Como se faz vinho de talha no século XXI?
Segundo a tradição, só depois do dia de São Martinho, 11 de Novembro, é que o vinho pode sair das talhas. Fomos ao Alentejo para ver como se faz hoje vinho (quase) como os romanos faziam.
A cabeça do homem aparece na abertura da talha, ele enche os pulmões de ar e volta a desaparecer para o interior do grande pote de barro. Vir cá fora respirar é essencial para quem está a fazer este trabalho de tirar as películas das uvas que ficaram no fundo da talha depois de retirado o vinho. De cada vez que vai ao fundo, o homem regressa acima com mais um balde cheio.
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A cabeça do homem aparece na abertura da talha, ele enche os pulmões de ar e volta a desaparecer para o interior do grande pote de barro. Vir cá fora respirar é essencial para quem está a fazer este trabalho de tirar as películas das uvas que ficaram no fundo da talha depois de retirado o vinho. De cada vez que vai ao fundo, o homem regressa acima com mais um balde cheio.
O mundo do vinho tem evoluído muito. Hoje há formas sofisticadíssimas de o fazer e, no entanto, no meio do Alentejo há quem repita gestos que se fazem nesta região há dois mil anos. O vinho da talha, como os romanos faziam, está na moda, em Portugal e no mundo. Fomos à Casa Agrícola Alexandre Relvas, em São Miguel de Machede, para ver como se tira o vinho das talhas – algo que, diz a tradição, só se pode fazer depois do 11 de Novembro, dia de São Martinho.
“Esta é a terceira colheita em que fazemos vinho de talha”, conta Alexandre Relvas (filho). “Decidimos fazê-lo porque é um produto tradicional da região, foi desta forma que os vinhos começaram a ser feitos no Alentejo há dois mil anos e faz sentido ir ao encontro destas tradições antigas.” (o Art.Terra Amphora não pode ser um vinho certificado como da talha apenas porque São Miguel de Machete está fora da região de denominação de origem Alentejo).
Para isso foi preciso aprender. Ou, para quem tem formação de enologia moderna, talvez seja mais correcto dizer desaprender. “O maior desafio é conseguir não fazer nada”, reconhece Alexandre Relvas. “A tentação de intervir é muito grande. Estes são vinhos com uma intervenção mínima e características um pouco diferentes. Têm uma acidez volátil mais alta, algumas notas de oxidação, são vinhos que têm que ser explicados para serem compreendidos. São vinhos de nicho.”
Nuno Franco, o enólogo da Casa Agrícola, conta que um dos maiores desafios foi encontrar as talhas. Apesar de a produção de vinho nunca ter sido interrompida e de as talhas fazerem parte da paisagem de muitas tabernas tradicionais alentejanas, durante muito tempo o vinho da talha não foi valorizado.
Uma das consequências desse desinteresse foi o desaparecimento de imensas talhas, algumas destruídas pelos proprietários. A ironia é que hoje são os grandes produtores que andam à procura de talhas e já ninguém as fabrica. “Procurámos em vários produtores, alguns não queriam vender”, recorda Nuno Franco, “encontrámos depois em casas particulares, num comerciante de velharias”.
A seguir foi preciso pezgar, ou seja, colocar o pez no interior das talhas, garantindo que estas mantêm a porosidade necessária para haver micro-oxigenação. A técnica, que já poucos dominam, consiste em revestir o interior com uma mistura líquida feita à base de resina de pinheiro (o pez) ou cera de abelha.
Para fazerem o vinho, perguntaram a quem nunca tinha deixado de o fazer. “Decidimos usar castas autóctones da região. Fazia sentido, dado que estamos a falar de vinhos que se faziam no passado e queríamos usar o que havia na altura”, explica o enólogo.
Assim, para o tinto utilizam um terço de Aragonês, que, diz Alexandre, contribui para a estrutura e “os aromas mais convencionais”, um terço de Trincadeira, que dá “a elegância”, e um terço de Moreto, uma casta com pouco grau e pouca exuberância mas que traz “a tipicidade, os aromas mais rústicos”.
As uvas são desengaçadas “para evitar o excesso de aromas herbáceos” (a decisão de tirar o engaço, ou seja, a parte lenhosa, depende de cada produtor e cada região, havendo quem deixe pelo menos parte e quem o retire totalmente), depois esmagadas e por fim colocadas dentro da talha para fermentar.
“A nossa intervenção no processo é diminuta”, sublinha Nuno Franco. “Não temos maneira de fazer grande controlo de temperatura, por vezes pomos umas serapilheiras geladas à volta, mas são controlos muito pouco eficientes. Este ano foi ainda mais complicado porque vindimámos mais cedo e as temperaturas estavam mais altas.”
Durante a fermentação (entre 8 a 15 dias), o que se devia fazer era nada. “Quando fui tentar perceber como é que os antigos faziam, explicaram-me que deixavam as uvas até ao dia de São Martinho e nunca provavam”, explica Nuno. E confessa: “Nós aqui, durante a fase de fermentação alcoólica, provamos todos os dias.” Não resistem a tentar perceber como é que o vinho está a evoluir.
Depois dessa fase, fecham as talhas com uma protecção de plástico. “Havia quem pusesse azeite no topo para proteger o vinho, mas como o azeite ao oxidar rança, nós tivemos medo de contaminar o vinho”. No entanto, há sempre alguma entrada de oxigénio e, logo, alguma oxidação.
Isso nota-se particularmente, no caso dos brancos, na cor, muito mais dourada. “Um branco de hoje, muito tecnológico, muito protegido, sem oxidação nenhuma, em contacto com o ar, vai evoluir muito rápido. Nestes vinhos, o que tinha a evoluir já evoluiu na talha.”
Durante a fase de fermentação é preciso mexer a manta (a parte sólida formada pelas películas e, eventualmente, o engaço) dentro da talha pelo menos duas vezes ao dia. Sobe-se para um escadote ou para a borda da talha e empurra-se a manta para baixo, uma tarefa pesada mas essencial para evitar que a talha rebente pela pressão do gás carbónio que se vai acumular no interior, empurrando a massa para cima até ela fazer um efeito de rolha. E quem faz vinho de talha sabe como pode ser impressionante assistir ao rebentar de uma delas.
Terminada a fermentação alcoólica, quando o gás se dissipa, as massas caem naturalmente até ao fundo, onde vão servir de filtro quando se extrair o vinho, após cerca de mais dois meses de maceração (período que aumentou este ano, dado que a vindima teve que ser antecipada devido ao calor).
Tradicionalmente, depois do 11 de Novembro, o vinho estava pronto a consumir e bebia-se directo da talha, colocando uma torneira de madeira no batoque, a rolha que fecha um buraco na parte inferior. Filtrado pelas massas, chegava inicialmente turvo e depois, gradualmente, mais límpido.
O que acontece na Casa Agrícola Alexandre Relvas é que o vinho é extraído por cima, com a ajuda de uma mangueira e faz-se a trasfega para talhas mais pequenas, onde é colocado em função do perfil obtido em cada talha grande e onde fica a estagiar. Ao contrário do que acontece nas produções caseiras, que não incluem a prensagem das massas, aqui essa é feita, usando uma prensa vertical antiga. No final, faz-se o blend dos vários perfis.
“Estes são vinhos diferentes”, conclui Alexandre Relvas. “Num total de seis milhões de garrafas que fazemos, só 15 mil são de talha, mas há uma procura grande, os críticos internacionais estão a pontuar muito bem (o Art.Terra Amphora branco, de Arinto, teve 91 pontos na Wine Enthusiast). E acredito que as pessoas estão cada vez mais abertas a provar coisas novas.”.