Redescobrir JMB, uma sigla de ouro
José Mário Branco, no seu percurso criativo, trouxe à música e à arte portuguesas algo único.
Amanhã, 1 de Dezembro, dia da restauração da independência de Portugal, voltarão às lojas de discos, também restaurados, os oito álbuns editados por José Mário Branco (JMB). Isto no ano em que ele completou 75 anos de vida (em Maio) e 50 de carreira. Não, não é ainda tempo para ver tudo isto como um legado artístico de outro tempo; pelo contrário, a inquietação e interrogações que impregnam estes discos são deste tempo, de um “futuro presente”, como diz uma das suas canções.
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Amanhã, 1 de Dezembro, dia da restauração da independência de Portugal, voltarão às lojas de discos, também restaurados, os oito álbuns editados por José Mário Branco (JMB). Isto no ano em que ele completou 75 anos de vida (em Maio) e 50 de carreira. Não, não é ainda tempo para ver tudo isto como um legado artístico de outro tempo; pelo contrário, a inquietação e interrogações que impregnam estes discos são deste tempo, de um “futuro presente”, como diz uma das suas canções.
JMB, no seu percurso criativo, trouxe à música e à arte portuguesas algo único, que vai muito para além da sua obra em nome próprio e se estende a muitas obras alheias, passando pelo cinema e pelo teatro. Os que quiserem conhecê-lo melhor (na música, na vida, na política, na militância social) têm à disposição dois úteis guias: o livro biográfico O Canto da Inquietação, de Octávio Fonseca Silva (ed. Mundo da Canção, 2000) e o DVD Mudar de Vida, de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro (ed. Alambique, 2016), que inclui vídeos e imagens inéditas, sobretudo do seu exílio em Paris. Mas a audição dos discos, de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971) até Resistir é Vencer (2004), é essencial para entender os contornos do som e das ambiências que trouxeram à música popular portuguesa dos anos 1970 novos paradigmas, como a importância da encenação sonora, num tempo em que ela ameaçava estiolar na balada. Não se tratava de recorrer a guitarras eléctricas (o ié-ié já o fazia) ou a orquestrações (também as havia na chamada música ligeira), mas de usar recursos vindos de vários géneros musicais (o cancioneiro popular, a arte coral, a clássica, o rock, o jazz, a música francesa ou a anglo-saxónica) para dar à música portuguesa uma nova atmosfera. E foi isso que ele fez, e até hoje o distinguiu, não só nas suas próprias obras, mas em trabalhos de outros músicos, como José Afonso (Cantigas do Maio e Venham mais Cinco têm a sua marca).
Voltando a Portugal: também pelos trabalhos de JMB passa alguma da nossa melhor poesia. E ele começou precisamente, em 1967, com D. Dinis (no EP Seis Cantigas de Amigo), cantando depois Luís de Camões, Natália Correia, Alexandre O’Neill, Sophia de Mello Breyner, Antero de Quental, Ruy Belo, mas também Sérgio Godinho, José Afonso, Bertolt Brecht, Manuela de Freitas ou o poeta popular António Joaquim Lança, pastor analfabeto de Peroguarda (terra cara a Michel Giacometti, outra das fortes influências de JMB) que recitava de cor os seus poemas; A morte nunca existiu, gravado por JMB em 1972, no álbum Margem de Certa Maneira, testemunha a sua notável arte. Havia ainda outros poetas, num projecto de disco que não chegou a sê-lo (Crónicas, seria o título), porque a censura o chumbou, impondo-lhe inúmeros cortes. Era um trabalho feito de parceria com Álvaro Guerra, sobre textos dele próprio, de Camões, Gil Vicente ou Sá de Miranda, entre outros.
E há, a par disto, os seus trabalhos mais politicamente engajados, como a Ronda do Soldadinho (um single contra a guerra colonial, editado no exílio em Paris, em 1969) ou os que gravou com o GAC, entre 1975 e 1977. Mas se estes já foram objecto de reedição própria, e integral (embora se encontrem hoje esgotados), a Ronda permanece inédita em CD, bem como o EP Marchas Populares (1978) ou as bandas sonoras para filmes que chegaram a ser editadas em vinil: o single Gente do Norte (1978) o EP O Ladrão do Pão (1979), ou o LP A Confederação (1978), de parceria com Fausto Bordalo Dias e Sérgio Godinho (parceria que ele retomaria mais tarde, em 2009, no projecto Três Cantos). Isto para não falar em canções dispersas, como Canção de Jackson, do disco colectivo Liberez Angela Davis Tout de Suite, editado pela Chant du Monde em 1971. Tudo isto merecerá, dependendo do empenho dos editores, um esforço suplementar de edição, para que tais trabalhos não se percam nas prateleiras do esquecimento.
Do resto, que é tanto, há as suas músicas para teatro e cinema (ele foi actor em ambos, chegando a interpretar até Mouzinho de Albuquerque no filme Aqui d’El Rei, de António-Pedro Vasconcelos) ou os trabalhos com grupos e cantores: José Afonso, José Jorge Letria, Carlos do Carmo, Janita Salomé, Amélia Muge, Gaiteiros de Lisboa, Canto Nono, Camané ou, mais recentemente, Samuel e Nathalie. Há ainda essa porta, que permanece aberta, para que um dia surja um novo disco em seu nome. JMB é, na música, uma sigla de ouro. E assim continua.