Belmiro, o meu vizinho de Tuias
Naquela altura, não havia nada na Estrada Larga, a maior de Tuias, freguesia do Marco de Canavezes. Antes de ser transformada na Avenida Futebol Clube do Porto, havia só a Adega Cooperativa, o telefone público da Quinhas, com uma mercearia ao lado, a loja de tecidos da Florindinha e a Padaria Moreira, onde se ia buscar a sêmea. E ainda o alfaiate, a quem toda a gente chamava “Escadote”, por ser muito alto.
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Naquela altura, não havia nada na Estrada Larga, a maior de Tuias, freguesia do Marco de Canavezes. Antes de ser transformada na Avenida Futebol Clube do Porto, havia só a Adega Cooperativa, o telefone público da Quinhas, com uma mercearia ao lado, a loja de tecidos da Florindinha e a Padaria Moreira, onde se ia buscar a sêmea. E ainda o alfaiate, a quem toda a gente chamava “Escadote”, por ser muito alto.
Entre a casa do meu bisavô, conhecido apenas pelo “Brigadeiro” só havia a Olguinha, que falava aos gritos e a casa dos Azevedos. A Casa de Ambrães, que cresceu a partir da casa pequena dos pais, que o engenheiro nunca quis mandar abaixo (até a reconstruiu) é na rua com o nome do meu bisavô, muito menos importante do que ele, mas respeitado na terra. Como ele também passou a ser, claro.
Não havia diferenças entre os miúdos dali. O Belmiro, lembra-se a minha tia (com quem ele uma vez, em brincadeira, disse ter querido namorar), andava com o Zeca, o Afonso e o Chico a jogarem à carica no meio da Estrada Larga, onde só desertavam de longe a longe, quando passava um carro. O meu pai, um bocado mais novo, juntava-se a eles nas “férias grandes” e na Páscoa, vindo do Porto. O Belmiro ficava quase sempre a assistir. Só ia a jogo quando queria. Talvez os analistas psicológicos dos homens de sucesso consigam desenvolver este comportamento. Seria aquilo fácil demais para ele?
Doces não existiam, claro. Eram os pomares, as amoras silvestres no caminho para o cemitério (que passava na rua de Ambrães, a casa dos Azevedos). Ou então, precisavam de subir até aos Lenteirões ou “Doces do Freixo”, comprar biscoitos ou cavacas. Diversões só mesmo a bicicleta e os livros que se arranjassem.
Como é que um miúdo numa freguesia sem nada construiu tanta coisa? De um lado tinha um pinhal (agora a zona industrial), do outro o Monte de Eiras. Nem a terra era extraordinariamente boa para o cultivo só dava para hortas e alguns animais para consumo caseiro e vinhas. Não eram grandes produções nem havia exemplos de “empreendedorismo”. Havia o campo, a igreja e a escola. E o trabalho.
O pai, carpinteiro, fez as portadas de madeira mais bonitas de uma casa nova mais no fim da Estrada Larga. Ainda hoje as acho bonitas, porque têm uns corações desenhados. Só fui uma vez a casa do Belmiro, porque sou amiga da Joana, uma sobrinha com os mesmos olhos azuis de família. Mas isso já são outros tempos. Nos tempos da infância, as crianças andavam na rua e nos montes. Há melhor recreio do que esse?
Os Azevedos não eram ricos mas tinham um porte aristocrático. E ainda têm: rostos vincados, olhos penetrantes e semblante de quem não deve nada a vida. Têm “boa pinta”, como se costuma dizer. Talvez essas feições bonitas e o olhar claro tenham sido uma mais valia no mundo agreste dos negócios, não menos agreste que o dos campos.
Tal como Belmiro, também é em Tuias que vou buscar as minhas forças e equilibrar o meu destino. Percebo-o melhor do que ninguém a força que encontra ali. Não tem a nobreza do Douro, mas transmite uma paz que só quem ama muito a própria terra consegue perceber. Depois, há a simplicidade do marcoenses, pessoas de trabalho e de valores morais. Que não falam do que não sabem, mas do que sabem falam cheios de certeza. Às vezes, até dão vontade de rir. Como se tivessem nascido com a sabedoria necessária para andar em frente.
Imagino que uma das imagens que o Belmiro melhor conheça seja a linha do Monte de Eiras (no fundo um conjunto de montes e colinas), com um ponto mais alto. protuberância natural quase ao jeito de um vulcão, com pedras grandes e distintas. A olhar para essa paisagem deve ter traçado os seus sonhos e feito as contas com o tempo e o destino como empresário e homem de família. Com uma força que as pessoas de Tuias jamais irão esquecer. Para nós, o Belmiro era nosso, como nós dele. E continuará a ser. Ele e a Carmen Miranda são o nosso orgulho, em constelações diferentes mas com o mesmo brilho. Ela foi uma estrela de Hollywood, e ele “por acaso”, só foi um dos homens mais ricos do mundo. Se era arrogante, não foi por ser rico, mas por saber o que queria. Sem medo de si próprio. O que acabava por não meter medo aos outros. Dizia o que pensava e bem lhe apetecia. Tuias está de luto.