Reflexão sobre a cobardia

As histórias mais antigas e mais repetidas do mundo: homens e mulheres, o que se passa entre eles, as maneiras como eles explicam o que se passa entre eles — tudo isto é magnífico.

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Hong Sang-soo filma que se desunha (esta é a 21ª longa-metragem em 21 anos) e filma cada vez mais depressa (este é o quarto filme desde o último dele que por cá se tinha estreado, Sítio Certo, História Errada, de 2015). Conseguir acompanhar este ritmo exige alguma ginástica e muitos expedientes ao espectador “hong-ófilo”, até porque a distribuição portuguesa ainda não “sistematizou” a sua relação com o cinema dele — O Dia Seguinte é apenas o quarto filme de Hong mostrado comercialmente em Portugal e, como vimos, ficou um “buraco” de três filmes entre este e a estreia precedente.

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Hong Sang-soo filma que se desunha (esta é a 21ª longa-metragem em 21 anos) e filma cada vez mais depressa (este é o quarto filme desde o último dele que por cá se tinha estreado, Sítio Certo, História Errada, de 2015). Conseguir acompanhar este ritmo exige alguma ginástica e muitos expedientes ao espectador “hong-ófilo”, até porque a distribuição portuguesa ainda não “sistematizou” a sua relação com o cinema dele — O Dia Seguinte é apenas o quarto filme de Hong mostrado comercialmente em Portugal e, como vimos, ficou um “buraco” de três filmes entre este e a estreia precedente.

Se insistimos nisto é porque esse acompanhamento regular é uma necessidade quando se trata dos filmes do coreano, porque ninguém como ele hoje encara a obra como uma sucessão de variações, às vezes minimais, em torno dos mesmos temas e dos mesmos motivos, na prática como um longo filme a que cada novo título vem acrescentar alguma coisa mas nunca “interromper” ou “mudar”. Razão, também, por que não faz sentido distinguir entre Hongs “maiores” ou “menores”, porque eles são sempre “a mesma coisa” e porque integram uma “coisa” maior, que é o conjunto.

Pouco importa, portanto, que O Dia Seguinte tenha sido recebido internacionalmente com menos fragor do que outros Hongs recentes. O prazer é o mesmo de sempre, o prazer de uma elegância despojada, cada vez mais reduzida ao essencial (damos um doce a quem encontrar um grama de “gordura” em O Dia Seguinte, uma sequência, um plano, um segundo de filme que esteja lá para encher), e que existe para se ver e para se ouvir — o sentido do filme não existe no seu relato a posteriori, os temas do filme não propiciam nenhuma discussão lancinante sobre os grandes temas que cativam o pensamento contemporâneo, e tudo é questão de matéria e materialidade, aqueles actores, aqueles diálogos, aqueles cenários, aquelas situações filmadas naqueles enquadramentos. É um cinema quase casmurro na sua obstinação ensimesmada e na sua aparente futilidade, e isso é o que ele tem de mais maravilhoso e, nos dias que correm, de quase único.

E portanto lá vamos nós, em O Dia Seguinte, para as histórias mais antigas e mais repetidas do mundo: homens e mulheres, o que se passa entre eles, as maneiras como eles explicam o que se passa entre eles. O protagonista masculino (desta vez, em inversão do que acontecia por exemplo em A Nossa Sunhi, é um homem e três mulheres) é um editor e crítico literário em crise matrimonial. Na primeira cena, a primeira das várias cenas de diálogo que são a ossatura do filme, normalmente com as personagens sentadas à mesa com alguma comida e sobretudo muito soju (o álcool é sempre o protagonista líquido dos filmes de Hong), a mulher do editor desafia-o a confessar que tem uma amante. Ele não consegue, mas é óbvio que tem, como logo a seguir se percebe, e o tema da “cobardia masculina” fica imediatamente lançado como signo de O Dia Seguinte (depois, numa grande e alcoolizada cena com a amante, que é sua assistente na editora, e numa daquelas cenas, tipicamente Hong, em que tudo é muito cómico e muito dramático em simultâneo, a discussão sobre a cobardia dele será levada a um paroxismo — “sorris e nem sequer estás feliz”).

Para complicar a coisa, há uma assistente nova, a bem conhecida Kim Min-hee (vedeta do mais popular cinema coreano, protagonista de The Handmaid de Park Chan-Wook, que causou um grande escândalo na Coreia ao tornar-se namorada de Hong), que no seu primeiro dia de trabalho na editora é confundida, pela mulher do editor, com a amante dele, lançando um cómico drama, ou uma dramática comédia, de quiproquós e mal-entendidos. No primeiro diálogo entre o editor e a nova assistente, o soju tinha proporcionado uma animada discussão sobre a “realidade” e os “discursos sobre a realidade”, coisas que, explicava o editor, existem “em planos diferentes”. De certa forma, esse diálogo é o resumo do filme, que deixa os “acontecimentos” mais determinantes em elipse e apanha as personagens no momento em que os justificam ou teorizam sobre eles — é a “cobardia” das palavras, que podem ser mentirosas, que podem ser desculpas, que podem ser, só, o produto de uns copos de soju a mais.

Tudo isto é magnífico, claro, servido pelos actores com uma graça prodigiosa, encenado por Hong num minimalismo entrecortado pelos mais heterodoxos movimentos de câmara do cinema contemporâneo.

Resta dizer que a personagem mais mal tratada é a do homem, e que a mais bem tratada, a mais livre, é a de Kim Min-Hee: é a ela que Hong oferece a cena mais bonita e mais feliz, a neve a cair tornada um espectáculo apreciado através da vidraça do táxi.

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