O nosso eterno cavalheiro do rock’n’roll

Soube muito cedo o que queria ser e o punk mostrou-lhe como o conseguir. Sonhador de pés na terra, estrela no palco e cavalheiro fora dele, Zé Pedro foi o guitarrista e a alma dos Xutos & Pontapés. Morreu aos 61 anos.

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Rui Gaudêncio

Zé Pedro, 61 anos, fundador dos Xutos & Pontapés e ícone do rock n' roll nacional, morreu nesta quinta-feira. Doente hepático, tinha feito um transplante de fígado em 2011 e estava doente há vários meses. Subiu ao palco pela última vez a 4 de Novembro, num espectáculo esgotado no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o último da digressão Mar de Outono. O velório realiza-se sexta-feira, a partir das 16h, no antigo Museu dos Coches (e não nos Jerónimos como foi inicialmente anunciado). A missa de corpo presente será no sábado, às 13h30 (meia hora mais cedo do que inicialmente previsto), no mosteiro dos Jerónimos.

Parte da infância passou-a em Timor-Leste, na montanhosa Maubisse. O pai, Pedro João dos Santos Reis, oficial do Exército, fora destacado para o país asiático, então colónia portuguesa, e com ele viajara quase toda a vasta família – não pôde seguir viagem a irmã recém-nascida, quinta criança de uma família que será de sete, cinco raparigas, dois rapazes e Zé Pedro como o mano mais velho. Partiram de Portugal no final de 1960 e iniciaram viagem de regresso no Verão de 1963.

Zé Pedro recordava-se bem da vida livre timorense, pés descalços sobre a terra em correrias nos pátios e entre a vegetação. Houve um episódio em particular que foi contando ao longo dos tempos. Tinha seis anos e, no regresso de Timor, madrugada alta, veria Hong Kong erguendo-se ao longe, toda luz na escuridão, com néones denunciando vida agitada, urbana. A visão deixou marca profunda. “Foi a primeira vez que reparei na electricidade. Era como se estivesse a descobrir a civilização”, diria em várias entrevistas. O fascínio pela magia das luzes manifestou-se cedo e seria, a ela, à electricidade canalizada em rock'n'roll, que devotaria a sua vida. “Pensas que eu sou um caso isolado/ Não sou o único a olhar o céu/ A ver os sonhos partirem/ À espera que algo aconteça”, escreveria décadas depois, na letra de uma das canções tornadas hino da banda que foi o seu sonho (cumprido). 

Viajante na infância – de Lisboa para Tomar, de Tomar para Timor, de Timor para Lisboa, daí para a Guiné-Bissau nas férias de Verão, para visitar o pai, e Lisboa novamente, mais propriamente o bairro dos Olivais –, faria dessa deambulação constante modo de vida. Foi cidadão que queria ser do mundo partindo em interrail, na adolescência, para descobrir outras realidades e para testemunhar em carne e osso os sons e a agitação que as revistas e capas de discos sugeriam. Mais tarde, estudioso e eterno apaixonado pela música popular urbana, escolheria as cidades a visitar com o mapa das digressões das suas bandas preferidas na mão. Ainda assim, ou também por causa disso, Zé Pedro tornar-se-ia indistinto do país que o viu nascer e cuja evolução nas últimas quatro décadas testemunhou e documentou, através dos seus Xutos & Pontapés. País para cuja evolução, reformulemos, contribuiu, através de uma banda que se tornou referência máxima do rock em português e um verdadeiro marco cultural.

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No caderno em que registava a infância dos filhos, a mãe, Olga Helena Ricardo Castro Amaro dos Santos Reis, criou uma entrada para o dia 24 de Novembro de 1957. “O Zé Pedro dançou sozinho”, citou Helena Reis, irmã do músico, na biografia que lhe dedicou, Não Sou o Único (Editorial Presença, 2007). “Tínhamos o rádio aceso e estávamos entretidos a conversar; quando demos por ele, estava a dançar muito convencido”.

Não há referência a que tenha iniciado a “actuação” com apresentação tornada icónica em mil palcos deste país – “Boa noite, aqui Xutos & Pontapés!”. Mas, de certa forma, e olhando retrospectivamente, essa apresentação já tinha que estar algures no corpo do rapaz nascido a 13 de Setembro de 1956, registado pela mãe como nascido no dia seguinte para afastar o azar. O grito de guerra do palco já estaria a germinar na criança que procurava ter sempre um rádio por perto, que ouvia o pai deliciar-se com o jazz que consumia avidamente, que descobriu o rock'n'roll e, nele, o que queria fazer da vida, enquanto ensaiava posições de guitarra nas réguas em T que as irmãs usavam no colégio. Já tocava uns acordes quando, “eureka!”, descobriu que não precisava de ser um virtuoso para subir a um palco – assim lho mostraram os Ramones e o punk. Bastava saber o que queria e atirar-se de cabeça para que o que queria se tornasse realidade.

Zé Pedro, guitarrista e co-fundador dos Xutos & Pontapés, ícone da música portuguesa, estrela arredia a tiques de estrelato, sempre próxima e disponível, morreu aos 61 anos. Habitualmente, figuras públicas da sua dimensão são sentidas pelo público como alguém próximo, como um amigo ou um familiar. Essa ilusão de proximidade, criada pela presença mediática, na televisão, nos palcos, nos jornais e revistas, e pela presença real, através do palco, de um encontro fortuito numa rua, num bar, num clube (Zé Pedro gostava dos concertos e gostava da noite, e o país é pequeno), parecia ser, no caso específico de Zé Pedro, mais que mero simulacro.

Nascido José Pedro Amaro dos Santos Reis no Hospital da Estrela, em Lisboa, tinha em palco o carisma das estrelas rock'n'roll, movendo-se no corpo esguio ao sabor dos acordes simples em que se funda o som da sua banda, e tinha, fora dele, uma genuinidade cativante e calorosa. Como costumava dizer: “Eu tenho sempre tempo para falar de rock'n'roll”. E fazia-o com os companheiros de banda, com camaradas músicos, com técnicos de som e de palco, com anónimos, novos e velhos, que o abordavam na rua para trocar dois dedos de conversa. Zé Pedro tinha sempre tempo.

Para a maioria dos portugueses, considerando como muito provável que 90% da população tenha ao longo da vida assistido a pelo menos um concerto dos Xutos, Zé Pedro seria realmente alguém próximo com quem já se trocaram algumas palavras, alguém que acompanhou o que somos e fomos sendo desde o final dos anos 1970, período em que os Xutos irromperam na cena musical em concerto modesto, mas que causou estrondo.

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Nuno Ferreira Santos

Alunos do Apolo, Janeiro de 1979: seis minutos durou o primeiro concerto dos punks Xutos & Pontapés, quando os seus membros estavam longe, muito longe, de sonhar que seriam um dia os primeiros rockers portugueses tornados comendadores da nação, cortesia do então Presidente da República Jorge Sampaio, em 2004.

A abertura e empatia perante o outro era uma das marcas distintivas de Zé Pedro. Outra, o prazer pela música, inabalável ano após ano, e guia de todas as suas acções até ao fim. Em 2001, quando uma hemorragia no esófago o deixou às portas da morte – “os médicos disseram-me que se tivesse entrado [no hospital] duas horas depois, não me safava”, contou –, saiu do internamento, ainda naturalmente fragilizado, e poucas semanas demorou até subir a palco novamente. Devia-o à sua banda, a toda a equipa que a rodeava e que tinha nos Xutos o seu ganha-pão, e ao público que esperava vê-lo e que já comprara bilhetes.

“Isto consigo fazer”

No último 4 de Novembro, subiu ao palco do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para o último concerto da digressão de 2017. A seu lado, os companheiros de sempre, Tim, Kalú, João Cabeleira e Gui. Perante si, os fãs que cresceram ao longo dos anos até se tornarem muitos, muitos milhares. Começaram por ser um pequeno grupo, uns punks da Amadora que, num concerto dos inícios, em 1979, invadiu o palco onde tocavam os Xutos em aprovação da música e do gesto artístico. Aconteceu no Liceu D. Pedro V, quando Zé Leonel, o primeiro vocalista dos Xutos, vitimado por um cancro no fígado em 2011, partiu em palco um gravador que teimava em não funcionar como devia e atirou os pedaços para a plateia – os pedaços foram devolvidos, o palco invadido.

Aqueles punks suburbanos que, contava Zé Pedro, adoptaram a banda como sua, seguindo-a concerto a concerto a partir daí (naquela primeira noite, propuseram logo aos Xutos irem juntos partir umas vitrines à privilegiada Avenida de Roma, para consumar a relação), foram os primeiros. Hoje, como naquele Coliseu lisboeta lotado, o público e os fãs dos Xutos & Pontapés são um grupo transversal a faixas etárias, classes sociais e geografias. São de todos e são para todos. Foi por eles que Zé Pedro continuou, mesmo debilitado pela doença hepática que o obrigou, em 2011, a um transplante de fígado, a actuar todas as noites de mais uma digressão dos Xutos & Pontapés. Por eles, pela banda que será sempre a sua, e por si mesmo.

Em Conta-me Histórias, biografia da banda assinada por Ana Cristina Ferrão, Zé Pedro recorda a estreia da banda na supracitada actuação nos Alunos do Apolo, integrada numa comemoração dos 25 anos do rock’n’roll. “A assistência que tinha estado a ouvir, a noite toda, o Rock around the clock e outras coisas similares, ficou estática. Quando acabámos não se ouviu nem uma palma, nem um assobio. Não se ouviu nada. Eles não devem ter percebido absolutamente nada e a verdade é que nós também não”. Foram cerca de cinco canções em seis minutos. Foi o início da história conhecida. Pode ter sido curto, pode ter sido um caos, pode não se ter ouvido sequer um aplauso, mas Zé Pedro não teve dúvidas quanto ao que sentira. “Tinha sido muito excitante. Marcámos logo o próximo ensaio”. Em entrevista a Ana Sousa Dias, publicada no Diário de Notícias em 2016, apresentou a sua definição de rock'n'roll. “O rock'n'roll é um estado de espírito, e uma pessoa ou sente ou não sente. Não é preciso ser músico para se sentir, tem que ver com aventura. Pode ter que ver com uns certos limites na vida, mas tem, acima de tudo, que ver com a realização pessoal de uma vida mexida”. A sua foi, verdadeiramente, uma vida mexida, realizada.

Em 1969, os pais compraram uma televisão para a família assistir em directo ao grande acontecimento do ano, a chegada do Homem à Lua. Zé Pedro viu Neil Armstrong dar o grande passo, mas a televisão mostrou-lhe outra coisa, um concerto dos Deep Purple, banda que mais tarde encaixaria na categoria de dinossauros, mas que, naquela altura, funcionou como um despertar. A partir daquele momento, começou a procurar as novidades discográficas, a encomendar a imprensa musical que lhe mostrasse o novo que se ia fazendo no cenário musical.

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Paulo Pimenta

Dois anos depois, os pais levavam-no a ver o seu primeiro concerto. Momento histórico: Zé Pedro foi um dos felizardos que, no primeiro Cascais Jazz Festival, assistiu à actuação de Miles Davis. Fascinou-o aquele homem, quase alienígena, certamente alienígena no Portugal de então, na sua roupa colorida, tronco dobrado sobre a trompete e olhar escondido atrás de grandes óculos escuros. Mas assistir ao concerto teve um efeito secundário. Chegar àquele patamar musical parecia tarefa impossível. “Deixei de ter aquele apetite de ser músico depois de vê-lo: ‘Eh pá! Isto dá muito trabalho, chegar aos calcanhares de uma coisa como esta’”, recordou a Ana Sousa Dias. Ainda não havia os Ramones, ainda não havia o punk rock. Ele ainda não tinha ouvido os primeiros e testemunhado a revolução cultural do segundo para exclamar: “Isto consigo e quero fazer”.

Avançar sem olhar para trás

Sente-se a electricidade no ar, o entusiasmo, no limite da euforia, que rodeava o momento. Ouve-se o clamor do público e percebe-se como esse clamor contagia o palco. Os versos são, várias vezes, em várias canções, cantados por todos, pelo vocalista e pelos milhares que lotaram o Pavilhão d’Os Belenenses nos dias 29, 30 e 31 de Julho de 1988. Os Xutos & Pontapés viviam o seu primeiro auge de popularidade, ascendendo de banda de culto a verdadeiro fenómeno, alicerçados em canções como Remar remar, Homem do leme, Contentores, À minha maneira, A minha casinha ou Para ti Maria, e nos álbuns Cerco, Circo de Feras e 88. O sucesso devia-se tanto ao protagonismo ganho pelas canções quanto à incansável ética de trabalho: os Xutos & Pontapés haviam resistido à saída do primeiro vocalista, Zé Leonel, haviam acolhido novo guitarrista, Francis, viram-no partir para que chegasse aquele que parece pertencer à banda desde sempre, João Cabeleira. Conseguiram-no guiados pela vontade indomável de Zé Pedro, líder sereno mas decidido, tocando onde e quando os quisessem, para 50 pessoas, para cem ou para cinco mil, tocando sempre.

“Assumiram que o rock nunca foi um estilo de música mas sim uma atitude e, quer se queira quer não, um estilo de vida”, escrevia Fernando Magalhães no PÚBLICO em 1999, cumpriam os Xutos & Pontapés vinte anos de carreira. Escrevia mais: “Remar remar, Homem do leme, Circo de feras, Contentores, Quero mais, Não sou o único ou Longa se torna a espera são palavras de ordem para quem se alimenta de palavras de revolta, servidas por melodias cuja força e simplicidade formam uma condensação perfeita da fúria, do espanto, da dúvida e da loucura de quem avança sem olhar para trás. Um segredo que se encontra exposto desde o início no próprio nome do grupo”.

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No Pavilhão d’Os Belenenses, em 1988, nos concertos que resultarão em Xutos Ao Vivo, Tim cederá o protagonismo ao companheiro de estrada e Zé Pedro cantará Submissão em voz crua e ritmo acelerado, punk mais punk não há. Zé Pedro cantará: “Deixei a escola e fui trabalhar/ Mas é pior do que andar a estudar/ oito horas por dia é muito a aturar/ é tanto tempo, tempo que nem dá p’ra pensar”. Há muito tinham desaparecido os receios de há 17 anos, quando assistira pela primeira vez a um concerto e vira o imponente Miles Davis em palco.

Eram nove naquele 7.º andar direito, nos Olivais. Os pais, as duas irmãs mais velhas e as três irmãs e o irmão que chegaram depois dele. Núcleo familiar forte, muito unido e sem sinais de conflitos geracionais. Nos anos 1980, muito solicitado para comentar o fosso entre a geração dos pais e a sua, diria vezes sem conta a jornalistas que nada tinha a dizer sobre esse assunto. Que gostava muito da família, que se dava muito bem com os pais, explicava. A mãe, de resto, não só apoiava a carreira musical do filho como marcou regularmente presença nos concertos até à sua morte, tinha Zé Pedro 27 anos, chegando a ser a responsável pela maquilhagem com que a banda subia a palco.

Foi a partir do bairro lisboeta dos Olivais que o adolescente Zé Pedro começou a ver mais, a descobrir mais. Tinha 15, 16 anos quando sentiu pela primeira vez o que era a vida na estrada, acompanhando uma banda local, os Ficha Tripla, até um concerto no Algarve. Ao mesmo tempo, ia contactando com a geração do rock português anterior à sua, a dos Petrus Castrus e dos Objectivo, e prestava atenção ao que fazia Filipe Mendes, o grande guitarrista de Chinchillas ou Heavy Band, o bem conhecido Phil Mendrix dos Irmãos Catita.

Demasiado irrequieto e desinteressado na escola – olhando para esses anos, descrevia-se como “speed-freak rebelde” –, foi-se sentindo atraído para a acção política que começa a fervilhar imediatamente antes, durante e logo após o 25 de Abril. Semanas antes da Revolução foi, nos Olivais, um dos membros fundadores de um misterioso CRIME – Comité Revolucionário para a Independência da Malta da Encarnação. Interessava-lhe a agitação e acção directa, não tanto a burocracia das reuniões – na política como na música, portanto.

Antes de pegar na guitarra em palco, divulgava música na imprensa, escrevendo crítica musical no Diário de Lisboa (o tio, Ruella Ramos, era o director) e colaborando ocasionalmente com a Rádio Comercial. Foi, por exemplo, o primeiro a escrever em Portugal sobre Horses, o histórico disco de estreia de Patti Smith. O momento decisivo chegaria em viagem. A história é bem conhecida. Verão de 1977 e Zé Pedro em interrail pela Europa. Em Amesterdão, decide inverter marcha. Algures numa vilória francesa aconteceria algo que ele não podia perder. Em Mont de Marsan, Sul de França, realizava-se um festival por onde passaram os Clash, os The Damned ou os Police. Na sua conta de Facebook, em Junho de 2017, Zé Pedro partilhou fotos do festival, com bandas e público a conviver unidos nos alfinetes espetados e nas t-shirts esburacadas. “Nesse momento, a minha vida mudaria para sempre”, escreveu num dos posts. Alex Cortez, baixista dos Rádio Macau, guardou bem nítida na memória a primeira vez que viu Zé Pedro, então alcunhado Podrezinho por influência de Johnny Rotten, o vocalista dos Sex Pistols. Foi num 1º de Maio, assim recordado em Conta-me Histórias: “Ele usava um impermeável amarelo cheio de badges de grupos punk da altura e eu lembro-me de achar aquele personagem curioso, no meio dos trabalhadores que davam vivas à Revolução”.

Um ano e meio depois de Mont de Marsan, Pedro Ayres Magalhães, com quem Zé Pedro firmara um pacto assinado a sangue em mortalhas coladas – ainda haveriam de ser grandes na música, ditava –, diz ao jovem guitarrista: “Tomem conta do rock’n’roll, que nós temos que ir para outro lado”. Era o último concerto dos fugazes Faíscas, de quem Zé Pedro era manager, e o da estreia dos Xutos & Pontapés. Pedro Ayres Magalhães foi – para a criação dos Corpo Diplomático, dos Heróis do Mar, dos Madredeus. E os Xutos & Pontapés foram também – tomar conta do rock’n’roll.

Honestidade total

Zé Pedro atravessou toda a celebrada história que se seguiu com a elegância e frontalidade que revelou desde o início. Enquanto guitarrista, tinha a virtude da simplicidade, indo directo ao assunto através de riffs crus e sequências de acordes eficazes – a âncora em que se suportaram as canções da sua banda. Francis, guitarrista dos Xutos & Pontapés entre 1981 e 1983, dizia-o em Conta-me Histórias: “Sendo um guitarrista limitado, tem um balanço desgraçado, ele em ritmo é fabuloso. É ele e o Kalu na bateria. A guitarra do Zé Pedro não é uma guitarra de encher chouriços: a guitarra dele é importante”. Enquanto figura pública, prezou a transparência, sem falsos moralismos. O carisma de estrela em palco, do alfinete espetado na boca às t-shirts apertadas e rasgadas, imagem dos primórdios, aos casacos, sobretudo e pulsos cobertos de pulseiras de metal, qual mestre rock’n’roll, de tempos mais recentes, não tinha equivalência, fora dele, numa pose distante, inatingível.

Era um verdadeiro cavalheiro, tão à-vontade com os seus – os músicos, os roadies, os agentes da indústria – como com os admiradores anónimos na rua ou com figuras de relevo na política como Manuela Eanes, fã assumida, ou Jorge Sampaio, o Presidente que agraciou os Xutos com a ordem de comendadores da nação. “Pessoas que gostam do que estão a fazer querem ir o mais longe possível”, disse em 2016 a Ana Sousa Dias. “No meu caso, como músico, acima de tudo, há uma honestidade total em relação à vida que levo. Assumo o que faço e isso é transportado comigo. A andar na rua, a ir às compras, seja o que for, eu também sou o Zé Pedro dos Xutos & Pontapés”. Assim foi.

O prazer pela música, pela vida que lhe está associada, foi uma constante. Não só no apoio e no entusiasmo de verdadeiro fã que foi mostrando por bandas das gerações que lhe sucederam, como os Censurados, os Lulu Blind de Tó Trips, que chegou a produzir, os Linda Martini, os Pontos Negros ou os Capitão Fausto. Não só na criação de bandas paralelas aos Xutos & Pontapés, como o Palma’s Gang de revisita rock’n’roll ao cancioneiro de Jorge Palma, os destrambelhados Os Cavacos ou, mais recentemente, Os Maduros e os Ladrões do Tempo. Sempre atento, rodeado de revistas, de DVD, CD e vinil, divulgou música das mais diversas formas: na rádio, em programas que passaram por diversas emissoras; na televisão, através de Viva o Vídeo, onde, ao lado de Xana e de Henrique Amaro, revelou em primeira mão em Portugal o emergente panorama grunge, por exemplo; enquanto DJ, actividade que manteve nas duas últimas décadas; ou no clube Johnny Guitar que co-fundou e, que nos anos 1990, foi o grande centro criativo musical lisboeta, digníssimo sucessor do Rock Rendez Vous onde os Xutos haviam feito boa parte da sua história inicial.

Com o passar dos anos, viu como a sua banda cresceu até se tornar verdadeira instituição nacional, saltando dos clubes para os pavilhões, daí para os Coliseus, para o Pavilhão Atlântico, para os eventos de massas que são os festivais de Verão. Nas corridas Portugal fora, em inúmeras digressões, viu as auto-estradas cortarem o país, viu como os fãs de ontem continuavam presentes enquanto novos, por nascer quando os Xutos deram os primeiros passos, se juntavam em coro com a banda. Em 2003, cumpriu um sonho antigo ao tocar na primeira parte do concerto dos Rolling Stones no Estádio Cidade de Coimbra – “Foram a banda que me levou a ser músico e que me levou a tocar guitarra”, contou em Não Sou o Único.

Nos anos 1980, ultrapassou um período de dependência da heroína do qual sempre falou com desassombro, sem falsos dramatismos e sem moralidade de pacotilha. Em 2001, foi internado de urgência e viu a morte de perto – mal teve alta, preparou o regresso aos palcos, que não demorou mais que umas curtas semanas. Em 2011, a persistência dos problemas hepáticos – sofria de hepatite C –, obrigou-o a um transplante de fígado e, também nessa altura, não demorou a regressar a palco – podia lá faltar ao concerto no Optimus Alive, onde iria partilhar palco com Iggy Pop & The Stooges.

Em 2013, casou com Cristina Avides Moreira. Em 2014, os Xutos & Pontapés editaram o seu 13º álbum de estúdio, Puro. Este ano, quando apenas os mais próximos estavam cientes do seu estado de saúde, fez questão de subir a palco em todas as datas da digressão, com excepção de Toronto (e por imposição dos companheiros). Lembramo-nos de algo que dissera em Conta-me Histórias: “As tournées matam um bocado. Mas o que é giro é que a gente conseguiu passar por muita coisa e ainda ficamos loucos só de pensar em ir para a estrada”.

Fragilizado, naturalmente menos comunicativo, tocou noite após noite. Depois da noite de despedida da digressão, emitiu um comunicado. “Como sabem, tenho andado na luta da vida com alguns problemas de saúde… Tentei e tento dar sempre o melhor de mim”, começou por escrever, revelando que iniciaria no dia seguinte um novo tratamento. “Garanto que é para ganhar. Eu sei lutar e acredito”, despediu-se.

Zé Pedro ganhou. Zé Pedro, 61 anos, uma vida de rock’n’roll tatuada na paisagem e na memória de um país.

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O guitarrista dos Xutos & Pontapés morreu a 30 de Novembro de 2017.