Zé Pedro, histórias de além-Xutos

Republicação de uma entrevista de 1994.

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Esta é não é uma entrevista como deve ser, a respeitar todas as regras como sói fazer-se nesta casa. Pede-se aqui um pouco de compreensão a quem tenha intenção de ler o texto que se segue. Avisa-se desde já: isto é uma conversa de amigos, uma conversa entre duas pessoas da mesma idade que se conhecem desde a infância porque viveram em prédios vizinhos num bairro de Lisboa onde a vida mudou como em muitos bairros pelo país fora. Porque a conversa é sobre esse passado e o presente, os grupos e as vidas de bairro, os charros e as drogas pesadas, os mais velhos e os mais novos, o tom é menos seco do que é habitual. Seria hipocrisia esconder esse conhecimento e o tratamento por tu.

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Esta é não é uma entrevista como deve ser, a respeitar todas as regras como sói fazer-se nesta casa. Pede-se aqui um pouco de compreensão a quem tenha intenção de ler o texto que se segue. Avisa-se desde já: isto é uma conversa de amigos, uma conversa entre duas pessoas da mesma idade que se conhecem desde a infância porque viveram em prédios vizinhos num bairro de Lisboa onde a vida mudou como em muitos bairros pelo país fora. Porque a conversa é sobre esse passado e o presente, os grupos e as vidas de bairro, os charros e as drogas pesadas, os mais velhos e os mais novos, o tom é menos seco do que é habitual. Seria hipocrisia esconder esse conhecimento e o tratamento por tu.

José Pedro Santos Reis, nascido em 14 de Setembro de 1956, com seis irmãos e seis sobrinhos, recebeu do pai a primeira guitarra na idade em que os pais oferecem guitarras, não ligou aos estudos, foi 3º escriturário e uma espécie de empresário de uma banda de nome "Faísca" que ensaiava (é uma forma de dizer, desabafa a vizinha) na garagem do prédio, formou os Xutos & Pontapés há 15 anos, passou pelos charros e pelo pó, deixou as drogas duras para trás a evitar ver os amigos que ainda hoje estão agarrados, guarda desse tempo o cabelo comprido e o não dar importância àquilo que não tem importância.

Em 15 anos de banda e em três anos de sócio de um bar de Lisboa, tem visto passar os sucessivos bandos e as sintomáticas formas de reagir. Agora, os mais novos descem a rua de skate, bebem coca-cola, não fumam charros nem bebem cerveja. Têm muito cuidado com eles. Porque já viram o irmão mais velho agarrado ou o tio a rebentar o dinheiro e a família.

Depois de um período de paragem, os Xutos voltaram, gravaram, dão espectáculos. Este ano, o concerto de Lisboa é a 13 de Setembro, no Campo Pequeno. Tim, Zé Pedro, Calu e João Cabeleira, cada um a viver a sua vida própria, os anos a passarem e eles a tocarem juntos porque lhes apetece.

Os Xutos & Pontapés começaram há 15 anos e eram um caso um bocado único no meio, pelo tipo de músicas e de letras. Já havia os UHF, mas o vosso género era diferente.
Havia uma banda que na altura tocava quando nos formámos, os Faísca, com o Pedro Ayres de Magalhães e o Paulo Gonçalves que está agora nos LX 90. Eu era uma espécie de empresário, se se podia chamar assim. Essa era a banda mais activa numa área punk. Os UHF também um bocado, mas principalmente os Faísca. Ouvíamos os Sex Pistols, os Clash, aquela nova vaga toda dos punks ingleses. As nossas letras eram todas em português, muito directas. Aquilo resumia-se a quatro frases, quatro palavras de ordem e uns acordes de guitarra atrás. Foi assim que começámos.

Nessa altura achavas que isso ia ser a tua vida ou era uma brincadeira?
Andávamos todos em festa, de um lado para o outro. Começámos a ensaiar juntos em finais de 78, a brincar. E só se começa a levar a sério os Xutos aí em 85 ou 86, na altura do "Cerco", quando já fazíamos umas coisas mais construídas, com uns textos mais completos e uma música mais elaborada

O que fazem hoje não tem nada que ver com o que faziam no início?
Tem sempre um bocado, porque somos as mesmas pessoas. Mas se andamos a tocar juntos há 15 anos não podemos tocar sempre da mesma maneira. Só os Status Quo é que tocam sempre da mesma maneira... Nós somos muito autocríticos e estamos sempre abertos a ouvir muita música nova. Isso dá-nos sempre influências novas, evoluímos no som.

Quando falei na diferença de atitude em relação aos outros referia-me ao facto de vocês aparecerem com letras que chocavam um bocado, como "A minha aventura homossexual com o general Custer". Hoje o Pedro Abrunhosa e os Ena Pá 2000 cantam letras tipo hard-core, mas vocês cantaram uma Ave Maria punk enquanto os outros eram bem comportadinhos.
Isso foi uma vantagem grande, não termos assumido nenhum tipo de compromissos. Nem procurámos sequer editora. As coisas aconteciam, as pessoas vinham ter connosco nos concertos, e sempre pudemos manter uma atitude diferente, só pelo brincar. A "Ave Maria" não foi feita intencionalmente para chocar. Se pensássemos como é que havíamos de chocar as pessoas, se estivéssemos três anos a pensar nisso, se calhar não chocávamos ninguém.

Como é que resolveram fazer a "Ave Maria"?
Foi numa altura em que o Zé Leonel, que era o nosso vocalista, estava para sair. Ensaiávamos todas as semanas e o Tim teve de começar a cantar, pelo menos para ir deixando umas melodias vocais enquanto não aparecia a letra. Uma das vezes ele começou a cantar a "Ave Maria" porque encaixava ali bem. E ficou.

E a "Casinha" também foi assim?
Também. Estávamos a ensaiar, o Calu estava a montar a bateria, o Tim  começou a cantar aquilo por brincadeira. A nossa editora quis tirar mais um single do "Circo de Feras", gravámos três músicas num fim de semana e a "Casinha" foi escolhida já em última instância.

Aqui há uns anos apareceu um cartaz vosso, cheios de cartucheiras. Olhei para aquilo e pensei que não tinha nada a ver contigo, com a pessoa que conhecia. É uma coisa tão agressiva. Era marketing?
Também foi uma brincadeira, mas o cartaz por acaso resultou muito bem. Tínhamos na altura uma atitude muito fria em palco, éramos muito frios com a assistência. Estávamos na fase final de ser independentes, as grandes editoras não nos ligavam, tinha saído o Francis que era o guitarrista e estava para entrar o João Cabeleira. Lá fora também se vivia um período cinzento, no género dos Joy Division, grupos que tinham uma atitude muito reservada. Não nos ríamos em cima do palco. Não tratávamos mal as pessoas, aliás eu não gosto de bandas que vão achincalhar a assistência, odeio ser maltratado quando vou ver um espectáculo. Não era esse o caso. Mas as pessoas aderiam. Nessa altura era culto mesmo. Era normal irmos tocar a um sítio e virem pessoas de 50 quilómetros de distância para nos ouvir. Andávamos com os amplificadores atrás, não tínhamos dinheiro para pagar a ninguém.

Mas a atitude era pose ou era natural?
Foi uma fase nossa, de raiva interior. Eu na altura tinha sido despedido do emprego, o Tim tinha acabado o curso, não tínhamos dinheiro para nada, não nos estavam a acontecer coisas em especial, estava tudo num impasse. Talvez tenha sido a fase mais dura dos Xutos. Fomos tirar as fotografias de promoção do disco "Cerco", gravado numa semana e cheio de raiva. Estivemos uma tarde inteira num estúdio de bairro cheio de fotografias de casamentos e de baptizados. Nunca mais saía nada. A certa altura o fotógrafo disse que era a última fotografia do rolo. Havia lá uma arca cheia de coisas em que não tínhamos reparado antes. Cada um agarrou numa coisa qualquer e tirámos a fotografia. Quando fomos ver era a única engraçada e ficou para o cartaz. São cintos com cartuchos de caça, mocas e eu até estou com um bocado de carpélio às costas...

Foi uma altura de viragem?
No ano a seguir fizemos os "Contentores". Começámos a rir, a ser mais simpáticos para o público.

Vocês cresceram todos em ambientes muito urbanos, embora venham de lugares diferentes, são muito "de bairro".
O Tim é de Almada, viveu muito no circuito do Café Central, fazia o mesmo tipo de vida que eu nos Olivais. O Calu era do Restelo, ia roubar pastéis de nata no café, iam até Algés todos juntos, histórias desse género. O Cabeleira é da Avenida de Roma, mas veio para o grupo mais tarde. Tínhamos histórias que nunca mais acabavam, de uma maneira ou de outra eram todas paralelas. Havia o gangzinho, os amigos, as patifarias, as festas de garagens.

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Luús Ramos/Arquivo

A tua vida nos Olivais era um bocado isso, uma vida de bairro mas com imensa liberdade. Hoje não há esse à-vontade com que nós andávamos pelas ruas.
Havia sempre as férias grandes, soava tudo a festa. Os campeonatos das caricas, os jogos de futebol, aquilo acontecia tudo ali. Sempre me soou muito saudável essa atmosfera. Com os primeiros charrinhos era tudo tão natural, tudo em grupo, encontrávamo-nos todos na relva, à noite arranjávamos sempre coisas para fazer. Quando entraram as drogas duras é que a coisa mudou um bocado de figura. Foi tudo por água abaixo.

Ainda no outro dia lá estive e apareceram dois que conhecemos em miúdos. O N. anda de muletas, não mexe as pernas e pediu-me dinheiro sem me reconhecer. O irmão foi morto à facada. O B. trocou o meu nome e pediu-me também dinheiro.
Histórias sinistras. O N. injectava-se com supositórios derretidos e a gordura começou a coagular no sangue. Ficou paralítico. O B. está de rastos, completamente agarrado. Aquela vida de bairro acabou. Não sei até que ponto é que as vidas de bairro serão hoje em dia tão saudáveis como aquela que havia ali e noutros bairros. Os da nossa geração que ficaram por lá estão quase todos de rastos.

Imagina aquele bairro com crianças hoje em dia. Na altura as mães achavam que as meninas não deviam andar na rua à solta, que era coisa para rapazes. Mas hoje há assaltos, há sempre quem apareça com droga. Como achas que se sobrevive numa situação dessas? Tu não tens filhos mas tens imensos sobrinhos. Isso preocupa-te?
Isso preocupa-me bastante. Na altura, o facto de não haver drogas duras dava logo um certo tipo de segurança. Não havia necessidade de assaltos. Uma vez uns miúdos de outros prédios roubaram-me uma bola de futebol. Aquilo foi um problema! Fomos em grupo ter com eles, lá devolveram a bola. As coisas passavam-se assim. Não havia directamente um perigo, de uma maneira ou de outra toda a gente se conhecia. Como estávamos um bocado isolados da cidade, por ser um bairro de subúrbio, havia também essa protecção. Hoje é preciso ter um clã - não propriamente um gang de malfeitores - que se proteja e que tenha a sua vida, que vão ao cinema juntos, que tenham as suas festas, o seu grupo separado.

Os adolescentes que têm hoje 13, 14 ou 15 anos aparecem nos vossos concertos. O ambiente é diferente?
De uma maneira ou de outra - depende das  terras -, protegem-se uns aos outros. Mesmo no Johny Guitar aparecem muitos clãs. Os dos skates vêm todos uns com os outros e põem os skates no bengaleiro. Aparecem os metaleiros, normalmente do outro lado do rio, com as namoradas, todos de cabelo comprido e gostam de ouvir Sepultura, ficam o tempo todo à espera dos metaleiros. E os surfistas, são os mais loirinhos, aparecem também aos grupinhos. Dá a sensação de que se organizam por gostos - os skates, as músicas - e é uma forma também de se protegerem contra essas coisas dos agarrados dos bairros que já lá estão há muito tempo. Saem dos ambientes mais viciosos. Há uma geração nova que se apoia muito nisso, juntam-se para ir para a praia, todos com a prancha de surf ou de body board, vão para o Guincho porque hoje está bom é no Guincho, amanhã se for preciso metem-se na camioneta e vão para Peniche porque em Peniche é que está bom, é a maneira saudável de encarar essa cena, saindo dos seus sítios. Conhecem outras pessoas, o mundo vai-se tornando maior, suponho que será uma forma de se defenderem e de aproveitarem a parte energética da vida.

Os Xutos eram identificados como um grupo de drogados. Andaste metido em drogas duras?
Andei, infelizmente. Foi há muito tempo e safei-me muito depressa. Foi na altura em que a minha mãe estava a morrer, na altura em que me separei, voltei para os Olivais e toda a gente estava metida no pó, e então era mais fácil ir por ali porque não tinha mais nada para fazer, não tinha vontade de estar em casa. Ia para casa deste ou daquele e as coisas estavam a passar-se ali à minha frente.

É por isso que as pessoas vão por aí?
É muito por isso. É preciso explicar às pessoas que existem diferenças entre as drogas. É normal que um puto queira experimentar e se estiver elucidado sobre o que aquilo é, pelo menos já tem essa defesa. Não vale a pena dizeres "não experimentes a droga, olha que te matas". Essa conversa já não pega. Devia era haver a obrigação de se mostrar que existem coisas diferentes. Se tirarem o haxixe do mercado agarram uma data de putos ao pó. E depois como é que eles saem? Um puto que fume pó com 13 ou 14 anos nunca mais sai disso. A heroína é uma droga muito perigosa, a mais perigosa de todas. De repente, sem gostares, já lá estás enfiado, e quando queres sair é um problema porque aquilo passa-se tudo na tua cabeça. E tirares aquilo da cabeça e aprenderes tudo outra vez - ir ao cinema, beber um copo, ter conversas normais tirando as que se têm quando se está agarrado ao pó - é muito difícil.

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Pedro Cunha/Arquivo

Como é que saíste?
De um dia para o outro. Para não ir picar enfiava-me no cinema à espera de que passasse a hora, para não encontrar ninguém na rua. E isso durou para aí três meses. Era preciso chegar a casa depois de eles terem saído da rua. Se um tipo é mais puto e não tem a cabeça um bocado preparada para conseguir dar estas voltas, não consegue mesmo sair. Aquilo não tinha nada que ver comigo. Mas o certo é que lá estive e não conseguia despegar. Até que meti mesmo na cabeça que tinha de ser, custasse o que custasse.

Vocês têm muita gente nova a assistir aos concertos?
Quem vai aos concertos são os mais novos, para estarem uns com os outros e para ver o espectáculo, estar ali, participar. Lembro-me perfeitamente do primeiro espectáculo a que fui, o primeiro Cascais Jazz. Dois dias antes, já eu estava em polvorosa e na véspera quase nem dormi. Toda aquela adrenalina... Andava a estudar no Liceu Camões e cada vez que havia o Cascais Jazz eu ia lá passar os três dias. Na sexta-feira já nem ouvia as aulas, mortinho para ir de comboio com a mochila atrás, dormia com o saco cama no jardim. Acredito que exista da parte da nova adolescência essa motivação para um concerto.

Ao pé dos Bandemónio, vocês não são já uns dinossauros, uma instituição?
Um bocado, mas na nossa maneira de ser, com o feitio que cada um tem, conseguimos não ser dinossauros pesados. Não gosto de dizer mal de ninguém, mas há grandes chatices. Há uma carga tão pesada, tão... como aquela banda que havia na nossa altura, os Deep Purple, que ainda hoje estão a tocar. É uma seca. Mas os Rolling Stones já não são seca. Se calhar até são mais velhos do que os Deep Purple mas há uma diferença entre um dinossauro e uma pessoa que faz uma coisa de que gosta.

As bandas mais ouvidas agora têm alguma coisa a ver com o que vocês fizeram, ou achas que as coisas agora são feitas por critérios de marketing?
As coisas verdadeiras, as que saltam, são feitas naturalmente. É normal as gerações terem um tipo de comportamento diferente das anteriores, até para chamarem a atenção. Hoje em dia é mais difícil chocar porque há mais informação. Vê-se muita televisão. Uma pessoa consegue ver as imagens do Ruanda e chocar-se só um bocadinho, e ainda por cima sente-se impotente. Há uma data de coisas que nos passam ao lado. A intenção de chocar, portanto, é um bocado relativa. Os grupos novos têm uma necessidade enorme de dizer palavrões nas letras. Nos discos dos metaleiros aparecem uns carimbos das associações de pais americanas, a dizer que as letras são chocantes, e são os discos mais vendidos.

Há 25 anos atrás tínhamos a Janis Joplin, o Jimi Hendrix, morreram todos de overdose. No fundo, esta não é a mesma maneira de fazer as coisas?
As mesmas coisas mas com outros meios. Se me aparecer um tipo muito drogado em cima de um palco, o que na altura para nós era o máximo - "é pá, o gajo caiu, estava muito drogado..." Agora já ninguém grama aquilo, se apareces lá a cair o pessoal diz "olha que chatice".

Agora que estás crescidinho, o que é que fazes no dia-a-dia?
O Calu, eu e o Alex, que é o baixista dos Radio Macau, repartimo-nos no bar. Gosto de ir lá ver as bandas todas a tocar. Faço o alinhamento da programação, tento sempre meter bandas novas. Vou muito ao escritório [dos Xutos]. E tenho um programa na RDP.

Em relação aos mais novos tens uma atitude de condescendência?
Antes pelo contrário... No aspecto musical, há putos novos a tocar muito melhor do que os antigos, o que não quer dizer que consigam fazer canções tão boas como outros fazem. Mas na técnica, na aprendizagem da guitarra, eles estão muito mais desenvolvidos. Aparecem putos de 16 anos lá no bar a tocar e ficamos de boca aberta. É que nesta nova geração as coisas são assim: ou és muito bom ou nunca hás-de sair da cepa torta. Estudam mesmo afincadamente. A passagem para a universidade é sintomática: ou tens umas médias muito boas e estás ali o ano inteiro a marrar ou então não consegues. E vais fazer o quê? Isto passa-se com os guitarristas do lado de lá do rio, de Almada, do Seixal, todos da área dos metaleiros, têm que tocar muito, tocam todos os dias, porque se falham não têm hipóteses.

Hoje em dia é mais difícil viver em tom de brincadeira como vocês fizeram?
É, principalmente cá em Portugal. Passa-se uma coisa com esta nova geração que é uma chatice: eles estão a levar com a geração do 25 de Abril, a nossa geração. As pessoas que estão à frente das editoras, das rádios, são aquela geração da palmadinha nas costas. "Ah, boa ideia, mas tu és puto, não sabes."

Condescendência?
Os putos fartam-se de levar com isso. Não há uma atitude frontal. Os directores respondem - "é pá, não te preocupes, tanto trabalho para quê?". É uma geração que acha que já fez o que tinha a fazer, agora deixa andar. É aquele pessoal todo que no 25 de Abril eram activistas, muito UDP, e agora está tudo no PSD, instalados, com os tachos, e não querem grandes coisas. Não há grandes atitudes por parte das editoras, lá vão gravando umas coisas e às vezes sai bem, como com o Pedro Abrunhosa. Ele conseguiu arranjar um som novo e as pessoas estavam um bocado fartas dos Resistência e daquela moleza toda, faltava um bocado de estímulo. O Abrunhosa começou nas boîtes, no Verão, com aquelas coisas que toda a gente pode cantar, porque também já se estava farto de ouvir só coisas em inglês, a maior parte deles nem sabem o que estão a dizer. É giro aparecer com uma letra que toda a gente pode cantar, como o "não posso mais viver assim". Nós todos, quando éramos adolescentes, passámos por isso.

O que é que achas que se perde quando é preciso dar tudo por tudo para um jovem se afirmar?
Perde-se o aspecto criativo. Tens que ter um curso se não não és ninguém. É a mentalidade dessa geração laranja, o ser director o mais rápido possível. Hoje encontram-se directores de 26 ou 27 anos, sem nunca terem vivido nada. Não aproveitaram nada da vida, desde que começaram a estudar e foram para o emprego. Oxalá não tenha tido de matar dois ou três para lá chegar... Porque a maior parte das vezes até é assim, mesmo que seja inconscientemente, faz parte do processo.

Achas que a nova geração é uma reacção a isso?
Tenho a impressão de que é mesmo. A maneira como a nossa geração tratou o problema dos estudantes, a chamar-lhes anormais porque não têm uma directiva... Realmente nós deixámo-los um bocado desamparados, os outros agarraram-se ao tio Aníbal que lhes apareceu cheio de sonhos e agora começa a provar-se que não é bem assim. Acho que as reacções são positivas. Os estudantes foram muito criticados por infantilidade. Mas porque é que eles não hão-de ser infantis? Porque é que hão-de reagir consoante as nossas normas de manifestações? Até que ponto não somos responsáveis pela destruição da luta estudantil deles? Por que é que tivemos de arranjar tantas causas, dizer tantas coisas e dizer que aquilo é uma cambada de putos, quando afinal nós éramos os primeiros a dizer que eles tinham razão?

Habituámo-nos a não reagir instintivamente em relação às coisas, a pensar primeiro, vamos reunir-nos para decidir se fazemos manifestação ou não. E chocam-nos as manifestações espontâneas, e então se são espontâneas e não há uma direcção, espera aí. Há logo a tendência de cortar tudo.
Mas há uma geração, de facto, que começa a reagir a isto, uma geração de putos fartos disso tudo. Como os dos skates e das bicicletas, que levam a vida mais despreocupada e tomam muita cautela com eles próprios. No meu bar bebem coca-cola, nem drogas nem cervejas. Não querem ter nada a ver com isso, já viram o irmão mais velho agarrado, se calhar houve um tio que rebentou o dinheiro da família. Nem charros nem nada. Têm os seus skates, largam a adrenalina por aí, têm os seus amigos, vão às festas. Acho giríssimo, é uma atitude despreocupada.

É como a questão do sexo, nós fomos educados cheios de tabus.
Para eles é muito mais natural. Há muito mais informação. Lembro-me perfeitamente que quando víamos umas maminhas no cinema era... hoje é ridículo, toda a gente vê maminhas na televisão, na publicidade. Já há uma educação sexual mais cedo, a escola e os pais encaram isso de maneira diferente. Nós andávamos em liceus separados, conseguir ir ao liceu das meninas era uma coisa... Uma vez fui ao recreio das meninas, fui um herói, apanhei dois dias de suspensão. No Camões, era ridículo: os rapazes de um lado, ao fundo do corredor as raparigas e ninguém passava o corredor.

Se contares isso a um miúdo de 15 anos pensa que és absolutamente pré-histórico...
Pois pensa. Hoje é muito melhor. De certeza que eles têm os seus problemas, como nós tivemos os nossos. Mas esse acesso que para nós era uma vitória para eles é perfeitamente banal. Vivem lado a lado desde pequeninos, e isso é saudável, mesmo que as raparigas continuem a ter conversas diferentes dos rapazes.

Do que se está a passar hoje em dia no mundo, o que é que achas mais preocupante?
Neste momento, o Ruanda. Talvez por ser uma das maiores catástrofes mas também porque é notícia. Porque afinal deixaram de falar na Bósnia e devem estar a passar-se coisas graves lá também. E noutros sítios do mundo. O preocupante é que a reacção é tardia e desajeitada, cada vez mais, e por parte de quem se calhar até tem responsabilidades. No século XX, como é que é possível passar-se na Europa o que se passa na ex-Jugoslávia? É um escândalo.