Contra o tempo

De uma mestria exemplar, a poesia de Rosa Oliveira elabora um estado de espírito sobre o qual há uma dominação racional criadora de distância.

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A poesia de Rosa Oliveira convida a que se fale do tom, que é mais uma visão do que uma técnica JORGE SANTOS

Este é o segundo livro de Rosa Oliveira (o primeiro, Cinza, tinha sido publicado nesta mesma colecção, em 2013) e fornece bons motivos para uma consideração extra-literária: há uma presença forte e numerosa das mulheres na poesia portuguesa mais recente como nunca se tinha verificado antes. Para além desta convergência (certamente com um significado sociológico importante) o que há, felizmente, são diferenças que não permitem fazer amálgamas baseadas no critério do género. Tardio começa com um texto em prosa, o único do livro, onde se fala, tocando ao de leve o jocoso e a irrisão, de uma contingência: o facto de a autora ter chegado tarde à escrita (segundo a nota biográfica inserida na badana do livro, nasceu em 1958). Aí, podemos ler esta passagem: “Durante muito tempo fui para a cama tarde. Ficava entretida na sericultura. Chegar tarde à escrita parece ser grave, chegar tarde à vida não é nomeado. O inominável. Equivaler escrita e vida é o nó do enforcamento. Não é metonímia. Não há figuras de estilo para o atraso. Só relógios, calendários, admoestações”. Não passará certamente despercebida a citação do incipit da Recherche, de Proust, em que o “durante muito tempo fui para a cama cedo” se tornou, no texto de Rosa Oliveira, “durante muito tempo fui para a cama tarde”. Mas o tardio, o atraso, tem outras declinações nos regimes de tempo que este livro elabora com grande subtileza e liga-se a uma relação com o passado, bem explícito nas fotografias que abrem e fecham cada uma das secções do livro, criando um cenário: são fotografias de um álbum de família, podemos adivinhar que se trata da autora quando criança e jovem, quase sempre acompanhada. Não há legendas nem remissões, e em nenhum caso podemos dizer que elas ilustram os poemas ou que os poemas decorrem das fotografias. Os dois discursos, o das imagens fotográfias e o da poesia, entram em interacção, mas não de maneira directa e preservando algum silêncio, evitando o risco de as fotografias introduzirem o ruído da transparência biográfica. O  passado entra no presente por vias que não são as dos protocolos habituais (aqueles que foram fixados por uma longa tradição da poesia elegíaca, do canto das coisas que já foram e agora faltam, à qual este livro não é permeável) nem é representável através do  pathos nostálgico ou melancólico. As fotografias introduzem o elemento biográfico, corroborado por muitos poemas, mas não podemos dizer que há neste livro uma via directa que conduz da poesia à vida e da vida à poesia. Até porque esta é tardia, isto é, vem depois, “always late, toujours en retard”, como diz o título de um poema.E este título, na sua formulação, vai sabotar o que de elegíaco poderia existir no poema: “aparentemente os sítios não mudaram de local/as coisas permanecem nelas/ algumas gaguejam ao longe/ por vezes as casas sobrevivem a custo/ na sua respiração forçada/ até os cheiros podem atravessar o tempo/ trespassar pessoas/ cruzar os dedos// lamento, gente toda desaparecida/ tinha tanta pressa que já não vou a tempo” (pág 35). Mesmo mesmo quando olha para trás, para os tempos e territórios de um passado muito pessoal, Tardio não cede à nostalgia e ao tom elegíaco; a música, aqui, é outra: mais dura, menos harmónica e bastante intelectualizada, “joga” muito conscientemente com o sentimental e o emotivo, sem lhes conceder as prerrogativas. Há nesta poesia uma tensão fundamental entre a racionalidade olímpica e os estados emotivos, um recuo “pensante” que coloca tudo a uma certa distância, por mais próximo que seja.

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Este é o segundo livro de Rosa Oliveira (o primeiro, Cinza, tinha sido publicado nesta mesma colecção, em 2013) e fornece bons motivos para uma consideração extra-literária: há uma presença forte e numerosa das mulheres na poesia portuguesa mais recente como nunca se tinha verificado antes. Para além desta convergência (certamente com um significado sociológico importante) o que há, felizmente, são diferenças que não permitem fazer amálgamas baseadas no critério do género. Tardio começa com um texto em prosa, o único do livro, onde se fala, tocando ao de leve o jocoso e a irrisão, de uma contingência: o facto de a autora ter chegado tarde à escrita (segundo a nota biográfica inserida na badana do livro, nasceu em 1958). Aí, podemos ler esta passagem: “Durante muito tempo fui para a cama tarde. Ficava entretida na sericultura. Chegar tarde à escrita parece ser grave, chegar tarde à vida não é nomeado. O inominável. Equivaler escrita e vida é o nó do enforcamento. Não é metonímia. Não há figuras de estilo para o atraso. Só relógios, calendários, admoestações”. Não passará certamente despercebida a citação do incipit da Recherche, de Proust, em que o “durante muito tempo fui para a cama cedo” se tornou, no texto de Rosa Oliveira, “durante muito tempo fui para a cama tarde”. Mas o tardio, o atraso, tem outras declinações nos regimes de tempo que este livro elabora com grande subtileza e liga-se a uma relação com o passado, bem explícito nas fotografias que abrem e fecham cada uma das secções do livro, criando um cenário: são fotografias de um álbum de família, podemos adivinhar que se trata da autora quando criança e jovem, quase sempre acompanhada. Não há legendas nem remissões, e em nenhum caso podemos dizer que elas ilustram os poemas ou que os poemas decorrem das fotografias. Os dois discursos, o das imagens fotográfias e o da poesia, entram em interacção, mas não de maneira directa e preservando algum silêncio, evitando o risco de as fotografias introduzirem o ruído da transparência biográfica. O  passado entra no presente por vias que não são as dos protocolos habituais (aqueles que foram fixados por uma longa tradição da poesia elegíaca, do canto das coisas que já foram e agora faltam, à qual este livro não é permeável) nem é representável através do  pathos nostálgico ou melancólico. As fotografias introduzem o elemento biográfico, corroborado por muitos poemas, mas não podemos dizer que há neste livro uma via directa que conduz da poesia à vida e da vida à poesia. Até porque esta é tardia, isto é, vem depois, “always late, toujours en retard”, como diz o título de um poema.E este título, na sua formulação, vai sabotar o que de elegíaco poderia existir no poema: “aparentemente os sítios não mudaram de local/as coisas permanecem nelas/ algumas gaguejam ao longe/ por vezes as casas sobrevivem a custo/ na sua respiração forçada/ até os cheiros podem atravessar o tempo/ trespassar pessoas/ cruzar os dedos// lamento, gente toda desaparecida/ tinha tanta pressa que já não vou a tempo” (pág 35). Mesmo mesmo quando olha para trás, para os tempos e territórios de um passado muito pessoal, Tardio não cede à nostalgia e ao tom elegíaco; a música, aqui, é outra: mais dura, menos harmónica e bastante intelectualizada, “joga” muito conscientemente com o sentimental e o emotivo, sem lhes conceder as prerrogativas. Há nesta poesia uma tensão fundamental entre a racionalidade olímpica e os estados emotivos, um recuo “pensante” que coloca tudo a uma certa distância, por mais próximo que seja.

O título da segunda secção deste livro, Meteóricas e Sentimentais, dá-nos uma ideia precisa dessa racionalidade que não se traduz sob a forma da ironia, nem da sátira, nem do cinismo. É um controle dos humores através de um distanciamento, de uma visão distanciada. Neste sentido, esta poesia é sempre intempestiva e agreste. Muito justa é então a epígrafe que abre o livro, uma citação do conto de Kafka, Relatório a uma academia: “Foi uma honra que me concederam ao pedirem que me apresentasse à Academia a relação da minha vida anterior de símio”. Se não é propriamente uma criatura simiesca, aquela que se dá a ver neste livro, ela não tem modos brandos. Ou então é a figura de uma consciência alucinada: “agora passo ao de leve pelas coisas/ e tudo é transparente/ sou um fantasma sou um anjo/ nem sequer de cócoras posso estar/ o mundo é cada vez menos inconsistente/ escrevo tudo como se fossem cartas/ trespasso objectos com um olhar diáfano/ posso agora assistir melhor/ ver como cai o pó/ essa preocupação inverosímil/ um pouco tonta/ quando tudo se esboroa/ sei agora como cai/ não sei como é estar vivo” (pág. 107).

A poesia de Rosa Oliveira convida a que se fale do tom. Porque o tom é uma questão que a marca profundamente. É, aliás, pelo tom que reconhecemos a sua singularidade. O tom, ao contrário daquilo a que chamamos estilo, é mais uma visão – uma visão do mundo - do que uma técnica. Embora essa entoação seja determinada por um estado interior, ela não comporta nenhuma referência primária à psyché. Podemos tentar identificar os factores dessa tonalidade: há, em primeiro lugar, uma atenção analítica ao mundo das pequenas coisas (a matéria desta poesia é sobretudo aquilo que se mede por esta escala das coisas pequenas e menores); há, em segundo lugar, um discreto humor que pode chegar a ser negro; e há, em terceiro lugar, incursões no informe e na animalidade que podem aproximar-se da abjecção: “O rato misantropical/ trespassa o esterco/ os dentes a tremer/ cospe/ por vezes rói os fios eléctricos/ dentro das paredes” (pág 33). Assim começa um poema que tem como título o nome da actriz americana Gena Rowlands. E chegamos assim a uma outra característica fundamental desta poesia: ela integra abundantes referências culturais (do cinema, da literatura, da filosofia), cita com frequência (um exemplo: o verso “o corpo procura o seu despovoador” faz uma referência ao dépeupleur, de Beckett), mas dissimula-as ou não as trata de maneira reverencial. Esta é uma poesia culta, mas que se desvia do culturalismo e das suas atracções académicas. E tudo entra nessa mesma ordem de um ácido desencanto criador de distância e cepticismo. O tom de que falei tem o seu lado negro, não é uma música de embalar nem uma exibição de efeitos inócuos.