“O presente é o lugar onde vivemos, o passado o lugar onde sonhamos”
No Porto/Post/Doc, um conjunto de cineastas, investigadores e arquivistas discutiu o tema Arquivo e Pós-Memória. Trata-se de apontar uma lanterna para os “cantos cegos” dos arquivos e para as imagens em falta para reconstruir a verdade que eles (não) mostram
Nestes tempos de “pós-verdade” e fake news, não é descabido vir a lume falar da “pós-memória” como o Porto/Post/Doc fez este ano na sua programação – mas é preciso esclarecer que este conceito de “pós-memória”, tal como discutido no painel de debates Forum do Real que teve lugar na quinta-feira, tem muito mais a ver com a procura da verdade do que exactamente com a sua obfuscação. Bem pelo contrário: ao longo das intervenções de investigadores, cineastas, arquivistas, o tema central do festival – Arquivo e Pós-Memória – foi declinado repetidamente como uma busca da verdade por entre aquilo que as imagens de época mostram mas também escondem.
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Nestes tempos de “pós-verdade” e fake news, não é descabido vir a lume falar da “pós-memória” como o Porto/Post/Doc fez este ano na sua programação – mas é preciso esclarecer que este conceito de “pós-memória”, tal como discutido no painel de debates Forum do Real que teve lugar na quinta-feira, tem muito mais a ver com a procura da verdade do que exactamente com a sua obfuscação. Bem pelo contrário: ao longo das intervenções de investigadores, cineastas, arquivistas, o tema central do festival – Arquivo e Pós-Memória – foi declinado repetidamente como uma busca da verdade por entre aquilo que as imagens de época mostram mas também escondem.
E ao trabalhar sobre materiais de arquivo, o cinema — e, de modo bem mais lato, as artes como um todo — funciona ele próprio como uma investigação, e como uma procura daquilo que um novo olhar sobre as memórias nos pode dizer sobre o passado. Nas palavras do escritor irlandês John Banville citadas pelo tradutor e escritor Paulo Faria num dos painéis, “o presente é o lugar onde vivemos, o passado é o lugar onde sonhamos”. Afirmação que, de modo particularmente incisivo, Faria, autor de Estranha Guerra de Uso Comum, romance inspirado pela vivência do pai na guerra colonial, completou: “esse passado, muitas vezes, não é o nosso passado”, mas sim o passado dos pais, dos familiares, dos amigos, dos mentores.
Pela primeira vez nos quatro anos de existência do festival portuense, o Forum do Real transferiu-se de armas e bagagens do café do Rivoli para a Aula Magna da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, numa mudança que faz sentido face à ligação à investigação e à academia que o programa sempre manifestou (ainda mais este ano, face à sua colaboração com o programa pan-europeu Memoirs do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).
Ao longo do dia, o tema central declinou-se em três movimentos, do geral para o particular, articulado com um pequeno ciclo de filmes a decorrer entre sexta-feira e domingo, e com a presença em momentos específicos de alguns dos seus autores – mais precisamente as realizadoras Filipa César e Raquel Schefer (cujos filmes, a longa Spell Reel e a curta Avó (Muidumbe), são exibidas em sessão dupla esta sexta-feira às 18h30 no Rivoli) e o argentino Diego Schipani, produtor de Albertina Carri, realizadora cuja obra questiona repetidamente a construção e repercussão das memórias do regime militar argentino (o festival exibe Cuatreros, domingo 3 às 16h30 no Rivoli).
No primeiro dos três painéis, debateu-se a própria designação do conceito de pós-memória e da sua relação com o arquivo, sob a moderação do programador António Pinto Ribeiro. Tiago Baptista, director do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, falou da importância do processo de preservação para permitir a devolução das imagens a um público mais lato possível, e a investigadora Maria do Carmo Piçarra utilizou a sua própria experiência como jornalista transformada em investigadora para sublinhar a necessidade de manter os arquivos acessíveis como forma de os manter vivos, relevantes, intervenientes. Inês Sapeta Dias, programadora do Arquivo Municipal de Lisboa, usou o programa de filmes de família Traça como exemplo das possibilidades de releitura e de reconstrução possibilitados pela existência de colecções de filmes amadores e caseiros e pela intervenção sobre esses materiais por artistas de múltiplas áreas.
Uma das definições centrais na intervenção de Inês Sapeta Dias regressou durante os vários painéis: a ideia dos “cantos cegos”, ou tudo aquilo que um filme de época não mostra, por deliberação de quem filma ou monta ou por impossibilidade prática do material o permitir. Foi por aí que o professor e investigador espanhol Vicente Sánchez Biosca, pegando num excerto do filme de Rithy Panh A Imagem que Falta (2013), sintetizou a sua intervenção: a “pós-memória” como um processo que, simultaneamente, implica a reconstrução de algo que não ficou forçosamente registado no arquivo – ou seja, a busca daquilo que, literalmente, é uma imagem em falta – e a apropriação pessoal, por cada indivíduo, de um corpo de imagens partilhadas à qual cada um dará uma experiência ou um ângulo pessoal.
Foi por esse lado de “aplicação prática” do conceito que os dois restantes painéis se dirigiram. No segundo, moderado pela professora Margarida Calafate Ribeiro e explorando “Pós-Memória e Ditadura”, Diego Schipani, o crítico argentino Jorge la Ferla e o realizador José Miguel Ribeiro (cuja curta animada Estilhaços, exibida este sábado, dia 2 de Dezembro, às 21h no Rivoli, faz parte do programa de filmes) fizeram essa ligação à história pessoal, com a arte como modo de abordar temas que são tabus familiares, históricos ou pessoais. No terceiro, moderado pelo professor António Sousa Ribeiro sob o tema “Pós-Memória e Colonialismo”, coube à professora, investigadora e jornalista Raquel Ribeiro falar do modo como a presença cubana em Angola após a retirada de Portugal em 1975 seguiu em Cuba o mesmo percurso do olhar sobre o período colonial em Portugal no último quarto de século – a de um “tabu” lentamente quebrado por gerações posteriores que olham para essas questões socialmente fracturantes com outra liberdade.
Paulo Faria, Filipa César e Raquel Scheffer, tal como Raquel Ribeiro filhos da geração que cumpriu serviço militar durante a guerra colonial, exploraram o modo como as criações artísticas actuais, da literatura ao cinema passando pelas artes plásticas, se apropriaram dessas memórias passadas não tanto por linhagem familiar como através de arquivos (fotografias, filmes caseiros, arquivos estatais), para explorar o reverso dos imaginários coloniais e activistas da década de 1960. Como quem tenta reconstruir o que se perdeu através das ausências naquilo que ficou guardado.