O voto que mudou a história
Há precisamente 70 anos, a aprovação do Plano de Partilha da Palestina foi o Dia da Vitória para os judeus do mundo inteiro.
“Trinta e três a favor. Treze contra. Dez abstenções e uma ausência. A resolução está aprovada.” Ouvida pela rádio na Palestina e em todo o mundo, a voz do brasileiro Oswaldo Aranha, na época presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, acabava assim de anunciar a 29 de Novembro de 1947 a aprovação do Plano de Partilha da Palestina prevendo a criação de dois Estados independentes: um Estado Judaico e um Estado Árabe.
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“Trinta e três a favor. Treze contra. Dez abstenções e uma ausência. A resolução está aprovada.” Ouvida pela rádio na Palestina e em todo o mundo, a voz do brasileiro Oswaldo Aranha, na época presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, acabava assim de anunciar a 29 de Novembro de 1947 a aprovação do Plano de Partilha da Palestina prevendo a criação de dois Estados independentes: um Estado Judaico e um Estado Árabe.
No dia do voto, a Palestina parou, a vida suspensa de uma decisão que iria mudar a sua história. Entre os países que votaram sim, estavam a União Soviética, os Estados Unidos e a França. Contra, votaram os seis Estados árabes membros da ONU — Egipto, Síria, Líbano, Iraque, Arábia Saudita, Iémen — mais quatro países muçulmanos não árabes: Afeganistão, Paquistão, Irão e Turquia, assim como a India, a Grécia e Cuba. Entre as abstenções, a Argentina, a Etiópia e a Jugoslávia e a própria Grã-Bretanha — voz isolada entre as grandes potências e entre todos os países da Commonwealth britânica.
No mundo judaico, e muito particularmente na Palestina, foi o delírio: multidões saíram à rua, abraçando-se, dançando e cantando o hino sionista, o Hatikvá — A Esperança. Depois da Declaração Balfour, 30 anos antes, este foi o segundo e decisivo marco para a proclamação do Estado de Israel. Para o mundo árabe, esta data ficou registada como o dia da “Nakba”, a “Catástrofe”: os países árabes rejeitaram liminarmente a resolução, opondo-se a qualquer plano de partilha e ao reconhecimento de um Estado judaico.
Para trás ficavam duas décadas de instabilidade e violência: pogroms árabes em 1929 e 1936 contra os judeus, represálias judaicas e um crescendo da luta antibritânica. Na realidade, depois do final da guerra os judeus esperavam uma mudança de política do governo inglês na Palestina, nomeadamente a revogação do “Livro Branco”, que ao longo do conflito manteve a Palestina praticamente fechada aos refugiados judeus em fuga da Europa de Hitler. Mas isso não aconteceu: apesar do final da guerra trazer à luz do dia a terrível dimensão do massacre do judaísmo europeu, os ingleses mantiveram o “Livro Branco”, optando pela conciliação com os árabes. Os judeus concluem que a situação exigia uma aceleração da sua própria história: o fim do Mandato Britânico e a criação imediata de um Estado judaico na Palestina.
Na verdade, nesse ano de 1947, a Grã-Bretanha já perdera o controlo da Palestina. Impotente face à degradação crescente da situação, o governo britânico entrega à ONU a solução do problema. É decidida a constituição de uma comissão especial, a UNSCOP (United Nations Special Committee on Palestine), que entre Junho e Setembro percorre a Palestina e dá-se conta do clima de extrema tensão que aí reina — agravado pela tragédia do barco Exodus 47 que tem lugar nessa altura. Será com base no relatório da UNSCOP e respectivas propostas que será elaborado o Plano de Partilha.
Às 7h da manhã do dia 30 de Novembro, algumas horas depois do voto da Assembleia Geral das Nações Unidas, cinco judeus foram mortos num ataque árabe a uma ambulância em Jerusalém. Por todo o país, sucedem-se as investidas contra comércios, mercados e bairros judaicos. Os confrontos generalizam-se a Telavive e a Haifa, os árabes declaram oficialmente a sua decisão de se opor pela força das armas à aplicação do Plano de Partilha. Têm o apoio político, material e militar dos países árabes vizinhos e contam com a simpatia das autoridades mandatárias ainda presentes.
O Estado de Israel seria criado 167 dias depois, numa sexta-feira, véspera de Shabat, a 14 de Maio de 1948. Mas, escreve Amos Oz, “um por cento da população judaica, um em cada cem homens, mulheres, velhos, crianças e bebés, um em cada cem dos que dançavam, bebiam, festejavam e choravam de alegria, um por cento da nação que enchia as ruas nessa noite, morreria na guerra que os Árabes iriam desencadear menos de sete horas depois da decisão da Assembleia Geral em Lake Success [...]”. Mas naquela noite, nas ruas de Telavive, Jerusalém e Nova Iorque, de Praga e Viena, nos campos de “deslocados” da Alemanha e nos kibutzes da Galileia, a hora era de júbilo e de esperança. Foi o Dia da Vitória para os judeus do mundo inteiro, o primeiro em mais de 2000 anos.
Esta é muito sumariamente a história da votação do Plano de Partilha da Palestina. Mas não é a história da criação do Estado de Israel. Por muito importante que tenha sido a decisão da ONU, e foi-o sem dúvida alguma, Israel não foi criado pelas Nações Unidas: foi edificado pedra a pedra pelos homens e mulheres que um século antes começaram a construir os seus fundamentos — a sua agricultura, a sua indústria, as suas universidades, a sua rede sanitária e educacional, o seu exército, a sua estrutura política democrática. Tudo isso já existia e estava praticamente pronto antes de 1947/1948. Se os judeus da Palestina tivessem perdido as guerras que lhe foram movidas pelo mundo árabe depois da aprovação do Plano de Partilha e da Proclamação de Independência em 1948, nenhuma votação internacional lhes teria valido. A decisão das Nações Unidas foi fundamental, mas é bom lembrar que ela veio legitimar uma realidade já existente.
Nenhum Estado tem condições de sobrevivência através do simples reconhecimento internacional. É preciso vontade política e estruturas sociais e políticas capazes de assegurar uma existência soberana e autónoma. Os judeus da Palestina tinham isso e também a clara consciência de que nada tinham a perder...