Como se pode testar melhor a demência semântica?

Os Prémios Santa Casa Neurociências deste ano vão para um trabalho sobre a doença de Alzheimer e outro sobre lesões na espinal medula. E, ainda, para a avaliação de dois tipos de memória, no Prémio João Lobo Antunes, a novidade deste ano.

Foto
Os prémios foram entregues esta quinta-feira ©istock.com e Pitju

Perceber como dois tipos de memória podem contribuir para a resolução de problemas no dia-a-dia. Criar uma nova estratégia terapêutica e um novo biomarcador para a doença de Alzheimer. E conseguir reparar lesões na espinal medula através de três terapias numa única abordagem terapêutica. São as grandes ambições dos três trabalhos de investigação que venceram esta quinta-feira ao fim da tarde os Prémios Santa Casa Neurociências, em três categorias, no valor total de 440 mil euros, atribuídos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Perceber como dois tipos de memória podem contribuir para a resolução de problemas no dia-a-dia. Criar uma nova estratégia terapêutica e um novo biomarcador para a doença de Alzheimer. E conseguir reparar lesões na espinal medula através de três terapias numa única abordagem terapêutica. São as grandes ambições dos três trabalhos de investigação que venceram esta quinta-feira ao fim da tarde os Prémios Santa Casa Neurociências, em três categorias, no valor total de 440 mil euros, atribuídos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A memória no dia-a-dia

Bruno Miranda, médico no Hospital de Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, é o vencedor da primeira edição do Prémio João Lobo Antunes (criado em homenagem ao neurocirurgião, que morreu em Outubro de 2016, e destinado a médicos a fazer o internato em neurociências), no valor de 40 mil euros. O trabalho quer avaliar dois tipos de memória: a episódica (conjunto de experiências pessoais passadas num determinado momento e local) e a semântica (conhecimento não pessoal e culturalmente compartilhado). “O objectivo é ver de que forma essas duas memórias podem contribuir para a resolução de problemas no dia-a-dia”, explica o médico de 35 anos.

Foto
Bruno Miranda DR

Pessoas que tenham diferentes defeitos na memória vão ter problemas no planeamento. Isso ocorre quando há lesões do lobo temporal médio (no caso da memória episódica) e no lobo temporal anterior (na memória semântica).

Neste estudo, irão ser usados dois grupos doentes, cada um com 12 a 15 pessoas, do Hospital de Santa Maria: o primeiro terá doentes com defeitos específicos na memória episódica (doença de Alzheimer) e o segundo na memória semântica (demência semântica). Irá fazer-se um novo tipo de teste neuropsicológico com uma metodologia inovadora, que combina modelos computacionais. “É como se fosse um jogo de escolhas”, diz Bruno Miranda. No final, estes testes serão comparados com o volume dos lobos temporal médio e temporal anterior. “Vamos ver, em termos dos resultados de desempenho da tarefa e da ressonância magnética, se há diferenças nos dois grupos.”

À procura de nova terapia para a Alzheimer

A cientista Maria José Diógenes, do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, é a líder do projecto que venceu o Prémio Mantero Belard, de 200 mil euros. A sua equipa quer criar uma nova estratégia terapêutica e um novo biomarcador para a doença de Alzheimer, trabalho que tem três grandes vertentes: aprofundar o conhecimento da doença; testar uma nova estratégia terapêutica; e investigar um novo biomarcador.

A equipa vai tentar saber mais sobre os mecanismos da doença. “Já temos pistas importantes que nos demonstram que há uma desregulação do funcionamento de uma proteína, que é um factor neurotrófico que se chama BDNF, e tem muita importância para o cérebro”, diz a investigadora de 40 anos, frisando que o BDNF é relevante em fenómenos subjacentes à memória e aprendizagem e que protege os neurónios da morte celular. “Nos doentes com doença de Alzheimer, observou-se que existe uma alteração significativa da acção deste factor neurotrófico.”

Foto
Maria José Diógenes DR

Depois, haverá uma segunda fase. A equipa já conseguiu desenvolver um novo fármaco que restabelece as funções desse factor neurotrófico. E sabe que o receptor dessa proteína presente nas células – o TrkB – é fragmentado quando está exposto à proteína beta-amilóide, cuja acumulação no cérebro está intimamente ligada à doença de Alzheimer. A equipa está a testar de que forma esse receptor é fragmentado – o que já se fez tanto em fatias de hipocampo (área do cérebro muito afectada na Alzheimer), como em culturas de neurónios. E já se viu que impede a clivagem (fragmentação) dos receptores e restaura o efeito do BDNF. E agora vai testar o fármaco em ratinhos geneticamente modificados para mimetizar a doença de Alzheimer, assim como caracterizar os fragmentos e a sua localização em tecidos humanos post mortem.

Por fim, irá procurar-se um novo biomarcador da doença. Voltemos ao receptor TrkB: quando se dá a clivagem nesse receptor, ele fragmenta-se em dois. “Segundo os nossos dados, os fragmentos passam a ter toxicidade e perde-se a função do receptor. Quando há morte celular, esses fragmentos podem ir para o líquido cefalorraquidiano”, explica. Com a recolha desse líquido, os cientistas esperam vir a encontrar os fragmentos e perceber-se a evolução da neurodegeneração que está a ocorrer no cérebro. “A nossa hipótese é que, ao fazermos a análise do líquido, encontremos biomarcadores que nos permitam avaliar a progressão da doença”, explica Maria José Diógenes, salientando: “Estamos ainda longe de aplicar isto em humanos.”

Como reparar lesões?

António Salgado, da Universidade do Minho, é o principal responsável pelo trabalho que venceu o Prémio Melo e Castro de 2017. O grande objectivo é conseguir reparar a espinal medula com lesões, juntando três estratégias diferentes numa única abordagem terapêutica, e que costumam aplicar-se de forma separada: a farmacologia, a engenharia de tecidos e a estimulação epidural. “Desenvolvemos uma terapia que ajuda a proteger e a reparar o tecido, para que haja uma melhoria de capacidades motoras ou fisiológicas”, explica António Salgado, de 39 anos, que já tinha ganho o mesmo prémio em 2013 na mesma área de investigação. Esta é assim uma forma de continuar este trabalho durante mais três anos.

Foto
António Salgado

Quais são as três vertentes em investigação? Comecemos pela farmacologia. A equipa está a desenvolver uma forma de proteger o tecido nervoso na espinal medula ou de potenciar a regeneração do tecido lesionado, através de um fármaco. Na lesão vertebro-medular, há uma grande quantidade de glutamato (um neurotransmissor, uma das substâncias químicas usadas pelos neurónios para comunicarem) – e isso acaba por provocar um processo de “excitotoxicidade”, em que ocorre morte celular. Ora, o riluzol, um fármaco usado no tratamento da esclerose lateral amiotrófica, pode ser aplicado neste tipo de lesões e, assim, diminuir a morte celular e melhorar o comportamento motor do rato, o modelo animal que a equipa usa. Desta forma, cria-se uma protecção celular.

Depois, há a engenharia de tecidos. A equipa combina hidrogéis com células estaminais de tecido adiposo e coloca tudo no local da lesão. Com isto, irá induzir o processo de regeneração. Por fim (esta é a parte nova), vai usar a estimulação epidural. Esta técnica coloca eléctrodos na espinal medula, abaixo da zona da lesão, que originam a libertação de vários neurotransmissores ou impulsos eléctricos. Vai assim estimular-se a espinal medula e ajudar a acelerar o processo de reparação de algumas fibras nervosas que tinham sido danificadas. “A estimulação epidural é quase como uma prótese, substituindo uma função do tecido que foi lesionado”, explica de forma metafórica António Salgado. “Esta é uma ajuda temporária e será usada em paralelo quando se induz a regeneração e a protecção das células.”

Com os 200 mil euros do prémio, a sua equipa tem agora três anos para desenvolver uma nova geração de hidrogéis, e pretende regenerar os vasos sanguíneos na medula espinal. Depois, vai testar as três vertentes da abordagem terapêutica em ratos com lesões torácicas e cervicais. Por fim, quer aplicar as duas etapas anteriores em animais de estimação, nomeadamente em cães que sofreram acidentalmente uma lesão, tendo para tal a colaboração da Escola Universitária Vasco da Gama, em Coimbra.