueologia e serviços patrimoniais numa “geringonça” patrimonial. Pelo caminho ficou o seu modelo estratégico (importante reflexão iniciada no mandato de Nuno Vassalo e Silva mas não concluída) e o seu modelo de financiamento, que passa por um reforço da sua dotação orçamental e pela necessária autonomia dos equipamentos culturais, com uma gestão responsabilizadora assente em programas culturais e comerciais com resultados mensuráveis e previamente acordados com a tutela, mas com a urgente capacidade em poder gerir autonomamente as receitas próprias ou uma parte significativa destas.
Em 2018 comemoraremos novamente o Ano Europeu do Património Arquitectónico. Seria uma excelente oportunidade para que a necessária estratégia nacional para o património possa finalmente avançar.